19/04/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

Silêncio

Publicado em 13/05/2020 12:00 -

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O gato empurra sorrateiramente o mouse, num breve momento em que me distraio na dispersão solitária do home office. Da rua, ouço uma voz reclamar do latido insistente de um cachorro, enquanto entregadores de mercado discutem, em voz alta, sobre a numeração caótica da rua. Ao longe, mas audível, alguém batuca furiosamente uma panela, em um protesto que ecoa nas ruas de Laranjeiras. Um alarme é desligado, um automóvel dá a partida. São 11 horas e 23 minutos no Rio de Janeiro. Pego o mouse no ar, antes de chegar ao chão.

Penso no silêncio. E nos movimentos propostos para rompê-lo. Penso no silenciamento. E nos propósitos explícitos de mantê-lo. Estamos em pandemia, convivemos com uma infodemia, e tentamos avançar para além das dúvidas e da mudança compulsória de comportamentos. Toda crise sanitária traz em si uma discussão sobre escolhas e modos de vida, sobre aquilo que se considera saúde e doença, sobre visões de mundo. O vírus silencioso parece romper o silêncio implícito nas estruturas e nos convidar a refletir sobre o barulho interior.

É preciso escutar o que o silêncio nos diz, escrevo, sem grandes pretensões. Daí lembro que há tempos os estudiosos da linguagem e da filosofia se debruçam sobre os sentidos do silêncio – entendido aqui não apenas como ausência da palavra, mas integrante daquilo que se quer expressar. O silêncio é fundante, adverte Eni Orlandi; “Somos feitos de silêncio e som”, canta Lulu Santos. Os sentidos barulhentos colocados em pauta pelo silêncio nos obrigam a refletir, diante de um cenário de pandemia, quando o isolamento social se impõe como medida de proteção individual e coletiva. 

“Fique em casa”, “lave as mãos”. São muitas as narrativas disputando corações e mentes: O discurso prescritivo da ciência; o relatório contábil da economia; a preleção enganosa do negacionismo; a doutrina solidária da filantropia; o inventário de carências da gestão da crise; a representação heroica dos profissionais de saúde, a narrativa midiática da superação; a defesa da produtividade individual. Hora de aproveitar o tempo livre! Livrar-se dos incômodos, fuçar gavetas, aprender novas competências, transformar o vazio em criação. São muitas visões de mundo em disputa – todas embaladas em metáforas bélicas de combate e proteção, ataque e sobrevivência. São tempos de guerra, reforçam os comentaristas na TV.

No meio de todas as disputas, o silêncio. E seus inúmeros sentidos. Estávamos acostumados à embalagem silenciosa de nossos lares. O aconchego de quem retorna do mundo, distribuído em muitos ou poucos (ou nenhum) metros quadrados. Fragmentos de nós mesmos adormecidos, memórias expostas nas paredes, tristezas latentes nas prateleiras, alegrias guardadas a sete chaves. Rodeamo-nos de um silêncio biográfico respeitoso que não convidamos à conversa e mantemos à distância. No entanto, ele nos protege.

Cultivamos o silêncio que nos afasta dos ponteiros que empurram o tempo e das limitações que nem o tempo dissiparam; o silêncio que nos dá a falsa sensação de tranquilidade, mas que chia, ao modo de uma panela de pressão, caso seja maculado; o silêncio que fortalece a linha de fronteira entre o que somos nós e o que é o mundo; entre o que está em nossa companhia e o que tem que viver da porta para fora, na nossa área de descarte emocional. O silêncio que grita: “Primeiro, eu”.

E daí, então, pandemia. Isolamento. Distanciamento social. Compulsório. Voltamos a nossa atenção para dentro, desta vez sem ajuda de terapia, para percorrer com os olhos, as mãos e os narizes alérgicos, as marcas de silêncio que imprimimos ao nosso redor. A viagem inesquecível, o projeto que não vingou, as contas pagas e as contas vencidas, as vitórias com que tanto se sonhou. Estamos diante de nossa própria eloquência silenciosa. E somos convidados a quebrar o pacto com nosso arquivo interior. Mexer gavetas, fuçar o passado, projetar o futuro. Somos confinados à pausa. E compelidos a remexer em nossos silêncios.

Lembro de Roland Barthes, quando define a espera, nos seus Fragmentos de um discurso amoroso: “Recebi a ordem de não me mexer”; recordo da frase: “E no entanto, se move”, atribuída a Galileu Galilei, no momento em que foi obrigado pela inquisição, em 1633, a renegar sua tese de que a Terra se move em torno do Sol. Somos teimosos e inquietos. Assim como Galileu, Barthes e os gatos diante de um mouse, nós não conseguimos parar. E tentamos nos distrair. Mas, se distraídos venceremos, como quis o Leminski, a desatenção sempre é auxiliada pelos atentos pensadores que nos chamam à reflexão.  

“O que estamos vivendo pode ser a obra de uma mãe amorosa que decidiu fazer o filho calar a boca pelo menos por um instante. Não porque não goste dele, mas por querer lhe ensinar alguma coisa. ‘Filho, silêncio’. A Terra está falando isso para a humanidade. E ela é tão maravilhosa que não dá uma ordem. Ela simplesmente está pedindo: ‘Silêncio’.” O alerta é de Ailton Krenak, no livro que acaba de lançar, com reflexões sobre a pandemia: “Temos que parar de vender o amanhã”, já adverte o título. Em silêncio, penso em suas palavras, na crítica contundente que faz às nossas escolhas.

A escolha pela cultura do descarte, pela dicotomia entre homem e natureza, pelo distanciamento social em detrimento de tantas facilidades tecnológicas. Pelo silenciamento e pela naturalização do discurso da violência, das desigualdades de condições de vida. A opção pelo acúmulo egóico de ideias, de propósitos, pela quantidade de barulhos comprados ao preço de uma vida. Não podemos programar atividades para depois, adverte o pensador indígena, rompendo o silêncio proposto pela ciência, pelo Estado e pela própria pandemia. “Temos que parar de ser convencidos”. Leio isso e imediatamente me volto às imagens que vi, esta semana, da vida que segue nas ruas de Copacabana.

Nos cliques do amigo fotógrafo Peter Ilicciev, vejo registros de pessoas que não se “adaptam” às prescrições e preleções de quase fim de fundo. Os silenciados. Cidadãos que vivem em situação de rua, trabalhadores domésticos a polir vidros em andares altos, entregadores de aplicativos com mochila nas costas a alimentar os que estão em casa, caixas de supermercado, porteiros e profissionais de segurança. Uma fotografia, em especial, chama minha atenção: A mão negra de um homem se sobrepõe ao seu reflexo, de máscaras, no para-brisas de um carro que ele mesmo limpa, talvez em pleno sinal, talvez em busca de um trocado. A imagem é repleta de silêncio e som.

Na minha casa, o gato já dorme no sofá, confortado pela proteção de um cobertor. Vou à varanda e penso, mais uma vez, no silêncio. Percebo que ele não está mais tanto aqui. Talvez eu o tenha deslocado para as ruas, onde a vulnerabilidade hoje está, e eu quase não vejo. Transferi meu silêncio para as escolhas sociais que fizemos, para as condições que favorecem o silenciamento. No momento em que resgato leituras, relembro fotografias, rememoro sonhos e faço planos, projeto o meu silêncio porta afora, mais uma vez fortalecendo a fronteira entre o que penso que sou e o mundo que as vezes finjo não pertencer.

É o chacoalhar da bicicleta de mais um entregador apressado que passa, abaixo da minha janela, que me faz despertar para o que penso ser fundamental, para reestabelecer nossa humanidade (e garantir nossa imunidade, em tempos de pandemia): Entender a diferença entre o silêncio fundante, necessário para a criação e a expressão, e o silenciamento desnecessário imposto às vozes que circulam compulsoriamente em territórios de risco. Precisamos escutar seus silêncios. Precisamos romper com seus silenciamentos.

Para que verdadeiramente possamos conquistar um novo amanhã, que não esteja submetido à lógica do acúmulo, do descarte e da negligência com a vida, é necessário que possamos aceitar e transformar nossos silêncios em redes de indignação e esperança. “O silêncio foi relegado a uma posição secundária, como excrescência, como o resto da linguagem”, aponta Orlandi. É preciso, portanto, resgatar nossos silêncios e fazer deles um barulho ensurdecedor.

Adriano De Lavor – Jornalista    


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