24/04/2024 - Edição 540

Poder

Bolsonaro usa cadáveres para fazer política ao chamar quarentena de inútil

Publicado em 01/05/2020 12:00 -

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Apesar das quarentenas impostas por governadores e prefeitos terem reduzido o ritmo de mortes por Covid-19, Jair Bolsonaro insiste que isso não aconteceu e que as medidas de isolamento social não achataram a curva de infecção. A base científica para tanto é, provavelmente, o renomado Instituto de Pesquisa Casa 58 do Condomínio Vivendas da Barra.

Previsível, o presidente da República fez exatamente o que avisamos que faria. Mesmo assim, seu comportamento de consequências letais não deixa de ser surpreendente.

"O Supremo decidiu que as medidas para evitar, ou para fazer a curva ser achatada, caberiam a governadores e prefeitos. Não achataram a curva. Governadores e prefeitos que tomaram medidas bastante rígidas não achataram a curva", disse Bolsonaro na quinta (30).

Em sua live semanal, ele voltou a defender a tese: "Eu já disse, 70% da população vai ser infectada. Pelo que parece, todo empenho para achatar a curva foi inútil".

Bolsonaro sabe que o objetivo não é evitar que as pessoas contraiam o vírus, mas que isso ocorra de uma vez, o que aprofundaria o colapso dos sistemas de saúde, impedindo o tratamento e levando ao óbito mais pacientes de Covid-19, mas também de acidentados e pessoas com outras doenças. Entende que a questão é garantir que a pandemia contamine em prestações e não em um tsunami. E como ele sabe? Porque já foi alertado sobre isso por sua equipe e repetiu publicamente. Ou seja, quando ele dá declarações como as de hoje, não é ignorância. É sacanagem mesmo.

Ele havia sido informado pelo então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que, com a adoção de medidas de isolamento, a escala de óbitos não estaria nas centenas de milhares, mas poderia ficar nas dezenas de milhares. Contudo, enterrou essa informação bem fundo e apostou que a população ficaria tão espantada com a quantidade de mortos em dezenas de milhares que acreditaria quando ele dissesse que o isolamento horizontal não funciona.

Ou seja, que Jair tinha razão e que o vírus é alguma praga do Egito que pegaremos de qualquer forma, que quem não tiver "histórico de atleta como ele" terá que rezar na igreja até a exaustão e que todos deveriam ter ficado trabalhando, pois já que vamos morrer, que seja com dinheiro no bolso.

Ao tentar capitalizar para seus interesses políticos o resultado das medidas que ele mesmo atacou sistematicamente, ressignificando-os, Bolsonaro usa cadáveres para fazer política. Mostrando, mais uma vez, que está pouco interessado com a saúde da população e profundamente preocupado com seu próprio futuro.

O quanto ele puder jogar de responsabilidade nas costas de governadores e prefeitos, vai jogar. Estados e municípios deveriam, quando demandaram à União por compensação pela queda de arrecadação de ICMS e ISS, deveriam ter dobrado a fatura. Pois há um "Custo Bolsonaro", de um presidente que joga contra, que não estava considerado nos cálculos.

Enquanto isso, o Brasil registrou, oficialmente, na quinta, 5.901 óbitos por Covid-19.

"A curva tá aí. Partindo do princípio que o número de óbitos é verdadeiro. Cada vez mais chega informação, que no próprio Diário Oficial do Estado de São Paulo está escrito que, na dúvida, bota coronavírus. Para inflar o número e fazer uso político", afirmou o presidente.

Estudos apontam, contudo, que o número real de mortos pode ser nove vezes o que está sendo divulgado, considerando a subnotificação. Nos cartórios, há muito mais mortos por problemas respiratórios do que a média para este mês. Ou seja, exatamente o oposto ao que ele diz.

Como seu pescoço depende da retomada do país pós-Covid-19, deveria ser grato pela presença de adultos responsáveis nos governos e prefeituras que impedem que ele cause problemas ainda maiores. Mas isso significaria que ele se importa com alguém além dele mesmo e do seu clã.

E a cada declaração presidencial, o isolamento cai mais um pouco.

O "e daí?" de Bolsonaro é mais um capítulo do Brasil na "Era do Foda-se"

O "e daí?" ao qual o presidente Jair Bolsonaro recorreu, no último dia 28, ao ser questionado sobre o fato de o Brasil ter superado a China em número de mortos por Covid-19, com mais de 5 mil óbitos, tem o mesmo DNA do "foda-se" proferido pelo general Augusto Heleno em fevereiro. Não é um palavrão – antes fosse. Mas um lembrete: a República sou eu.

O ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional havia conclamado o presidente a não ficar "acuado" pelo Congresso Nacional – que pressionava para ficar com uma parte maior do orçamento – e "convocar o povo às ruas". E soltou um "foda-se", captado pelo áudio de uma live. O problema é que essa breve expressão está grávida de tudo aquilo que a Constituição de 1988 e o processo de redemocratização quiseram deixar para trás.

"E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre", disse Jair, enquanto sua claque ria em frente ao Palácio do Alvorada. Para além do deboche e do desdém, a declaração contém tanta certeza de invencibilidade e de que as leis são para os outros, que é um perfeito exemplo da "Era do Foda-se".

O Congresso e do Supremo Tribunal Federal conseguem, aqui e ali, aplicar freios e contrapesos ao governo federal, mas o Poder Executivo tem muita força no Brasil. Ainda mais quando conclama seguidores contra as instituições. Pessoas vão às ruas, vestidas de verde e amarelo, para pedir um novo Ato Institucional número 5 – que, em 1968, permitiu à ditadura fechar o Congresso e descer o cacete geral. Chanceladas pelo poder central, fica por isso mesmo.

Sabe aquele esforço para se preocupar com as consequências das próprias ações e palavras e, no mínimo, manter as aparências? No contexto em que estamos, ele se aposenta ou tira férias, mandando avisar que só dá as caras quando a democracia plena voltar. Até lá, cada autoridade ou membro da elite deste país pode falar ou fazer o que quiser, sem medo da repercussão negativa junto à população. Até porque, convenhamos, foda-se.

Alguns dizem que isso gera uma transparência sem igual na sociedade que nos levará a um patamar superior da existência no futuro e o melhor é tudo acontecer à luz do dia ao invés de se passar nos porões. Há uma falsa dualidade nessa história, como se fossem possíveis apenas duas opções: pessoas que fazem coisas erradas e são sinceras (como um presidente que contribui para o espalhamento de uma pandemia) e pessoas que fazem coisas erradas e mentem. Há a alternativa de fazer a coisa certa e ser sincero, mas – pelo visto – essa está no campo da ficção.

O mesmo "foda-se" que acreditamos ouvir quando vemos policiais militares levando vivo um vendedor ambulante, David Nascimento dos Santos, e, no dia seguinte, ele aparece morto. O rapaz de 23 anos havia saído de casa, em São Paulo, para esperar seu pedido de comida na rua e foi levado por PMs. Deixa dois filhos, segundo a Ponte Jornalismo, que relatou o caso. Câmeras de segurança registraram a cena.

A Era do Foda-se tem suas consequências, claro. Vendo autoridades darem de ombros para a razão, a população vai copiando. E passam a descumprir leis, regras e normas porque percebem que não valem muita coisa mesmo. No caso mais urgente, seguem as orientações do presidente, ignorando quarentenas, saindo de casa mesmo quando não há necessidade, contaminando e se deixando contaminar.

E, iniciado, o processo de derretimento das instituições e do respeito da população a elas não pode ser freado do dia para a noite. Como já disse aqui, a solução demanda nova pactuação política e social, aliada a muito suor em articulações para a construção de consensos – exatamente aquilo que um governo autoritário tem ojeriza. Por que um governo autoritário precisa do enfrentamento que cria inimigos reais e imaginários para sobreviver.

O Brasil vai se tornando um palco de batalhas no qual o que importa é quem grita, xinga, ataca, espanca, mata mais. Cada um por si e Deus acima de todos. O respeito à vida? Foda-se.

Falta de solidariedade

Os bons governantes ficam ao lado dos seus povos nos momentos de grandes dores. Ninguém espera milagres de Jair Bolsonaro. Se espera apenas que ele exerça o cargo para o qual foi eleito em 2018. É preciso que se tenha noção da gravidade do que o presidente disse.

O que se espera do presidente não é um milagre. O Messias foi e sempre será um só. Se espera do presidente que ele tenha palavras de solidariedade com as pessoas que sofrem a perda dos entes queridos. Uma palavra de conforto a quem está com medo, uma palavra de encorajamento a quem está na frente de batalha, especialmente aos herois da saúde.   

O que se espera do presidente é que ele não crie uma crise por semana, ou uma por dia às vezes, como ele tem feito atualmente. As motivações são completamente aleatórias. Demitiu o ministro da Saúde porque ele tinha um bom desempenho. Ou mudar a direção da Polícia Federal no meio da pandemia.  

Se espera que o presidente tenha foco no problema principal, o combate ao coronavírus. Que ele se entenda com os governadores e prefeitos. É assim que funciona. Eles também foram eleitos pelo povo brasileiro, são líderes de suas regiões. É preciso se entender, em uma atuação conjunta. Se espera que um presidente presida e lidere as pessoas. Várias vezes na história os povos passaram por dificuldades, mas os governantes não disseram “e daí?”.  

Os bons governantes ficaram ao lado dos seus povos, e juntos atravessaram as dificuldades. O que se espera do presidente é que ele não passe o tempo todo bombardeando medidas dos governadores porque acha que eles serão adversários em 2022. Que ele pense em 2020, e na dor que nós enfrentamos.    

Se espera que o presidente tenha empatia com o sofrimento humano, no momento em que o Brasil conta seus mortos e atinge quase 6 mil vítimas fatais, além das subnotificações. Ninguém espera milagres de Jair Bolsonaro, apenas que ele exerça o cargo para o qual foi eleito em 2018.  

Enquanto isso no Ministério da Saúde

A crise do coronavírus confirma as mais sombrias expectativas. A pilha de cadáveres se aproxima da marca macabra de 6 mil almas. O ministro Nelson Teich, da Saúde, admitiu em videoconferência com senadores estar "navegando às cegas." E o presidente aperta a tecla do "E daí?"

Bolsonaro evoluiu da negação para a avacalhação. Pregava o fim do isolamento. Agora, insinua que a estratégia de trancar as ruas em casa é inútil. "A imprensa tem que perguntar para o (João) Doria por que mais gente está perdendo a vida em São Paulo. Tomou todas as medidas restritivas que ele achava que devia tomar. (…) Vocês não vão colocar no meu colo essa conta."

É como se Bolsonaro desejasse obter uma espécie de "E daí?" preventivo, capaz de isentá-lo de todas as culpas pelo que ainda está por vir. Capitão das aglomerações, pregoeiro da "volta à normalidade", ele pede aos brasileiros que façam como ele, fingindo-se de bobos pelo bem do presidente.

Numa semana em que virão à luz novas estatísticas sobre desemprego, Bolsonaro convida todo mundo a viver num país alternativo —um Brasil presidido por alguém que finge desconhecer o óbvio: não fosse o risco assumido pelos governadores de promover algum tipo de isolamento, a pilha de corpos seria ainda maior.

O ministro Teich, um oncologista "totalmente alinhado" com Bolsonaro, foi espremido pelos senadores a dizer o que pensa sobre o dilema shakespeariano que o atormenta desde que assumiu a pasta da Saúde —ficar ou não ficar em casa, eis a questão.

O doutor soou de forma clara como a gema: "…Você simplesmente perguntar se fica em casa o se não fica em casa é simples demais. É uma resposta simplista para um problema que é extremamente heterogêneo. (…) Não posso responder superficialmente perguntas complexas. Ficar em casa é genérico demais. Ficar em casa vai ser a melhor solução para algumas pessoas, não para todas. Vamos trabalhar isso de forma mais específica."

O estilo escorregadio irritou a plateia. Recordou-se a Teich que a adesão das pessoas à tática do isolamento vem caindo. Não é hora, portanto, para dubiedades. Imprensado, Teich viu-se compelido a reconhecer que nada mudou na orientação do Ministério da Saúde desde a saída do antecessor Henrique Mandetta.

Na contramão de Bolsonaro, que acusa os governadores de exagerar no isolamento, o doutor atribuiu aos Estados a volta gradativa das pessoas às ruas. "Essa orientação (de manter distanciamento social) vem sendo mantida (pela pasta da Saúde). E onde a gente está vendo uma alteração em relação a isso, é uma decisão dos governadores. Isso não é uma decisão nossa. Nossa orientação desde o começo é o distanciamento."

Na era do "E daí?", o presidente ignora recomendações do seu próprio governo. Se um ministro questiona o contrassenso, Bolsonaro troca de subordinado, não de discurso. "Não vou discutir aqui o comportamento (do presidente)", declarou aos senadores o sucessor de Henrique Mandetta. "Mas eu posso dizer que ele está preocupado com as pessoas e com a sociedade."

Um presidente que olha para os cadáveres fazendo cálculos eleitorais —"Vocês não vão colocar no meu colo essa conta"— está preocupado com sua candidatura à reeleição, não com as pessoas. Um médico que permite que seu prestígio técnico seja utilizado para envernizar uma pantomima eleitoreira corre o risco de ser infectado pelo vírus da desmoralização.

Depois, não adianta dizer "E dai?" ou "eu não sabia". Quem aceita ornamentar ministério confundindo certo presidente com presidente certo autoriza a plateia a a se perguntar se o país está diante de um ministro incapaz de todo ou capaz de tudo.


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