25/04/2024 - Edição 540

Poder

Moro não se demitiu, emitiu uma sentença condenatória contra Bolsonaro

Publicado em 24/04/2020 12:00 -

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"Disse ao presidente que seria uma interferência política. E ele respondeu: seria mesmo."

Em seu discurso de saída, na manhã desta sexta (24), Sergio Moro não apenas descolou definitivamente Jair Bolsonaro do combate à corrupção, mas denunciou pressão do presidente da República para manipular a ação da Polícia Federal.

E ao questionar a razão do desejo de trocar o diretor-geral da instituição sem nenhum motivo técnico, o agora ex-ministro da Justiça e Segurança Pública indicou tentativa de obstrução em investigações por parte de Bolsonaro. Na prática, Moro imputou um crime de responsabilidade, ao vivo, na TV. Ou melhor, vazou mais uma conversa comprometedora da República. Mas, desta vez, o gravador era ele mesmo.

Poucas pessoas ajudaram tanto a eleger um presidente quanto Moro. E poucas podem contribuir tanto com sua derrocada, ainda mais se os lavajatistas – base conjuntural de Bolsonaro – resolverem segui-lo.

Nesse sentido, ele posicionou o presidente abaixo daquilo que os moristas mais odeiam: o PT. Elogiou mais de uma vez a gestão de Dilma Rousseff e Luís Inácio Lula da Silva, que – segundo ele – não interferiram na Polícia Federal como o atual governo, o que possibilitou – em sua avaliação – o combate à corrupção. Nada ofende mais Bolsonaro do que essa afirmação.

O então juiz da Lava Jato foi um dos principais responsáveis por impedir a candidatura do ex-presidente Lula, correndo com a polêmica condenação por conta do Triplex, no Guarujá, para que uma decisão em segunda instância o tirasse do páreo – o que veio a acontecer. O líder petista era o único que derrotava o atual presidente nas pesquisas de intenção de voto.

Moro chegou a interferir na campanha eleitoral diretamente quando, seis dias antes do primeiro turno de 2018, divulgou trechos de uma delação de Antonio Palocci. A própria força-tarefa dos procuradores explicou que elas não traziam nada de útil para a investigação. Mas algo que não tem força nos autos do processo pode ter impacto na política.

Tudo isso foi bem resumido pelo próprio Bolsonaro, no dia 8 de novembro do ano passado, quando afirmou: "Se essa missão dele não fosse bem cumprida, eu também não estaria aqui, então, em parte, o que acontece na política do Brasil devemos a Sergio Moro".

Moro, em seus quase 16 meses no cargo, não conseguiu deixar nenhuma marca relevante. Seu pacote contra o crime, por exemplo, fomentava a letalidade policial sem reduzir a violência e teve que ser corrigido pelo Congresso Nacional.

Ficou mais conhecido pelas bolas nas costas que tomou do que pelos gols que fazia. Chegou à suprema humilhação de agir como advogado do presidente quando o nome dele foi citado na investigação da execução da vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes.

Mas, mesmo com a divulgação de suas conversas com a força-tarefa da Lava Jato pelo site The Intercept Brasil e veículos parceiros, Sergio Moro manteve sua popularidade praticamente intocada, enquanto Bolsonaro via a sua ir caindo à medida que não entregava o crescimento econômico e a queda do desemprego no ritmo prometido. Inseguro, o presidente adotou o hobby de tratar Moro como inimigo. Agindo assim, acabou por transformar a paranóia em fato consumado.

Desde que assumiu, ele vem tentando engolir instituições de monitoramento e controle, como a Polícia Federal, Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), Receita Federal, Procuradoria-Geral da República em nome de seu projeto de poder e da proteção de seus filhos, envolvidos em desvios de recursos públicos via rachadinhas e em linchamentos digitais. 

A disputa com o ministro da Justiça, Sergio Moro, para além de suas dimensões psiquiátrica e eleitoral, se insere nesse processo e na iminência de responsabilização de seus filhos. O presidente sabe que não consegue controlar a base da Polícia Federal, mas – como mesmo disse Moro – ele deseja ter acesso a informações sigilosas. E, com isso, garantir a seu clã vantagem política sobre os adversários.

Seu discurso de saída fez um balanço (muito generoso) de sua gestão à frente do ministério, mas focou em mostrar que Bolsonaro é um dano – até maior que o PT – para o combate à corrupção.

Com isso, adubou o caminho do impeachment do ex-chefe e começou a pavimentar o seu para as eleições de 2022. Ele pode negar à vontade, mas o pronunciamento desta sexta não foi de saída, mas de alguém que se lança à Presidência da República.

Delação premiada

Dizer que Moro pediu demissão do cargo de ministro da Justiça é muito pouco para traduzir o que aconteceu em Brasília no final da manhã desta sexta-feira. Moro não se demitiu, ele se reinvestiu na condição de juiz para emitir uma sentença contra Jair Bolsonaro. Condenou o presidente pelo crime de tramar o uso político da Polícia Federal para abafar investigações, inclusive inquéritos que correm no Supremo Tribunal Federal.

Desde o início da crise do coronavírus, quando Bolsonaro começou a conspirar contra si mesmo de forma mais intensa, o país receava que surgisse uma encrenca terminal, capaz de empurrar a conjuntura para o caos. Temia-se o aparecimento de um fato que justificasse o uso do ponto de exclamação que se escuta quando as pessoas dizem "não é possível!" Pois bem, o sinal foi dado.

A saída de Moro, chutando a porta, ficará gravada no enredo da tragicomédia em que Bolsonaro transformou a sua Presidência como um marco da derrocada. De agora em diante, tudo é epílogo para o capitão. Na prática, Moro cancelou a primeira posse de Bolsonaro. Sua despedida marca a reinauguração do governo. O presidente é o mesmo, só que virado do avesso.

Ao esmiuçar as conversas antirrepublicanas em que Bolsonaro lhe disse que desejava aparelhar a Polícia Federal para anestesiar os inquéritos que rondam o clã presidencial, Moro arrancou da cena o cordeiro antissistema que prevaleceu na campanha de 2018. Materializou-se na sentença do agora ex-ministro um lobo sistêmico que aparelha a PF e negocia com a alcateia corrupta do centrão uma a blindagem política contra o derretimento do seu mandato.

Moro como que retirou do baralho de Bolsonaro a carta da reeleição. Acomodou no lugar o curinga do impeachment. Içado ao primeiro escalão do governo como símbolo do combate à corrupção, Moro ofereceu no seu último ato no ministério farto material para o enquadramento de Bolsonaro no crime de responsabilidade. Deu a Bolsonaro uma aparência de sub-Lula ao realçar que nem mesmo os governos do PT ousaram converter a PF num órgão companheiro.

Ao informar que vai ao mercado à procura de emprego, Sergio Moro declarou que continuará à disposição do país. Com a popularidade na casa dos 50%, contra cerca de 30% atribuídos ao agora ex-chefe, Moro deixou no ar o aroma de um flerte com as urnas de 2022. Bolsonaro criou um pesadelo do qual terá dificuldade para despertar.

Declarações podem acelerar impeachment de Bolsonaro, dizem políticos e juristas

Após as acusações feitas por Moro, parlamentares e juristas avaliam que aumentam as possibilidades de impeachment do presidente. Para além das implicações políticas, as informações reveladas por Moro podem ter consequências jurídicas.

Para o professor de direito público Antonio Rodrigo Machado, o discurso do agora ex-ministro é “gravíssimo” e oferece argumentos jurídicos para um impeachment do presidente Jair Bolsonaro. Na avaliação de Machado, há fortes indícios de que o presidente praticou crime de responsabilidade e crimes comuns, o que exige investigação.

“Moro deixou nas entrelinhas que houve tentativa de interferência do presidente nas investigações da Polícia Federal. Isso já vinha sendo noticiado pela imprensa e pode ter enquadramento de crime de responsabilidade, por improbidade administrativa”, explicou o jurista. “É o momento mais difícil do bolsonarismo. Isso também oferece argumento político para eventual abertura de um processo de impeachment”, acrescentou.

Antonio Rodrigo Machado ressalta que o papel da PF é de investigação policial, estatal. “Não pode ser confundido com trabalho governamental”, afirmou. Segundo ele, o papel do Ministério da Justiça é definir políticas públicas, privilegiando, por exemplo, a destinação de orçamento público. Pedir informações antecipadas sobre operações policiais e investigações criminais no Supremo Tribunal Federal (STF), como pediu o presidente, conforme denúncia do ex-ministro, é conduta ilegal, observa o jurista.

O ministro Marco Aurélio Mello, do STF, acompanhou o pronunciamento de Moro. Não gostou do que ouviu, elogiou o ex-ministro e recorreu ao bordão que “de tédio não morremos”.

“Tudo que foi colocado é muito ruim. O ex-ministro Moro foi muito elegante e tem minha admiração. Tem que se manter a independência dos órgãos, é a segurança do cidadão”, disse Marco Aurélio sobre o conteúdo das revelações de Moro.

Sobre as consequências que podem alcançar o conteúdo da fala de Moro, que revelou ações de ingerência e tentativas de Bolsonaro em interferir na PF e também ter alguma interferência ao que ocorre no STF que o envolve e sua família.

“O amanhã dirá, vamos aguardar. Não alcançou o Supremo. O Supremo é supremo. Pode inclusive cassar atos do presidente da República”.

O ministro foi perguntado se os fatos apontados por Moro podem levar ao impeachment do presidente Bolsonaro. Respondeu: “Com a palavra, o Poder Legislativo”.

Marco Aurélio aproveitou e comentou sobre a chegada de Bolsonaro ao poder. Anteviu os riscos. “Num seminário, no verão de 2017 discorri sobre risco de se eleger um presidente populista de direita. Temia pelo Brasil. Foi eleito então um deputado federal, o Jair Bolsonaro, que passou o tempo todo batendo em minorias e fez da vida parlamentar aquele temor. Não foi premonição, decorre da minha visão prognóstica e o que tenho acumulado”

Parlamentares veem governo afundar

Com reações negativas à saída de Sergio Moro do comando do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, parlamentares da oposição consideram que as acusações feitas contra o presidente, numa espécie de “delação premiada”, aproximam o governo de seu fim. Da esquerda à direita, a saída de Moro é alvo de críticas.

O deputado federal Marcelo Freixo (Psol-RJ) disse que o discurso de saída de Moro implodiu o governo Bolsonaro. “[Moro] Afirmou que o presidente quer controlar a PF para deixar impunes os crimes da família e para atacar a Democracia e o Estado de Direito”, disse Freixo. Para a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), o pronunciamento de Moro foi “o ‘Grand Finale’ de um Governo que nunca começou”.

O líder do PSB na Câmara, Alessandro Molon (RJ), afirmou que o Brasil continua sem governo. “A saída de Moro mostra que o presidente não consegue sequer manter seus aliados próximos, imagine costurar saídas pra crise. Brasil sem direção!”

Para o líder do DEM na Câmara, Efraim Filho (PB), Sergio Moro deu exemplo de coragem, equilíbrio e caráter. “Renunciou ao cargo de juiz federal para servir ao país e sua saída significa decepção no sonho de milhões de brasileiros. Notícia ruim para o governo e pior para o Brasil.”

No Senado, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) disse que as acusações precisam ser apuradas”. “Vamos averiguar todas as declarações do agora ex-ministro Sérgio Moro e tomar as medidas cabíveis”, disse o senador da oposição.

O deputado Angelo Coronel (PSD-BA), presidente da CPMI das fake news, afirmou que Moro sai deixando claro que Bolsonaro quer interferir na PF. “Por quê? Será que a equipe atual descobriu algo que está incomodando o governo? E disse que Bolsonaro quer alguém de sua confiança na PF para obter diretamente informações. Qual objetivo disso? Não é papel da PF esse tipo de serviço”, afirmou o deputado.

“A decisão do Presidente Jair Bolsonaro de trocar o Diretor-geral da Policia Federal, à revelia do Ministro Sérgio Moro, não lhe deixou outra saída senão a de pedir a sua exoneração do cargo de Ministro da Justiça e da Segurança Pública”, afirmou, em nota, a Frente Parlamentar de Segurança Pública da Câmara dos Deputados.

O Podemos, sigla ligada à Lava-Jato, afirmou que a saída de Moro do governo representa o afastamento do governo Bolsonaro do sentimento popular e do combate à corrupção. “É a derrota da ética”, disse a presidente do partido, deputada Renata Abreu (SP). O líder do Podemos na Câmara também se manifestou. “O Governo perde tecnicamente um dos seus melhores e mais respeitados nomes, e o combate à criminalidade e à corrupção sofre um duro golpe”, disse o deputado Léo Moraes (PR).

O líder do PSDB na Câmara, deputado Carlos Sampaio (SP), disse que a demissão de Moro é uma sinalização muito ruim à sociedade. “Sua saída não só é uma perda considerável ao governo e ao país, como pode indicar uma mudança preocupante na condução dos assuntos pertinentes ao Ministério da Justiça. É lamentável que o governo, em um momento de crise como este, perca um aliado de tamanha envergadura moral”.

Ex-líder do governo Bolsonaro no Congresso, a deputada federal Joice Hasselmann (PSL-SP), diz que o teor das declarações de Sergio Moro é “avassalador” e que o presidente “não cumpriu com a palavra” de dar carta branca ao ministro e preservar a autonomia da PF.

Líder do partido pelo qual Bolsonaro foi eleito e depois rompeu, o PSL, no Senado, Major Olimpio (PSL-SP) disse que a saída de Moro deixa o “Brasil derrotado”. O senador acredita que o ex-ministro se fortalece para as eleições presidenciais de 2022:

O deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP), fundador do MBL (Movimento Brasil Livre), classifica a pressão de Bolsonaro para interferir na Polícia Federal como “traição à direita” por não fazer um genuíno combate à corrupção.

O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, que se tornou protagonista do governo durante os trabalhos contra a pandemia de coronavírus, adotou um tom mais positivo sobre a saída do ex-colega de governo. Moro apoiava a política de isolamento social do Ministério da Saúde e não o discurso de Bolsonaro por flexibilizar o confinamento. “Outras lutas virão”, tuitou Mandetta.

Para o fundador do partido Novo e candidato à Presidência em 2018 João Amoêdo, é “inaceitável” o presidente tentar ter acesso a informações privilegiadas e, portanto, controlar investigações.

Mesmo entre aliados próximos de Bolsonaro, o clima foi de luto. A deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) preferiu não comentar as acusações de Moro contra o presidente, mas lamentou a saída do ministro.

A Frente Parlamentar da Segurança Pública da Câmara diz que recebeu com “extremo pesar” a notícia de saída de Moro. Em nota assinada pelo deputado federal Capitão Augusto (PL-SP), presidente da bancada, manifestou preocupação com “postura intransigente” do presidente em trocar o comando da PF à revelia do então ministro.

A direção do Podemos, partido que tentou colar sua candidatura presidencial em 2018 à imagem de Moro, também lamenta a saída do ministro. “Representa o afastamento do governo Bolsonaro do sentimento popular e do combate à corrupção. É a derrota da ética”, diz nota assinada pela presidente nacional do partido, a deputada federal Renata Abreu (Podemos-SP), pelo senador Alvaro Dias (PSDB-PR), que foi candidato à Presidência, e o deputado federal Léo Moraes (PSDB-PR), líder da legenda na Câmara.


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