26/04/2024 - Edição 540

Entrevista

‘Bolsonaro não ouve ninguém e não entende a seriedade da crise’, diz historiador

Publicado em 04/05/2020 12:00 -

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O mundo em pausa: pessoas confinadas, ruas mais vazias, economia desacelerada… Trata-se de uma pausa brusca, cheia de perguntas sobre o que virá depois da pandemia do coronavírus.

A China e seu regime autoritário serão os grandes vencedores e a democracia, a grande derrotada, como alguns preveem? Ou, pelo contrário, os sistemas democráticos sairão fortalecidos por sua capacidade de contemplar diferenças e acomodá-las em um consenso?

A democracia deve tirar proveito dessa crise para fazer mudanças profundas e tentar cumprir as promessas que, em lugares como a América Latina, não foram cumpridas?

Limites para o uso de nossos dados e para o monitoramento tecnológico, até de nossa temperatura corporal, foram ultrapassados?

É um momento desafiador para o mundo, mas talvez seja também uma boa oportunidade para conversar com Michael Ignatieff, escritor, historiador e pensador, discípulo e biógrafo do filósofo Isaiah Berlin e atual reitor da Universidade Central Europeia (Central European University), financiada pelo magnata George Soros e com sede — pelo menos por enquanto, diante da delicada situação da democracia no país — na Hungria.

Ignatieff também já foi candidato a primeiro-ministro do Canadá pelo Partido Liberal, o mesmo do atual primeiro-ministro canadense Justin Trudeau.

O pensador canadense conversou desde Budapeste por telefone com a BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. Na conversa, após uma menção do repórter ao nome de Jair Bolsonaro, o entrevistado discorreu sobre o presidente brasileiro.

"Bolsonaro parece ser um político que simplesmente não escuta ninguém e não entende a seriedade da crise. E, a menos que isso mude, os brasileiros terão uma visão muito negativa de seu desempenho", opinou Ignatieff.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

 

Não sou historiador, mas não me lembro de um momento de tamanha crise para a democracia desde os anos 1930, e posterior ascensão do fascismo e do comunismo. Você é um observador atento da política mundial. Havia testemunhado algo semelhante em sua carreira?

É o que todo mundo diz, então deve ser verdade, certo?

É que não tenho tanta certeza disso. O que vejo é uma Itália golpeada por essa terrível tragédia e reagindo com unidade, com obediência a um governo que tem uma maioria (parlamentar) muito frágil.

Olho para a Espanha e, de novo, vejo um governo democrático frágil que tem total apoio para enfrentar esta catástrofe.

Vejo na Alemanha uma chanceler forte (Angela Merkel) presidindo um sistema de saúde que está testando muitas pessoas.

E no Canadá, um primeiro-ministro (Justin Trudeau) que convocou o Parlamento para enfrentar o desafio.

Acredito que existe uma narrativa fácil, que é a de uma "democracia em crise", mas há uma história mais difícil — e igualmente plausível — de que a democracia está se comportando à altura das circunstâncias.

Portanto, não sou pessimista quanto a isso.

Mas tenhamos cuidado: se o alastramento do vírus ficar completamente fora de controle, ou seja, se alguma dessas sociedades democráticas ficar sobrecarregada e não achatar a curva, tudo pode acontecer.

Mas se as democracias forem bem-sucedidas e conseguirem conduzir a população a atravessar essa crise, elas serão fortalecidas, não enfraquecidas.

Entretanto, embora ninguém saiba como será o mundo quando tudo isso acabar, algumas pessoas acreditam hoje que o grande vencedor é a China e sua reação (à pandemia) — muito autoritária, com grande controle social e uso generalizado de vigilância digital.

Bem, é uma história que tem dois lados.

Sim, eles (chineses) reagiram de maneira muito eficaz e massiva. Usaram todo o poder do Estado e basicamente colocaram a economia do avesso. Puseram em quarentena enormes parcelas da população e inundaram a região com medidas de saúde. Acho que o mundo admira isso.

Mas há também o outro lado: eles levaram entre seis e oito semanas para reconhecer a realidade da ameaça. E abafaram as evidências que o mundo precisava sobre o grave surto naquela Província (de Hubei, epicentro do surto no país asiático).

Se tivessem reagido como qualquer sistema de saúde democrático, teriam agido mais rapidamente.

Acho que é muito cedo para usar o caso chinês para proclamar a superioridade dos métodos autoritários. Em uma epidemia, os governos precisam exercer poderes aos quais nunca recorreriam em tempos normais.

A diferença entre o que China, Itália e Espanha fazem é muito pequena agora, porque todos impõem restrições à liberdade dos cidadãos que nenhuma sociedade democrática toleraria em tempos normais.

Mas não estou vendo evidências de que os sistemas democráticos sejam inferiores aos regimes autoritários quando se trata de lidar com uma emergência de saúde pública.

E, francamente, prefiro viver em uma democracia em que a imprensa possa criticar o regime, apontar falhas nos serviços. A imprensa tem feito um trabalho incrível nisso tudo, identificando onde as democracias estão falhando. E isso é parte do que nos protege como cidadãos.

O que é apontado como uma resposta lenta é devido à própria natureza da democracia, certo? Requer discussão, consenso, votação. E isso leva tempo.

Obviamente, as democracias não reagem tão rapidamente — tudo o que vimos, por exemplo, na Itália. E cada país chegou lentamente a uma conclusão óbvia.

Acho que são coisas inevitáveis e que não são um fracasso do sistema democrático. É algo muito humano: ter dificuldade em aceitar realidades dolorosas. Acho que todos nós temos isso.

Não faz sentido censurar as autoridades públicas agora, quando todos estão agindo da melhor maneira possível.

Acredito ser injusto e pouco generoso criticar os espanhóis ou os italianos.

Outro grande tema que surge no meio desta crise é o uso da tecnologia para lidar com a pandemia em alguns países, especialmente na Ásia. Penso que muitas pessoas em lugares como na América Latina estariam dispostas a trocar privacidade digital por mais segurança. E não apenas em termos de saúde.

Teremos que repensar os protocolos de privacidade relacionados à tecnologia.

Pensando no meu caso, suponha que eu ou minha esposa fiquemos doentes e apresentemos sintomas de covid-19. Eu gostaria de ter um software que, de alguma forma, rastreasse todos os contatos que já tive, para que possamos reduzir os riscos (de transmissão).

E se isso significa compartilhar detalhes da minha vida pessoal, minha localização… Acredito que é uma redução justificável da minha privacidade quando se trata de saúde pública.

É claro que é preciso ter cuidados, para que haja todas as análises e controles legais. Mas é preciso refletir.

Não acho que, neste caso, a privacidade esteja acima da segurança pública. E se minha privacidade diminuir para que outras pessoas não fiquem doentes e morram, acho que deveríamos discuti-la.

Mas vamos ter esta discussão em uma sociedade democrática, onde há vigoroso debate público, legislação e limitação dos poderes das empresas privadas.

Não seria difícil aprovar algo do tipo em países como os Estados Unidos e o Reino Unido, onde atribui-se um valor especial à privacidade e ao individualismo?

Talvez. Mas creio que pode haver surpresas.

Olhe para Israel. Independentemente de o que você pense sobre Israel, trata-se de uma sociedade ferozmente democrática. Lá, eles debatem desde o momento que acordam até quando vão para a cama dormir.

Não se pode dizer que não é uma sociedade livre mas, por terem um setor tecnológico altamente desenvolvido, eles introduziram um software que permite que você saiba no seu celular onde estão as pessoas com covid-19.

Precisamos lembrar — porque estamos em um momento de grande pessimismo — como seria se estivéssemos em 1960 e não tivéssemos nenhuma dessas tecnologias. Hoje, posso conversar com minha filha em Londres e meu filho em Toronto, ver seus rostos.

E mais: cientistas da América Latina, Ásia, África, Europa estão trabalhando dia e noite, compartilhando informações através dessas tecnologias para que possamos ter melhores diagnósticos e vacinas.

A tecnologia aumentou muito nossa segurança e a velocidade com que podemos responder a esse desastre.

Todos nós temos sido muito críticos ao Facebook, ao Google etc. E as críticas continuam, mas essas tecnologias aumentaram muito nossa capacidade de reagir rapidamente e aprender uns com os outros.

Essa é a chave: estamos aprendendo com os outros.

(Vimos) que a Coreia do Sul teve uma boa estratégia que podemos adotar, que o Irã teve uma conduta ruim que não devemos repetir, que os Estados Unidos demoraram a reagir e agora estão desesperadamente tentando melhorar.

Outra coisa que esta crise está fazendo é colocar cientistas, especialistas e fatos de volta ao centro da discussão pública.

Sim, e é uma coisa boa… Embora, novamente, agora seja comum criticar o ataque populista a especialistas, eu acho — porque eu sou supostamente um especialista, tenho doutorado em História e blá blá blá — muito bom que os especialistas estejam sujeitos a críticas e ao escrutínio público.

Mas acontece que, no final das contas, os fatos são teimosos. E se você quiser derrotar um vírus, precisará falar com um epidemiologista, com médicos.

Você precisa ouvi-los quando dizem precisar de algo (por exemplo, equipamentos) e você precisa conseguir isto para eles. E você precisa de políticos que respeitem e entendam a opinião dos cientistas.

Mas gostaria de apontar que todas as decisões sobre saúde pública que estão sendo tomadas são essencialmente políticas, não totalmente científicas.

Em cada país, é o líder político que deve decidir no final das contas se implementa quarentena, se as pessoas estão proibidas de sair, se fechamos restaurantes, se encomendamos respiradores…

O aconselhamento científico é importante, mas, em última instância, torna-se uma decisão política.

E os políticos não podem se esconder atrás dos especialistas. Eles precisam assumir a responsabilidade por decisões terrivelmente difíceis.

É a única coisa que as pessoas se lembrarão: se (os políticos) estiveram à altura da crise ou não.

Em muitos lugares, as democracias não cumprem suas promessas. É por isso que na América Latina voltamos de tempos em tempos a populistas como Hugo Chávez ouautoritários como Jair Bolsonaro. Ao mesmo tempo, diz-se que esta deveria ser uma oportunidade para a democracia mudar. Você pensa o mesmo? E em que estas democracias poderiam mudar?

Hum, um assunto enorme…

Olha, Bolsonaro parece ser um político que simplesmente não ouve ninguém e não entende a seriedade da crise. E, a menos que isso mude, os brasileiros terão uma visão muito negativa de seu desempenho.

Uma epidemia é uma coisa muito séria. São fatos — você não pode fingir que isso não está acontecendo, fazer acabar como num passe de mágica.

Se Bolsonaro não estiver à altura do desafio, ele terá um problema muito sério.

Sobre no que as democracias podem mudar… Acho que aprendemos que os líderes democráticos mais bem-sucedidos foram aqueles que não tiveram medo de dizer ao público a verdade, de anunciar notícias ruins.

Um dos atos mais difíceis em uma democracia é o líder dizer ao público algo que ele não quer ouvir. Espero que esta crise ensine a todo líder democrático o que é a verdadeira liderança: dizer a verdade às pessoas, mesmo quando é dolorosa.

E alguns líderes estão fazendo isso de maneira soberba, como Angela Merkel e Justin Trudeau.

Outra lição é que teremos que investir em saúde pública. Teremos que gastar enormes quantias de dinheiro para nos preparar para a próxima epidemia. Porque ninguém deveria supor que este coronavírus será o último vírus a ameaçar o planeta. Haverá outros. Então é melhor termos máscaras, ventiladores mecânicos e vacinas prontos.

O mundo parece se dividir agora novamente em dois grandes blocos, certo? Por um lado, democracias tradicionais e, por outro, regimes autoritários e o que Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria e alguém que você conhece muito bem, chamou de 'democracias iliberais'.

Sim, o mundo está muito dividido e um terrível experimento está acontecendo. Estamos testando em tempo real qual sistema político responde melhor à pandemia.

A epidemia não se preocupa com política, o vírus se espalha para onde quiser.

Estou numa posição estranha na Hungria. Sou alguém que acredita profundamente na democracia e acho que o senhor Orbán causou danos terríveis neste país e tentou expulsar minha instituição da Hungria, mas a verdade é que quero que ele tenha êxito.

Não quero que fracasse, porque se falhar, as pessoas morrerão. E meus alunos e funcionários estarão em perigo. Então, aqui temos um regime autoritário ao qual me oponho, mas se ele conseguir proteger as pessoas (da pandemia), não vou criticá-lo por isso.

Eu acho que ele enfraqueceu a capacidade deste país de se defender contra o vírus, mas espero estar errado.

Porque ele está usando essa crise para ganhar mais poder. Claro, muitos políticos estão fazendo isso: chineses, iranianos, russos… Orbán está explorando a emergência de saúde pública para consolidar seu poder.

Finalmente, com tudo o que está acontecendo, você está otimista ou pessimista sobre o futuro da democracia?

Sou otimista por temperamento. E sou porque fui um político democrata.

E embora minha carreira (política) não tenha sido um grande sucesso, a verdade é que eu adorava estar na política democrática. Acho que é uma das grandes experiências coletivas da vida moderna.

Também sou otimista porque tenho muita fé nas pessoas. Acredito que a grande sabedoria da democracia é que cada indivíduo tem poder. Então, todo mundo tem que ser respeitado.

Portanto, os sistemas democráticos não podem deixar as pessoas morrerem em casas de repouso ou sem teto nas ruas. É preciso agir e tentar proteger a todos.

Acho que os sistemas democráticos vão responder à crise, e na verdade já estão fazendo isso. Espero que fiquem mais fortes do que antes.


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