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Brasil

‘Existe um limite, que foi ultrapassado’, diz procuradora sobre omissão de Bolsonaro na Amazônia

Publicado em 30/04/2020 12:00 -

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O limite foi ultrapassado, avaliam 28 procuradores da República que obtiveram na justiça uma decisão que obriga governo federal, Ibama, ICMBio e Funai a apresentarem explicações para o aumento do desmatamento e a redução das operações de fiscalização.

A partir delas, a juíza federal Jaiza Maria Pinto Fraxe poderá exigir que o governo instale bases fixas de fiscalização nas dez localidades que concentram 60% de todo o desmatamento da Amazônia. Ela ainda suspendeu, também a pedido do Ministério Público Federal, decreto de Jair Bolsonaro que autorizava o plantio de cana-de-açúcar na Amazônia.

Apesar da proverbial falta de vontade do procurador-geral da República, Augusto Aras, em confrontar o governo federal, o MPF parece finalmente disposto a colocar limites na devastação na Amazônia, que sob Bolsonaro atingiu o pior resultado dos últimos dez anos, segundo dados do Inpe, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.

A decisão obtida na sexta-feira passada respondeu a um pedido de tutela antecipada que cobrava do governo federal maior repressão aos grileiros, desmatadores e garimpeiros. Mas não deve ficar só nisso. Os procuradores também querem que o governo se responsabilize pelos danos causados por sua omissão.

“Tradicionalmente a gente tenta primeiro negociar. Mas chega um momento em que temos que acionar o Judiciário, porque a situação está grave demais. Nosso entendimento é de que este momento chegou”, me disse a procuradora da República no Amazonas Ana Carolina Haliuc Bragança, que coordena a força-tarefa Amazônia.

Para o MPF, o descontrole que já vigorava na região – com a perseguição de Bolsonaro e do ministro Ricardo Salles a fiscais ambientais, que reduziu ações de combate ao desmatamento e ao garimpo – só aumentou com a pandemia, e agora com um risco adicional: o de contaminação dos povos indígenas, mais suscetíveis a infecções respiratórias.

A própria ferramenta jurídica escolhida pelo MPF – uma tutela provisória de urgência em caráter antecedente, termo jurídico para um pedido com efeito imediato – evidencia a gravidade da situação. Trata-se de um recurso só usado em situações tão urgentes que é preciso que a justiça tome uma atitude antes mesmo de receber a ação judicial.

“Num ambiente da normalidade, eu ajuizaria a ação e nela pediria uma tutela de urgência. Mas temos uma situação urgentíssima”, me explicou Bragança.

Os pontos críticos de desmatamento em que o MPF quer ver bases fixas operando estão localizados nos estados do Pará, Amazonas, Rondônia e Mato Grosso, e foram definidos pelo próprio Ibama como áreas prioritárias de fiscalização.

Não é nenhuma novidade. Todos são focos tradicionais de desmatamento, como as regiões de Altamira, São Félix do Xingu e Novo Progresso, no Pará; o entorno de Porto Velho, em Rondônia; o sul do Amazonas e as regiões de Colniza, Sinop e Alta Floresta, no Mato Grosso.

O MPF pediu à justiça para que o governo apresente em até cinco dias um cronograma para a instalação de bases nesses locais. Elas devem, segundo os procuradores, ser bem equipadas, ter efetivo suficiente para garantir a fiscalização e tomar cuidados para que não haja contaminação dos indígenas que vivem no entorno. O pedido ainda depende de uma decisão da juíza Fraxe para se tornar uma ordem que o governo Bolsonaro terá de cumprir – ou recorrer.

“Quando há um grau de desacerto muito grande, como os que foram narrados nesta medida judicial, e um desmatamento alto, como o que a gente está verificando, cabe ao Judiciário intervir. O que a gente precisa agora é de uma resposta rápida e efetiva do Judiciário”, me falou o procurador Daniel Azeredo, secretário executivo da 4ª Câmara do MPF, em Brasília, e um dos signatários do pedido de tutela.

Desmatamento recorde piora com pandemia

No documento encaminhado à justiça federal do Amazonas, os procuradores lembram que o desmatamento vem subindo desde 2012 até atingir o maior nível dos últimos dez anos em 2019. Em 2020, a tendência se mantém. O Prodes, um sistema de alerta de desmatamento do Inpe, mostra que os alertas de desmatamento cresceram 29,9% em março deste ano em comparação com o mesmo período do ano passado. Nos primeiros 16 dias de abril, já foram derrubados 208 quilômetros quadrados de floresta, área equivalente à de mais de 20 mil campos de futebol.

A fiscalização, por outro lado, só fez diminuir. Em 2019, pela primeira vez em 20 anos, o número de autos de infração ambiental na Amazônia ficou abaixo dos três mil. “Portanto, é possível prever que se está a caminhar para mais uma alta histórica do desmatamento de 2019 para 2020, inclusive e em que pese a pandemia de coronavírus vivenciada atualmente”, conclui o documento assinado pelos procuradores.

Eles citam duas situações em que o governo Bolsonaro não apenas foi omisso como também estimulou a ação de grileiros, madeireiros e garimpeiros. Uma delas foi a demissão do diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Olivaldi Azevedo, no dia 14 de abril. A exoneração ocorreu dias após o programa Fantástico, da Rede Globo, veicular reportagem mostrando operações do Ibama contra invasores em três terras indígenas do Pará. “[…] A mensagem passada pela União Federal com o ato de demissão é inequívoca no sentido de que o Poder Público corrobora e apoia a ação dos garimpeiros e desmatadores”, diz o MPF.

Os procuradores também criticam um tweet do Ministério do Meio Ambiente, de 20 de março, avisando que todos servidores do Ibama e ICMBio – órgão responsável pela fiscalização ambiental em Unidades de Conservação – poderiam trabalhar de casa. Nas palavras deles, a atitude deu a entender “que haveria impacto nas atividades fiscalizatórias de campo”, o que acabou “incentivando a prática de ilícitos ambientais por parte de agentes criminosos”.

Ainda assim, Bragança diz que o MPF não tem como afirmar que o governo federal está tirando proveito da pandemia para reduzir a fiscalização ambiental e incentivar o desmatamento. “Essa duas circunstâncias [a demissão do diretor do Ibama e o tweet do ministério de Salles] são estímulos à infração ambiental, sem sombra de dúvida, mas eu não posso afirmar que existe uma intenção deliberada do governo neste sentido”, me falou a procuradora.

Depois que a justiça federal avaliar o pedido para instalação urgente de postos de fiscalização, o MPF vai ingressar com uma ação pedindo a responsabilização do governo federal pelos danos causados pela omissão verificada durante o período da pandemia.

Segundo a procuradora, a ação não tem como objetivo responsabilizar algum gestor, mas garantir a reparação dos danos ao meio ambiente e às comunidades tradicionais. Ela lembra que já existe uma investigação na procuradoria da República do Distrito Federal para apurar suposto crime de improbidade administrativa cometido por Salles. Não seria a primeira condenação dele pelo crime.

Risco duplicado

Os procuradores da República estão especialmente preocupados com o risco de um verdadeiro genocídio dos povos indígenas. Os invasores de terras demarcadas, que atuam derrubando madeira ou fazendo garimpo ilegal, podem ser portadores do coronavírus e contaminar os povos da floresta, que, além de terem o sistema imunológico menos resistente às doenças dos “brancos”, costumam viver em locais afastados dos hospitais.

“O Ibama está tentando evitar que isso aconteça, mas encontra muita dificuldade por conta das interferências indevidas que vem sofrendo”, diz Azeredo.

A ameaça de contaminação já se tornou realidade. Segundo levantamento do site De Olho Nos Ruralistas, até o fim da terça-feira, 28, a contaminação já havia atingido 18 etnias e causado pelo menos dez mortes. Um dos óbitos foi de um adolescente indígena de 15 anos que vivia no território Yanomami, onde estima-se que haja cerca de 20 mil garimpeiros atuando ilegalmente.

Um risco que tira o sono de Neide Bandeira, da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, que atua junto a povos tradicionais de Rondônia. No último final de semana o indígena Ari, do povo Uru-eu-wau-wau, foi assassinado. Ele trabalhava no grupo de vigilância que tenta defender o território dos invasores.

“A situação das invasões já era ruim, e agora piorou. A fiscalização, que já quase não existia, agora parou de vez”, explicou Bandeira. Ela conta que os Uru-eu-wau-wau se arriscam fazendo vigílias todas as noites para tentar evitar novas invasões. A preocupação é ainda maior no caso dos índios isolados. Na terra Uru-eu-wau-wau, existem três grupos deste tipo, com pouco ou nenhum contato com os brancos. ‘Se um invasor larga qualquer objeto contaminado e um indígena pega, isso vai ser um genocídio na certa”, alertou.

A possibilidade de aumento dos crimes ambientais em meio à pandemia já vinha sendo observada por especialistas como Paulo Barreto, pesquisador sênior do Imazon. “É a famosa janela de oportunidade. A fiscalização está baixa, está todo mundo prestando atenção na pandemia, e o governo está prometendo regularizar grilagem. O cara pensa: ‘Agora é a hora, ninguém vai me incomodar e depois o Bolsonaro banca'”, analisou.

Enquanto toda a opinião pública está voltada para a pandemia, a Funai emitiu uma instrução normativa permitindo a declaração de imóveis rurais dentro de terras indígenas ainda não homologadas – existem 237 processos de demarcação de terras indígenas pendentes de homologação.

Barreto lembra que os infratores dos confins da Amazônia não ligam para regras de isolamento social, e que a pandemia desestruturou a já prejudicada capacidade de fiscalização dos órgãos federais. Ao mesmo tempo, os discursos de Bolsonaro a favor da redução de terras indígenas e da autorização do garimpo neste territórios têm efeito direto no comportamento dos criminosos.

“O presidente Bolsonaro usa muito esta técnica de soltar os cachorros. Mas depois que solta, quem vai controlar?”, questionou.


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