26/04/2024 - Edição 540

Especial

Colapso

Publicado em 17/04/2020 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Falta pouco, bem pouco. Na próxima terça-feira, dia 21, o número de leitos de UTI no país como um todo já não vai ser suficiente para atender à demanda. A conclusão é de um modelo matemático feito por pesquisadores das universidades federais de Alagoas e Rio Grande do Norte, entre outras instituições. Só que o resultado leva em conta todos os cerca de 60 mil leitos disponíveis no Brasil, e a situação é diferente em cada estado. Ou seja: em alguns lugares, o caos chega bem antes.

No Ceará, já chegou. O sistema colapsou na quinta-feira (16), com 100% das UTIs ocupadas, e ainda há pelo menos 48 pacientes na fila de espera. Só há 310 leitos de UTI no total. O pior é que o pico das infecções ainda não aconteceu por lá. Como relatamos ontem, o governo do estado esperava que isso aconteceria “só” na terça-feira que vem, mas as coisas estão piores do que se previa. E a projeção já era ruim o suficiente. Segundo um documento publicado pelo estado na quarta à noite, a partir do dia 5 de maio poderia haver 250 mortes por dia caso o comportamento se mantivesse. 

“A pressão assistencial, independente dos números, é muito grande sobre os leitos de UTI porque não conseguimos abrir todos os 800 leitos que a gente projetava. Nossos respiradores não foram entregues, e estamos com muitos problemas em relação a isso”, diz Magda Almeida, secretária-executiva de Vigilância e Regulação, no G1. Mesmo os leitos de enfermaria devem se esgotar na semana que vem.

O colapso no Ceará acabou se antecipando ao do Amazonas, que, no entanto, segue numa situação complicada. Na quinta chegaram 25 novos leitos de UTI no hospital Deplhina Aziz, em Manaus. Ainda assim, a capacidade total é de apenas cem, e já há 75 pacientes graves de covid-19 em vagas semi-intensivas. Aliás, cenas de horror já começam a aparecer. Um vídeo gravado no hospital estadual João Lúcio, também na capital, mostra uma ala onde dez corpos dentro de sacos mortuários dividem espaço com pacientes.

A Justiça acatou uma ação do Ministério Público e determinou uma série de medidas no estado, como a contratação dos leitos já existentes em outros hospitais e a retirada dos pacientes que estão sem assistência nos prontos-socorros. Do interior, em Manacapuru, chega uma boa notícia. Na cidade que concentra o maior número de casos fora de Manaus até agora – 146, com seis mortes –, um hospital de campanha foi inaugurado para atender aos cerca de 300 mil habitantes do município e do entorno. Há que ver se o número de leitos é suficiente: são 38, sendo cinco infantis.

Mesmo que 26% de todos os leitos de UTI do país estejam em São Paulo, um dos hospitais da capital já atingiu sua capacidade máxima na quinta. No Emíio Ribas, todas as 30 vagas de UTI estão ocupadas por pacientes com coronavírus, e a unidade recebe todo dia cem pedidos de vaga. Outros sete hospitais estão com mais de 70% de ocupação nas UTIs, e alguns com mais de 80%.

Municípios do Rio e do Espírito Santo receberam do Exército um questionário com o carimbo de “URGENTE”. Tinham que responder sobre a quantidade de cemitérios e a capacidade de realizarem sepultamentos em massa.

Não bastasse a insuficiência de leitos no país, o Brasil tem 1,6 milhão de pessoas vulneráveis ao coronavírus que têm dificuldade para chegar às unidades de saúde capazes de fazer a internação. Isso só nas 20 maiores cidades. O Ipea chegou a esse número considerando a população de baixa renda que têm mais de 50 anos e que mora em uma distância maior do que cinco quilômetros dessas unidades. E média, 41% das pessoas de baixa renda e mais de 50 anos terão essa dificuldade. No Duque de Caxias, estado do Rio, está o pior percentual: 85%.

O Estudo                              

O estudo, publicado no dia 3 de abril, foi submetido a publicação internacional e é preliminar, ou seja, ainda não foi avaliado por pares — mas mostrou aderência aos dados reais pelo menos até o último dia 15 de abril: a evolução do números de mortos divulgados pelo Ministério da Saúde (um indicador com menor subnotificação do que o volume total de casos e, por isso, mais confiável) tem sido consistente com as previsões apontadas pela equipe e usadas como base para o cálculo da utilização dos leitos de UTI nos hospitais.

O trabalho leva em consideração ainda as medidas de distanciamento social atualmente vigentes — a chamada "quarentena voluntária" —, seu impacto na redução da transmissão da doença e o percentual médio de infectados que precisam ser internados nas unidades de terapia intensiva por apresentarem quadros mais graves de infecção nos pulmões.

No último dia 14, o Ministério da Saúde informou que estabelecimentos de saúde públicos e privados nos 26 Estados e Distrito Federal passariam a ter de registrar em um sistema unificado as internações hospitalares dos casos suspeitos e confirmados de coronavírus.

O "censo hospitalar", segundo a pasta, servirá para avaliar o consumo dos leitos da rede assistencial e a média de permanência dos usuários. O primeiro balanço deve sair na próxima semana.

Até então, o país não tem um dado nacional consolidado sobre a utilização dos leitos de UTI. Os números têm sido divulgados de forma desordenada pelos Estados — alguns com atualizações diárias e outros com notificações esporádicas e incompletas sobre as taxas de ocupação.

Como os dados nacionais sobre o uso de leitos de UTI ainda não estão disponíveis, o grupo de pesquisadores utilizou como parâmetro inicial uma pesquisa da Agência Nacional de Saúde Suplementar de 2013 com o grau de utilização médio desses leitos no país e, em paralelo, os dados disponíveis no Datasus com a capacidade instalada na rede pública e privada no país.

São cerca de 60 mil leitos — esse total contabiliza, entretanto, unidades que não estão disponíveis para tratamento de covid-19, como UTIs neonatal, o que foi levado em conta pelos pesquisadores.

A partir das premissas, o modelo aponta uma saturação do sistema por volta do dia 21 de abril. O físico Askery Canabarro, um dos autores do estudo, ressalta que o resultado reflete um dado consolidado para o país e não quer dizer, por isso, que todas as UTIs estarão ocupadas necessariamente nesta data.

De um lado, a distribuição dos leitos pelo território nacional é desigual — 26% do total, ou 15,7 mil, estão em São Paulo. De outro, a evolução da doença tem afetado algumas áreas mais do que outras. "Há Estados mais ou menos vulneráveis", ele destaca.

A intenção dos pesquisadores era avaliar se as medidas tomadas até o momento para tentar evitar o colapso do sistema de saúde eram suficientes, à semelhança do que fizeram pesquisadores do Imperial College London, que apresentaram em meados de março um modelo matemático que levou o Reino Unido a mudar sua estratégia contra a pandemia.

"A gente já fez muito, mas infelizmente precisamos fazer mais", avalia Canabarro, que acaba de concluir o pós-doutorado em Física.

Mais de 3 milhões de infectados

As projeções do modelo desenvolvido pelo grupo de pesquisadores apontam para um número total de infectados de 3,15 milhões, com 393 mil mortos em um período que não está predeterminado, mas que, segundo o pesquisador, se concentraria em alguns meses.

Ele ressalta, entretanto, que esse é o cenário de "inércia", caso as medidas atuais não sejam endurecidas — e que leva em conta dados compilados pelo Google sobre o deslocamento das pessoas em diferentes cidades, apontando uma taxa de isolamento média de 50%.

Canabarro acredita, entretanto, que o Brasil pode repetir a trajetória de outros países: à medida que o volume de mortos crescer, as regiões mais afetadas farão quarentenas mais restritivas, que diminuirão a incidência da doença e, por consequência, o número de mortos.

Os pesquisadores também fizeram projeções para cenários alternativos para avaliar a efetividade das medidas tomadas até agora. Caso não houvesse qualquer tipo de restrição de deslocamento, por exemplo, o número total de infectados seria de 30,47 milhões, com 1,45 milhão de mortos.

Em um cenário de isolamento vertical como aquele defendido pelo presidente Jair Bolsonaro, com distanciamento social apenas daqueles com mais de 60 anos, seriam cerca de 26 milhões de infectados e 723 mil mortos.

Apagão informacional

Os dados oficiais já são ruins: 30.891 casos confirmados e 1.952 mortes por covid-19 registradas no Brasil até esta sexta-feira (17). Mas sabemos que a subnotificação é enorme. É o que mostram duas análises que estimam com maior segurança o tamanho do problema. De acordo com a mais recente, feita pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS), que envolve PUC-Rio, Fiocruz e outras instituições, o número real é cerca de 12 vezes maior. Com base nos registros do Ministério da Saúde, o número de casos confirmados pode chegar a 40 mil, no cenário mais pessimista. A segunda, do portal Covid-19 Brasil (que tem pesquisadores da UnB, da USP e outros) é ainda mais dura, e fala em um número 15 vezes maior.

As duas partem do total de mortes confirmadas e se apoiam em uma comparação entre a taxa de letalidade observada no Brasil e a que seria esperada, considerando os países onde já existem dados mais consolidados sobre a mortalidade. Pelo que observamos nas duas análises, a disparidade nos resultados parece se dever a uma diferença no valor usado como a taxa esperada.

Mas dá pra entender bem a ideia de ambos os cálculos a partir da metodologia do NOIS, que está descrita na nota técnica divulgada pelo grupo. Pegando apenas os casos registrados que já tiveram desfecho (quando o paciente teve alta ou morreu), essa taxa é de 16,3%. Mas a taxa esperada deveria ser de 1,3%, ou seja, 12,5 vezes menor. A conclusão não é que o vírus mate mais aqui, mas justamente que há um monte de casos, incluindo leves e assintomáticos, que não estão entrando na conta. No geral, o estudo indica que só 8% dos casos são registrados, mas isso varia entre estados. No Rio e em São Paulo, esse percentual é de 7,2% e 3,2%, respectivamente. O pior é o da Paraíba, onde só 2,2% dos casos estão sendo diagnosticados.

Reunimos as duas estimativas e fizemos umas contas rápidas com base nos registros divulgados pelo Ministério no último dia 13. Dá pra dizer que devemos estar, na verdade, com algo entre 300 e 350 mil casos. De todo jeito, é muito ruim. E, como a taxa de ocupação de leitos de UTI no país já está em 75%, o futuro é bem tenebroso. “Teremos em muitas cidades um cenário como o de Guaiaquil, no Equador, com pessoas mortas em casa e corpos nas ruas, porque os hospitais estarão lotados”, prevê Domingos Alves, um dos pesquisadores do Covid-19 Brasil. O jeito de evitar isso é só um: isolamento social. Que está descendo, em vez de subir.

Aliás, o grande problema da subnotificação é justamente o círculo vicioso que ela pode gerar em relação ao isolamento, como explica um dos pesquisadores do NOIS, Marcelo Prado: “À medida que a subnotificação aumenta, um número maior de pessoas pode relaxar na questão do isolamento social e, com isso, aumentar as taxas de contágio da doença”.

Cá entre nós, isso não devia acontecer: como vimos, mesmo considerando só os dados oficiais, em menos de dois meses o novo coronavírus já matou mais do que a dengue, H1N1 e sarampo mataram juntos em 2019. Deveria ser mais do que suficiente para assustar. Além disso, é pouco provável que os técnicos do Ministério da Saúde e das secretarias estaduais não imaginem o problema da subnotificação. Decisões sobre endurecer ou relaxar medidas de isolamento, por exemplo, só deveriam ser tomadas levando isso em conta.

Lembramos que existem as mortes suspeitas, que ainda não estão nas estatísticas da covid-19 e, portanto, acabam não entrando nas estimativas também. Só em São Paulo, nas últimas duas semanas os enterros de supostas vítimas da doença quadruplicou. Em Nova Iorque, no último mês o número de mortes por todas as causas dobrou em relação ao esperado para esse período do ano. Lá, centenas de pessoas estão morrendo em casa ou nas ruas. E ninguém sabe dizer quantos desses óbitos são devidos ao coronavírus.

Reforçando a probabilidade de que os casos da doença sejam muito maiores do que o divulgado pelo Governo Federal, estão os primeiros resultados do grande levantamento que a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) está fazendo no Rio Grande do Sul. Os dados mostram que, dos 4.189 testes realizados na população, dois deram positivo. Parece pouco, mas significa que 0,05% dos gaúchos já devem ter sido contaminados – ou 5.660 pessoas no total, 15 vezes mais do que o número oficial contado pelo estado na época dos testes.

Mas, é bom lembrar como funciona: é um monitoramento que vai ser feito ao longo de semanas. Com testes rápidos, que medem a presença de anticorpos contra o novo coronavírus em pessoas aleatórias (sintomáticas e assintomáticas), a ideia é conseguir estimar de verdade qual a prevalência de infecções na população.

Isso é importante não só para conhecer o cenário atual e mensurar a subnotificação, mas também para tentar prever quando e como vamos poder relaxar ou acabar com o isolamento. Num episódio recente do podcast Luz no fim da quarentena, da Piauí, Fernando Reinarch (que faz parte do conselho administrativo do Instituto Serrapilheira, financiador da pesquisa) explica em detalhes.

Como sabemos, até que haja uma vacina, o novo coronavírus vai seguir se espalhando, a uma velocidade que depende basicamente do grau de distanciamento social de cada população, até que seja atingida a famosa imunidade de rebanho. Ou seja, com cerca de 80% da população infectada. Só dá para atingir isso de forma segura se o sistema de saúde tiver condição de tratar adequadamente todos os pacientes, por isso as quarentenas são tão necessárias.

O tipo de monitoramento feito pela UFPel é o termômetro que pode ir medindo qual o percentual da população que já foi afetado e estimando a velocidade com que esse espalhamento acontece. Quanto mais gente infectada, mais perto estaremos do fim da quarentena (caso uma vacina não chegue antes, é claro). Quanto menos óbitos houver pelo caminho, melhor. A necessidade de reaberturas muito bem planejadas é justo para que grandes ondas de contaminação não joguem o número de mortes lá para cima. Estão previstas outras três etapas iguais da testagem, com um intervalo de duas semanas entre cada um.

Na semana que vem, começa o levantamento nacional, também coordenado pela UFPel. Vão ser testadas cem mil pessoas, em três rodadas.

Emergência e sobrecarga

Das 27 capitais brasileiras, 12 já estão em estado de “emergência”. O termo, usado pelo Ministério da Saúde, não indica que nas outras esteja tudo bem, mas que nessas 12 a taxa de infecções está pelo menos 50% maior que a média nacional. Hoje a média é de 111 casos para cada milhão de habitantes. A pior é Fortaleza, onde o índice é de 573. Em seguida vêm São Paulo (518) e Manaus (482). Também estão na lista: Macapá, Florianópolis, Recife, São Luiz, Rio, Vitória, Porto Alegre, Brasília e Boa Vista.

“Dividimos essa incidência em três partes, como um sinal de trânsito. Em vermelho [cor que indica o patamar de emergência], é um alerta, pare, interrompa”, explicou ontem o secretário de vigilância em saúde, Wanderson Oliveira, referindo-se a medidas de distanciamento social e redução de circulação. Em amarelo, ficam as capitais que merecem “atenção”, porque estão acima da média, mas nem tanto. Os verdes são os que estão abaixo da média.

Taxas de infecção muito altas em geral significam sistemas de saúde sobrecarregados. Em Recife, que está no grupo da “emergência”, mais de 90% dos leitos já estão ocupados. Mas ainda tem aqueles lugares que nem chegaram nas altas taxas ainda e já estão com os leitos totalmente comprometidos, como Campo Grande, que já tem nada menos que 98% de ocupação.

Cinco estados e o Distrito Federal estão em situação crítica com incidência da covid-19 50% acima da nacional — de 111 casos para 1 milhão de habitantes nesta segunda-feira (13), de acordo com o Ministério da Saúde. No Amazonas, que já enfrenta dificuldades para atender pacientes infectados pelo novo coronavírus, o indicador é de 303 para cada milhão de habitantes.

Logo atrás, estão Amapá (incidência de 281 por milhão de habitantes), Distrito Federal (209 por milhão de habitantes), Ceará (196 por milhão de habitantes), São Paulo (192 por milhão de habitantes) e Rio de Janeiro (186 por milhão de habitantes).

Entre pesquisadores da área da saúde, é praticamente unânime que qualquer tipo de relaxamento no isolamento social pode provocar um colapso no sistema de saúde. Embora boa parte dos governadores tenha adotado medidas para restringir a circulação de pessoas, houve relaxamento em alguns municípios ou descumprimento das orientações por parte da população.

Relaxamento Geral

No entanto, na última semana o isolamento social diminuiu em todos os estados brasileiros, menos no Amazonas, segundo dados de movimentação de celulares pela empresa In Loco. As informações, compiladas pela Época, vão até o dia 9 de abril, portanto antes do feriado, e mostram uma queda constante desde a semana de 24 a 30 de março. O isolamento esteve sempre abaixo dos 60% em todas as unidades da federação. Mesmo na semana em que os números estiveram maiores, nunca ultrapassavam essa marca.

E olha que a maioria dos estados tem medidas de restrição. Apesar da nova orientação do Ministério da Saúde – de flexibilizar o isolamento nos locais que estejam com ‘folga’ de mais de 50% de sua estrutura hospitalar –, 19 das 27 unidades da federação disseram à Folha que vão manter por prazo indefinido o distanciamento social, ou que pretendem flexibilizar só alguns pontos. Esses “alguns pontos” é que preocupam. Quase metade dos estados pretende abrir comércio e escolas em breve, por exemplo.

A flexibilização pedida por Bolsonaro, acatada em parte pelo Ministério e agora vislumbrada pelos estados pode ser catastrófica. Não bastasse a palavra quase unânime de pesquisadores ao redor do mundo, o Banco Mundial também concluiu que o isolamento geral é mais efetivo do que o “seletivo”. Não sabemos o que mais falta dizer.

A Procuradoria Geral dos Direitos do Cidadão, órgão do MPF, emitiu uma nota técnica apontando que a flexibilização da quarentena pode gerar ação por improbidade contra os gestores, caso não seja feita com respaldo técnico (comprovação de que se superou a fase de aceleração do contágio, de que os casos e mortes caíram, de que há equipamentos de saúde suficientes para dar conta do pico de contaminação). É uma orientação para que procuradores tomem medidas nos estados (precisa combinar com Augusto Aras, contudo…). A improbidade administrativa pode implicar perda da função pública e inegibilidade.

Mas, enquanto isso, o governo federal pode colocar na Justiça estados que endureçam mais suas medidas. O recado foi dado pelo advogado-geral da União André Mendonça, e foi dirigido, nada sutilmente, ao governador de São Paulo. Dois dias depois que João Doria anunciou que a PM pode agir contra furadores de quarentena, o comunicado de Mendonça diz que “medidas isoladas, prisões de cidadãos e restrições não fundamentadas em normas técnicas emitidas pelo Ministério da Saúde e pela Anvisa abrem caminho para o abuso e o arbítrio”. O objetivo do governo, quem diria, seria “garantir a ordem democrática”.

OMS reforça lista de critérios para suspensão do isolamento

Em meio a tudo isso, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reforçou, no último dia 13, os critérios que países devem analisar antes de suspender o isolamento como forma de combate à Covid-19:

– a transmissão da Covid-19 deve estar controlada;

– o sistema de saúde deve ser capaz de detectar, testar, isolar e tratar todos os casos, além de traçar todos os contatos;

– os riscos de surtos devem estar minimizados em condições especiais, como instalações de saúde e casas de repouso;

– medidas preventivas devem ser adotadas em locais de trabalho, escolas e outros lugares aonde seja essencial as pessoas irem;

– os riscos de importação devem ser administrados;

– as comunidades devem estar completamente educadas, engajadas e empoderadas para se ajustarem à nova norma.

Dois especialistas da organização alertaram para a forma que a suspensão do isolamento deve acontecer. O diretor do programa de emergências da OMS, Michael Ryan, afirmou que não se pode substituir a quarentena por "nada", ressaltando que outras medidas de saúde pública – como lavar as mãos com frequência e manter o distanciamento social – precisariam ser mantidas pelo "futuro previsível".

"Existem coisas que precisam ser feitas. Você não pode substituir a quarentena por nada. Você precisa substituir a quarentena por uma comunidade muito profundamente educada, comprometida, engajada e empoderada. Nós precisaremos mudar nosso comportamento pelo futuro previsível", alertou. "Teremos que ter esses comportamentos adaptados – em termos de higiene pessoal, distanciamento físico, sermos cuidadosos – por um longo tempo", completou.

Ryan lembrou, também, que as máscaras não são uma alternativa à quarentena. "Máscaras não são uma alternativa à quarentena. E nós dissemos isso publicamente várias vezes: a OMS vai apoiar países que querem implementar uma estratégia mais ampla de usar máscaras ou de cobrir o rosto, desde que seja parte de uma estratégia mais abrangente", alertou. O uso de máscaras deve ser, lembrou Ryan, incorporado a estratégias de testagem, isolamento e tratamento de casos, higiene das mãos e educação de comunidades.

A líder técnica do programa de emergências da OMS, Maria van Kerkhove, acrescentou que a suspensão da quarentena não deve acontecer de uma vez só. "É muito importante que a suspensão dessas medidas não ocorra toda de uma vez, em toda a Europa. Se o sistema não está capacitado para identificar onde o vírus está, isolar os casos, achar os contatos, ter os leitos livros para tratar dos pacientes, então vai ficar saturado de novo", alertou.

"Então, o que pode acontecer é que [o isolamento] seja suspenso em certas áreas estratégicas, talvez onde houver menos incidentes, e, se isso puder acontecer lentamente, então o sistema pode se deslocar para onde precisar ir para detectar casos. Enquanto isso, outras partes do país permanecem sob medidas restritas", avaliou van Kerkhove. "Mas é muito importante que a comunidade entenda isso, porque pode ser que seja preciso um tempo um pouco mais longo que você precisa ficar em casa ou trabalhar de casa, ou que as escolas precisem ficar fechadas. Mas é temporário", ressaltou.

Incerteza

Embora o relaxamento do isolamento social na China, país de origem do novo coronavírus, tenha apontado um possível caminho de como será o futuro da pandemia, os próximos meses serão de incertezas no Brasil. Apesar dos estudos em curso, ainda não se sabe exatamente como a imunidade à covid-19 é adquirida, o que revela algumas fragilidades nas apostas da chamada “imunidade de rebanho”, em um cenário em que a ampla testagem da população não é realidade.

Sem um remédio com eficácia comprovada de uso seguro em escala e sem vacina, o ritmo de contágio do novo coronavírus e seu impacto no sistema de saúde são determinantes nas previsões. O que depende diretamente das tomadas de decisão de governantes sobre restringir a circulação de pessoas e do comportamento social. “Essa é uma doença, como muitas outras, que você precisa de um comportamento da população para ajudar. Ou a sociedade faz um pacto social de que a gente quer sair dessa, ou a coisa complica, até pela forma de transmissão”, afirmou ao HuffPost Brasil Clarissa Damaso, professora de virologia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Além do desconhecimento no meio científico de como age esse novo patógeno, o perigo do SARS-Cov-2 — nome científico do novo coronavírus — é a alta transmissibilidade combinada aos graves danos que causa ao organismo na forma mais grave da covid-19. As mortes, em geral, são causadas por complicações decorrentes de pneumonia (infecção nos pulmões) causadas pelo vírus.

No início da pandemia, em janeiro, acreditava-se que o SARS-CoV-2 se comportava como o coronavírus que causou a SARS (síndrome respiratória aguda grave), doença detectada pela primeira vez no fim de 2002, na China. O SARS-CoV se replicava apenas no trato respiratório inferior, próximo da região dos pulmões. O novo coronavírus, por sua vez, se replica também no trato respiratório superior, que inclui as cavidades nasal e oral. Por isso, a transmissibilidade é maior.

“Esse vírus consegue ser pior porque ele replica tanto no trato respiratório inferior, quanto no trato respiratório superior, como um vírus de resfriado, no nariz, na orofaringe, e aí qualquer espirro, tossezinha você já têm uma transmissão de vírus grande. O que tem se notado é que a carga viral nessa região é alta. Acaba transmitindo para pessoas na rua, em casa, e também no hospital, quando as pessoas pioram”, explica Clarissa Damaso.

De acordo com a pesquisadora, quando o vírus sai da China e chega a países europeus, como Itália e Espanha, se acende o sinal de alerta. “O comportamento das pessoas é de ir para rua. Não são pessoas de ficar em casa. O espanhol é assim. O italiano é assim. E o brasileiro é assim. Basta ver no fim de semana. Não são pessoas de estarem confinadas em casa. São pessoas de estar na rua. E não são pessoas disciplinadas”, afirma.

A imprevisibilidade do comportamento social é uma ressalva a usar a retomada do contato social na China como parâmetro para o Brasil. “Tenho muito receio de como a gente vai progredir se a população não fizer esse pacto social. Tomar como exemplo a Ásia é bem complicado porque você não têm essa estruturação [social]. É uma doença que depende de vários fatores. Por isso que acho que a comparação entre países de como a curva vai progredir é muito difícil”, afirma Damaso.

Após 10 semanas, a cidade de Wuhan, epicentro inicial do novo coronavírus, encerrou a quarentena no último dia 8. Embora o transporte público tenha voltado a funcionar, escolas, restaurante e bares permanecem fechados e autoridades continuam a regular a circulação de pessoas. A reabertura ocorreu após apenas três novos casos terem sido registrado na cidade nas últimas três semanas e um dia após a China não ter relatado novas mortes. O número total de infecções no país até o último dia 10 era de 81.907. Já o número de óbitos confirmados era 3.336.

No mesmo dia, no Brasil, o Ministério da Saúde registrava 1.057 mortes e 19.638 casos confirmados de covid-19. A demora no resultado de testes laboratoriais, que detectam tanto a causa do óbito quanto se a pessoa foi contaminada, leva a um atraso nos dados oficiais. Há também uma subnotificação de casos confirmados devido à limitação de testes de diagnóstico.

Em um mês, Brasil tem alta de 2.239 mortes por problemas respiratórios

A possibilidade de subnotificação é fortalecida quando se observa que o número de registros de mortes por insuficiência respiratória e pneumonia no Brasil teve um salto em março, contrariando tendência de queda que vinha sendo observada nos meses de janeiro e fevereiro. Foram 2.239 mortes a mais em março de 2020 do que no mesmo período de 2019, o que levanta a suspeita de que vítimas do coronavírus podem estar entrando nas estatísticas de outros problemas respiratórios.

Os dados são do sistema de cartórios de registro civil e foram divulgados pela Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen). De acordo com levantamento feito pelo jornal O Estado de SP na plataforma da entidade, o número de óbitos registrados em março por esses problemas respiratórios teve alta de 8,15% no País em relação ao mesmo mês de 2019. Em janeiro e fevereiro, as ocorrências haviam recuado 2,59% e 4,19%, respectivamente, em comparação com os mesmos períodos do ano anterior.

Em São Paulo e no Rio, Estados mais afetados pelo surto de coronavírus até agora, a alta de mortes por problemas respiratórios foi ainda mais expressiva do que a média nacional. O número de mortes por insuficiência respiratória e pneumonia aumentou 14,66% em território paulista em março – nos dois primeiros meses do ano, houve queda de 6,13% e 8,24%. No Rio, a alta em março foi de 10,17%.

A primeira morte por covid-19 no Brasil foi confirmada no dia 16 de março e, no final do mesmo mês, o Ministério da Saúde contabilizava 201 vítimas pela doença. A falta de testes e a demora para análise dos exames coletados, porém, levam a um provável cenário de subnotificação e atraso na confirmação de casos e mortes.

Dados do sistema InfoGripe, da Fiocruz, já haviam mostrado alta em março no número de internações por síndrome respiratória aguda grave (SRAG), que também poderia encobrir os registros de covid-19. Apenas entre os dias 15 e 21 de março, o sistema estimou que cerca de 2.250 casos de pessoas foram internadas com sintomas de síndrome gripal forte – além de febre, tosse, e outros sintomas, elas têm dificuldade de respirar. Em 2019, houve 934 casos.

Segundo levantamento do Ministério da Saúde com dados até 10 de abril, o número de internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) já chega a 36 mil, aumento de 305% neste ano em relação ao ano passado.

Procurado para falar sobre as mortes, o ministério informou, em nota, que “diante da insuficiência de insumos no mundo, nem toda a população será testada”. A pasta disse ainda que a orientação é de que seja priorizada a testagem dos casos graves e que “fará inquérito epidemiológico por amostragem para conseguir as melhores informações sobre a dinâmica da epidemia”.

Presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, José Miguel Chatkin diz que um aumento de casos e mortes por problemas respiratórios é esperado para o período, em razão das temperaturas mais baixas, mas afirma que o crescimento perceptível neste ano pode estar relacionado a casos do novo coronavírus que não foram diagnosticados.

“O frio traz um aumento do número de infecções respiratórias. O que deve estar acontecendo a mais é que existe um número não determinado de casos de covid-19 não diagnosticados. Existe subnotificação porque não há testes para todas as pessoas. Estamos vivendo um surto muito grave, que tende a aumentar até o início de maio para, então, ter alguma diminuição.”

A falta de testes para toda a população também é apontada por Margareth Dalcolmo, pneumologista e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), para a alta de mortes em outras doenças respiratórias. “É possível que haja mortes, particularmente por pneumonia, que tenham relação com a infecção causada pela covid-19, já que não estamos testando. Avaliações feitas por epidemiologistas estimam que, para cada caso notificado, temos 15 outros desconhecidos. Não temos controle da velocidade de transmissão e a epidemia cresce de forma desordenada. A mortalidade pode não ser rigorosamente real, porque não ocorreu testagem em todos esses óbitos, por falta de testes.”

Segundo ela, a notificação é importante para que sejam estabelecidas estratégias de controle da doença e para entender como o vírus se comporta. “É fundamental para sabermos o caminho que a transmissão tomou e toma, a perspectiva de como vai se disseminar e a proporção de casos. A imprecisão da magnitude da epidemia atrapalha o entendimento do futuro imediato e do comportamento da demanda de serviços. A indefinição de dados já é altamente prejudicial à comunidade médica e à sociedade.”

Apenas 19% das internações ou óbitos por síndromes respiratórias no Brasil têm causa identificada

Em novo relatório semanal do sistema de monitoramento de casos reportados de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), a Fiocruz informa que o Brasil já teve 26.062 de hospitalizações ou óbitos por doenças respiratórias em 2020. Desse total, apenas 4.828 casos (19%) teve a causa identificada e atribuída a um vírus respiratório.

De acordo com o relatório da Fiocruz, 60% dos casos foram identificados como Covid-19, enquanto Influenza A e B representa 7% e 6%, respectivamente. Ainda há 3.846 casos (15%) com resultado negativos para esses vírus e ao menos 15.107 (58%) aguardando resultado.

Os casos de SRAG são de notificação obrigatórios e incluem hospitalizações de pacientes que apresentaram sintomas como febre, tosse ou dor de garganta e dificuldade de respirar e óbitos de pessoas que apresentaram esses sintomas, mesmo que não tenham sido hospitalizados.

O balanço aponta que o percentual de casos de Covid-19 confirmados por laboratório tem crescido acentuadamente nas últimas semanas. No boletim referente à semana de 16 a 22 de fevereiro, apenas 3% dos casos identificados deram positivo para o vírus. Já na última semana contabilizada, de 29 de março a 4 de abril, 86% dos resultados positivos eram de coronavírus.

De acordo com o sistema coordenado pela Fiocruz, a atividade semanal em todo país permanece muito alta e todas as regiões são consideradas de alto risco, com índices muito acima do histórico registrado para esta época do ano.

A Fiocruz percebeu uma redução na velocidade do crescimento de casos na comparação com semanas do mês de março, mas alerta que isso pode estar ocorrendo em decorrência de atrasos nas notificações dos casos pelas unidades de saúde.

“O tempo entre os primeiros sintomas e posterior registro do caso no banco de dados mostrou-se importante para a aparente estabilização do número de casos na semana 13, relatada no boletim anterior”, explica o pesquisador do Programa de Computação Científica da Fiocruz (Procc/Fiocruz), Marcelo Gomes.

O relatório sugere a necessidade de manutenção das recomendações de isolamento social para evitar demanda hospitalar acima da capacidade de atendimento. “A aparente desaceleração ainda é muito leve e é preciso que as medidas sejam mantidas para que nosso sistema de saúde não seja sobrecarregado”, reforça o coordenador do sistema.

O atraso nos números oficiais da pandemia no Brasil

“O cenário brasileiro está escondido. Hoje quando você vê os casos notificados ou até os óbitos já aconteceram há mais de uma semana, provavelmente há mais de duas semanas”, afirma o professor Domingos Alves, do Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP (Universidade de São Paulo). O pesquisador trabalha com cientistas de universidades no Brasil em projeções sobre a epidemia no Brasil.

Sobre o represamento de testes, Alves destaca que, de acordo com dados da Secretaria de Saúde do estado de São Paulo, na última semana, a 15ª semana epidemiológica, o percentual de resultados de testes foi zero. Na semana anterior, foram 2% de testes liberados. E na anterior, 14%. “Não precisa ser nenhum matemático para ver que o que se viu nessas três últimas semanas de casos e óbitos no estado de São Paulo eram pessoas que já tinham pedido o teste há mais de duas semanas, a grande maioria”, afirma.

Segundo dados do Ministério da Saúde divulgado no último dia 12, o estado registrou 588 mortes 8.755 casos confirmados. No Brasil, eram 1.223 óbitos e 22.169 confirmações. 

O cálculo do grupo em que Alves atua, contudo, é de 240 mil casos em território nacional, com base em metodologias usadas em outros países. “As nossas inferências estão sendo feitas a partir de estimativas feitas com trabalhos publicados no Lancet [uma das mais prestigiadas revista científica sobre medicina], com estimativas comparadas com um grupo alemão que fez essas estimativas para esses países e bateu. A gente aplicou essa mesma metodologia para o Brasil, para estados e estamos aplicando agora para alguns municípios”, disse.

Além do atraso, outro problema para ter uma leitura precisa do cenário é a testagem limitada. De acordo com o pesquisador, enquanto a Alemanha conta com cerca de 15 mil testes por milhão de habitantes, o indicador é de 276 por milhão de habitantes no Brasil.

Segundo boletim do Ministério da Saúde do último dia 11, 451.432 reações para diagnóstico laboratorial de RT-PCR foram distribuídas às secretarias estaduais de Saúde e devem ser entregues até quarta-feira (15). Esse tipo de teste, de biologia molecular, é usado para identificar a causa da morte ou o vírus que infectou pessoas internadas com SRAG (síndrome respiratória aguda grave).

No caso do Ceará, um dos estados mais atingidos pela pandemia, a estimativa é de 12 mil casos, segundo Alves. Os dados do ministério neste domingo eram de 1.676 no estado.

“Por que essa discrepância? O Brasil, de maneira geral, não está conseguindo fazer testes. Não está conseguindo dar resultado de testes e os resultados que os testes estão mostrando são para pessoas internadas ou que vieram a óbito, o que é uma fração muito pequena das pessoas que estão ficando infectadas e que estão infectando”, explica o pesquisador.

Considerando a fragilidade dos números oficiais e o comportamento social, o cientista estima que no próximo final de semana São Paulo comece a ter dificuldade de atender pacientes. O mesmo pode ocorrer em Brasília, até o final da próxima semana, caso não se cumpra a quarentena.

“Em Manaus já começou a aparecer pessoas, inclusive idosos, nos serviços de saúde, e os médicos começaram a mandar as pessoas para casa para se despedirem. A gente vai esperar acontecer para as próximas semanas o que está acontecendo no Equador e nos Estados Unidos, de começarem a descobrir pessoas mortas em casa? Porque é isso que vai acontecer e não é para daqui um mês esse cenário”, alerta o professor. 

De acordo com o boletim epidemiológico divulgado pela pasta neste domingo , 6 unidades da Federação estão em situação crítica: São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Amazonas, Amapá e Ceará. Todas elas registraram incidência da doença 50% acima da nacional, que era de 105 para 1 milhão de habitantes.

A recomendação do Ministério da Saúde é de que não haja relaxamento do isolamento social em nenhuma dessas unidades. Até o momento, nenhum estado determinou o lockdown, em que todas as entradas de determinado local são bloqueadas por profissionais de segurança e ninguém tem permissão de entrar ou sair do perímetro isolado. A pasta prevê que essa estratégia pode ser necessária em situação de grave ameaça ao sistema de saúde.

Parte dos brasileiros, contudo, tem descumprido as orientações para ficar em casa. O objetivo do isolamento é frear o ritmo de contágio do vírus para evitar um colapso do sistema de saúde, como já ocorre no Amazonas. 

Entre a última semana de março e os primeiros dias de abril, houve aumento na circulação de pessoas, de acordo com dados de localização de 60 milhões de telefones celulares no País, compilada pela empresa In Loco. No estado de São Paulo, a adesão ao isolamento chegou a 55% neste sábado, de acordo com o Sistema de Monitoramento Inteligente (SIMI-SP), a partir de dados de telefonia de 40 cidades. O ideal é que a taxa seja de pelo menos 60%, segundo o governador João Doria. 

Imunidade coletiva

O Ministério da Saúde têm usado como parâmetro para fim da crise quando 50% da população entrar em contato com o vírus. “O que a gente sabe é que quando passa de 50% da população infectada, o vírus já não consegue multiplicar mais na mesma velocidade. Se vai ser 50%, 60% ou 70% da população [infectada], isso é secundário. Em saúde, dois mais dois, pode ser quatro, três e meio. Cada organismo é diferente, cada população é diferente”, disse o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, no último dia 22.

Em 4 de abril, o secretário-executivo da pasta, João Gabbardo, repetiu o raciocínio. “O vírus vai se transmitir, e a gente imagina que pelo menos 50% das pessoas vão ter tido contato e vão criar imunização. Isso vai diminuir a capacidade de transmissão, vai acontecer lentamente. O fluxo só reduz quando tem 50% das pessoas já imunizadas”, disse.

De acordo com o infectologista Julio Croda, ex-diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis da pasta, a imunidade de rebanho é uma estratégia adotada quando não há medicamento ou vacina. “A gente sabe que a taxa de mutação do vírus é menor e provavelmente você vai adquirir imunidade contra o vírus que está circulando nessa sazonalidade.  É uma hipótese bastante forte, apesar de não ter muitos estudos, e daí que deriva essa teoria de 50% da população pegar [a doença] na circulação do vírus”, afirmou ao HuffPost Brasil.

Por outro lado, o pesquisador alerta para o risco desse raciocínio devido à transmissibilidade elevada da covid-19. “Se a gente libera a circulação para todo mundo, todo mundo vai pegar a doença ao mesmo tempo e vai sobrecarregar o serviço de saúde. A ideia maior do isolamento é que todo mundo chegue a 50%, 70% de imunidade, mas não ao mesmo tempo. Parece contraditório, mas é complementar porque você quer que as pessoas peguem [o vírus] ao longo de um período maior, entre 6 a 12 meses e não que todo mundo pegue entre um e dois meses, que você não vai ter leito de UTI [unidade de tratamento intensivo]”, completa.

Para Domingos Alves, da USP, esse cenário de imunidade coletiva está distante. “Quando a gente tiver os tais 50% de pessoas imunizadas, a gente já vai ter passado, de longe, dessa crise que estamos vivendo hoje”, afirma. Para o pesquisador, o foco do debate agora não é na imunidade coletiva. “Estamos em todos estados brasileiros e em cidades importantes no Brasil com uma curva de ascensão do vírus. As novas curvas para muitas cidades são similares às cidades americanas. A diferença é que estamos atrasados em relação a eles. Mas o caos que está acontecendo lá, que está todo mundo acompanhando na televisão, vai acontecer aqui e não é daqui um mês ou dois meses. Vai ser agora”, completa.

Já a professora de virologia Clarissa Damaso, afirma que esse tipo de valor é referência para se pensar imunidade adquirida por vacinas. “Isso é um cálculo que se faz baseado na transmissibilidade do agente, na população e na quantidade de pessoas suscetíveis. Normalmente, para grande parte das vacinas, você tem [imunidade] acima de 95%. O vírus não circula na população porque você simplesmente só encontra pessoas já imunizadas. Por isso é importante se manter uma alta cobertura vacinal”, afirma.

A especialista entende que não se deve aplicar a mesma lógica sem termos vacinas que funcionam. “Para doença, no meu ponto de vista, como virologista, não faz sentido querer que a população chegue a esse nível tendo a doença porque você também vai ter um número elevado de mortes. Isso é uma imunização em massa às custas de muitas mortes”, afirma.

Do momento em que cientistas chegam a uma fórmula para vacina até ela entrar no mercado o prazo é de 18 a 24 meses. Nesse período são feitos testes clínicos. “Tem que ver o nível de proteção, de soroconversão da população, até mesmo para ajustar dose, idade, várias coisas para ter uma vacina segura para população”, explica a virologista.

Passaporte da imunidade 

A professora da UFRJ também aponta limitações à ideia de uma “passaporte da imunidade”, defendida pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Seria um tipo de teste para detectar se a pessoa está imune ao novo coronavírus e pode voltar ao trabalho. “Esse passaporte da imunidade é uma coisa muito forte. Ninguém têm como virar para o indivíduo e dar garantia de que está imune. Não há estudo para isso ainda. Isso é concordância geral entre os pesquisadores. Não têm como”, afirma.

Embora não haja conclusões científicas, baseado no que se sabe de outros vírus, a tendência é que uma segunda infecção seja mais branda porque o organismo vai ter algum nível de anticorpo. “É como se você imaginasse vacinas que precisam de mais de uma dose para proteger bem. Você pode não ter feito a soroconversão completa, mas pode fazer uma proteção parcial”, explica Clarissa Damaso.

Por essas incertezas, acredita-se que haverá uma segunda onda de covid-19. “Enquanto você tiver organismos suscetíveis, você pode ter ondas de infecção. Para se calcular isso, a gente teria de ter testagem em massa da população. Sem isso, a gente vai ficar só no cálculo teórico, pelas estimativas de qual a proporção de pessoas infectadas e não infectadas quando o vírus entra em contato com as populações. São cálculos estatísticos. Não é experimental”, afirma.

Essa testagem experimental seria com testes sorológicos, mas ainda há entraves técnicos para que sejam aplicados em massa. “Esse teste vai ver se você fez anticorpos por uma infecção que você já teve. Tem várias marcas produzindo testes novos. Isso precisa ser validado para você ter certeza de que vai realmente só verificar anticorpo contra o SARS-Cov-2, que você não vai detectar cruzadamente anticorpos contra outros coronavírus porque a gente têm coronavírus endêmicos. Isso é muito importante, para não dar falso positivo”, explica a virologista.

Além das dificuldades de produção, também é necessário que sejam aplicados no tempo adequado. “Com quase duas semanas [da infecção], você detecta a primeira onda de anticorpos. A gente faz a proteção em duas ondas. Uma chamada IgM, são as imunoglobulinas M, e a segunda imunoglobulina G, que é IgG. Se positivar na primeira, indica infecção recente. Quando passa mais tempo, quase um mês, você está positivado na outra. Mostra que você já têm esses anticorpos mais duradouros”, afirma Damaso.

O tipo mais preciso de teste sorológico é chamado ELISA [do inglês Enzyme-Linked Immunosorbent Assay ou ensaio de imunoabsorção enzimática], usado atualmente em laboratórios para saber se a pessoa está com dengue, por exemplo. Eles têm uma sensibilidade maior, mas são mais caros e demoram mais do que os chamados “testes rápidos”. Esse outro tipo de teste sorológico, menos preciso, tem sido aplicados em profissionais que estão na linha de frente do combate à doença, como agentes de saúde e de segurança. A análise é feita após o sétimo dia de apresentação de sintomas e serve de parâmetro para que voltem ao trabalho.

Ridicularizado mundialmente

A postura de presidente Jair Bolsonaro diante da pandemia de coronavírus tem sido objeto de constantes críticas da imprensa internacional. Ao se manifestar contra as regras de isolamento social e agir, ele próprio, em desacordo com as orientações das autoridades nacionais e internacionais de Saúde, Bolsonaro é um dos únicos líderes do mundo que ainda tenta negar os impactos mortais da doença.

No último dia 12, o semanário francês Journal du Dimanche disse que Bolsonaro faz “uma aposta maluca” ao focalizar toda a sua atenção na economia.

“Quando os mortos começarem a se acumular, ele será apontado como o único responsável”, afirma o brasilianista Frédéric Louault, da Universidade Livre de Bruxelas. O texto de meia página também aponta a falta de leitos e médicos para enfrentar o pico da pandemia e diz que, no estado do Amazonas, o sistema de saúde já entrou em colapso.

O jornal americano The Wall Street Journal destacou as suas andanças pelas cidades-satélites do Distrito Federal, promovendo aglomerações e cumprimentando correligionários, apesar das “consequências mortais” do vírus.

No início do mês, o presidente disse que “alguns vão morrer”. “Sinto muito, mas isso é a vida. Você não pode parar uma fábrica de automóveis porque há mortes nas estradas todos os anos”. Para o jornal francês Le Monde, o presidente brasileiro, a quem classifica como “de extrema direita”, se isola de praticamente todos os governadores do país. O seu discurso – “populista, muitas vezes insensato” – serve apenas para “remobilizar” a sua base de apoiadores mais fanáticos.

O analista de mercado da revista americana Forbes Kenneth Rapoza afirma que Bolsonaro está “praticamente sozinho“, já que o presidente americano Donald Trump, que também chegou a “minimizar” o surto da doença, corrigiu o discurso e passou a sério a pandemia, depois do seu país se tornar o epicentro da crise, tendo registrado mais de 20 mil óbitos. Para Rapoza, a base de apoio do presidente brasileiro vem caído, e ele faz uma “aposta de vida ou morte” em relação ao coronavírus.

Ainda em março, a revista inglesa The Economist, chamava o líder brasileiro de “Bolsonero”, destacando sua declaração dizendo se tratar de uma “gripezinha“. O também britânico The Guardian ressaltou que, para Bolsonaro, tudo não passava de uma “armadilha” da imprensa. Já a BBC afirmou que ele transforma a pandemia em política, “culpando seus adversários por tentarem destruir o país.

O italiano La Repubblica também chama Bolsonaro de “o último cético” e afirma que ele ficou isolado entre os chefes de Estado. Além do Brasil, Belarus e Turcomenistão são dos poucos países a adotar a negação. O presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko, chegou a afirma que o vírus seria tratado com “vodca, sauna e tratores“. Já o Turcomenistão – vizinho do Irã, que enfrenta maior surto no Oriente Médio – chegou a proibir a utilização da palavra “coronavírus” pela imprensa do país.

Pobre Brasil

20 manchetes do mundo sobre Bolsonaro

  1. The Guardian
    “Jair Bolsonaro diz que crise de coronavírus é um truque da mídia”
  2. The Economist
    “Bolsonero: Presidente do Brasil “toca harpa” enquanto a pandemia cresce”
  3. Wall Street Journal
    ‘Volte ao trabalho’: Bolsonaro descarta riscos mortais do coronavírus no Brasil
  4. Forbes
    “Em Coronavírus versus Brasil, Bolsonaro fica quase sozinho”
  5. BBC
    “Enquanto o mundo tenta desesperadamente combater a pandemia de coronavírus, o presidente do Brasil está fazendo o possível para desacreditá-la
  6. New York Times
    “O presidente Jair Bolsonaro, que chamou o vírus de “uma gripezinha”, é o único “grande” líder mundial que continua questionando os méritos das medidas de bloqueio para combater a pandemia.
  7. Washington Post
    Bolsonaro é o líder negacionista mundial do coronavirus
  8. El País
    A atitude imprudente e irresponsável do líder do maior país da América do Sul ameaça causar inúmeras mortes
  9. Business Insider
    “O presidente Bolsonaro sugeriu que seu povo é naturalmente imune ao coronavírus, alegando que eles podem nadar no esgoto e ‘nada acontece'”
  10. The Japan Times
    Jair Bolsonaro isolado e enfraquecido pela negação de coronavírus
  11. The Wire
    Bolsonaro está usando uma crise de saúde pública para ampliar divisões no Brasil
  12. The Time of India
    Presidente do Brasil tira selfies e aplaude manifestantes apesar de riscos da pandemia
  13. The Chicago Tribune
    “O presidente Jair Bolsonaro do Brasil promoveu repetidamente tratamentos não comprovados de coronavírus e sugeriu que o vírus é menos perigoso do que dizem os especialistas.”
  14. The Independent
    “Coronavírus: Bolsonaro alega que a mídia ‘engana’ os brasileiros em meio ao agravamento da pandemia”
  15. The Asahi Shimbun
    “Pelo menos um líder mundial seguiu as alegações de Trump de promover o uso das drogas. O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, elogiou repetidamente os benefícios da hidroxicloroquina e da azitromicina”.
  16. Al Jazeera English
    COVID-19: Bolsonaro está colocando ‘vidas em perigo‘”
  17. The Sydney Morning Herald
    Bolsonaro joga com a vida e a morte em meio a pandemia”
  18. Daily Herald
    Facebook se une resistência contra as alegações de Bolsonaro sobre o vírus
  19. Jacobin Magazine
    Numa pandemia, Bolsonaro é mais perigoso do que nunca
  20. Time
    O presidente do Brasil ainda insiste que o coronavírus é um exagero. Governadores revidam

Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *