26/04/2024 - Edição 540

Poder

Bolsonaro e Mandetta encenam um teatro chinfrim

Publicado em 10/04/2020 12:00 -

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"Paciente pode trocar de médico." Em uma live, na noite de quinta (9), Jair Bolsonaro cutucou Luiz Henrique Mandetta, completando a frase que se tornou bordão do ministro da Saúde: "médico não abandona paciente".

O presidente tem razão. Caso um médico traia a confiança do paciente e coloque em risco a sua vida de forma desnecessária, pode e deve ser trocado. O mesmo vale para um ministro de Estado.

Da mesma forma, um presidente pode não querer abandonar o cargo, mas o país pode trocar de presidente. Principalmente, caso o mandatário traia a confiança do país e coloque em risco a vida alheia de forma desnecessária.

Preferencialmente, a troca ocorre nas eleições, período em que, pelo voto, o eleitor escolhe quem o governará. Em situações extremas, contudo, quando é visto como um risco, perdendo apoio popular e político, um presidente pode ser destituído do cargo por um processo de impeachment.

Isso ainda é distante em um Brasil com um presidente com 33% de aprovação, no qual 40% da população ainda acha que ele mais ajuda do que atrapalha no combate ao vírus – mesmo que continue agindo como se quisesse ver o circo pegar fogo, atuando contra políticas eficazes de contenção. Mas esse Brasil tem 141 mortes confirmadas nas últimas 24 horas por coronavírus. É diferente de um Brasil que pode estar ali, logo em frente, com mais de mil óbitos diários.

Um dos assuntos mais falados nas redes sociais, na quinta, foi a revelação de um vazamento não intencional (sic) de uma conversa entre o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, e o deputado federal Osmar Terra. Na gravação, obtida por Caio Junqueira, da CNN Brasil, ambos aparecem conspirando contra Mandetta.

Bolsonaro afirmou, na live, que não comentaria sobre Mandetta, Terra e Lorenzoni. Ao fazer isso, claro, acabou por comentar. E ao silenciar-se diante da conspiração, endossou-a.

O presidente usou o pronunciamento à nação, na quarta, 8, para dizer que é o uso da cloroquina e não o isolamento social que vai evitar mortes. Quer levar o mérito dos resultados positivos da quarentena de governadores e prefeitos para o seu colo, apontando que a contenção da mortalidade trazida pelo isolamento é mérito, na verdade, do uso do medicamento. Um comportamento de parasita político, não de presidente da República.

Mandetta, por mais que tenha cedido para manter-se no cargo, continua sendo um entrave para os planos do presidente, tanto os de usar a cloroquina de forma ampla antes de estudos conclusivos, quanto de acabar com as medidas de isolamento social. Porque o trabalho de Mandetta tem 76% de aprovação segundo o Datafolha.

Vale lembrar Bolsonaro que cidadão troca de presidente quanto se sente abandonado – o que seria o caso de um presidente que depõe contra a saúde pública. Por enquanto, ele vai mandando recadinhos e atrapalhando o trabalho do assistente, mas engolindo seco também. Percebeu que mercado, Congresso, STF e população não vão gostar dessa substituição a esta altura da crise.

Daí, com um discurso adaptado para cada situação, vai se mantendo. Pois é reeleição acima de tudo. E autopreservação acima de todos.

Caverna

No início da semana, Mandetta disse ter se dedicado a leitura. Retornou ao Mito da Caverna, que já leu "mais de 20 vezes desde a adolescência". Coisa fina. História trançada por Platão no seu diálogo mais célebre: "A República." Trata-se de uma alegoria sobre o conhecimento (pode me chamar de ciência).

O filósofo ensina no texto que, acorrentados à ignorância, os homens são privados do aprendizado. Contentam-se com as sombras projetadas na parede da caverna. Qualquer semelhança com Jair Bolsonaro não é mera coincidência.

No enredo de Platão, os homens olhavam permanentemente para o fundo da caverna. Não havia opção. Estavam acorrentados numa posição que não lhes permitia virar na direção da entrada. Nas suas costas, havia uma fogueira.

Diante do fogo, passavam pessoas. Elas gesticulavam. Manuseavam objetos. A movimentação produzia sombras que, projetadas na parede do fundo da caverna, representavam toda a realidade que os prisioneiros conheciam.

Súbito, um dos prisioneiros livrou-se das correntes. Virando-se, enxergou a fogueira, usina de sombras. Atraído pela luz verdadeira que se insinuava na entrada, o homem saiu da caverna. Encantou-se com a claridade. Ao procurar a fonte de tamanha irradiação, deu de cara com o Sol.

O homem perdeu momentaneamente a visão. Angustiou-se com a perspectiva de privar-se tão rapidamente da luz verdadeira. Recuperou a vista. E enxergou a natureza ao redor. Caindo-lhe a ficha, se deu conta de que os prisioneiros da caverna precisavam aprender a olhar o sol. Primeiro, o susto. Depois, o prazer da descoberta, do aprendizado do conhecimento.

Mandetta não enfiou Platão no seu drama aleatoriamente. Seria um desperdício. Melhor supor que o futuro-provável-ex-ministro tenha desejado estabelecer um paralelo entre a caverna e o Planalto, onde Bolsonaro e seus súditos, acorrentados a superstições, vivem num universo paralelo de sombras.

Na história de Platão, o homem que se livrou das correntes e conseguiu vislumbrar o sol voltou à caverna para contar aos acorrentados que havia uma realidade além das sombras. Foi morto. Enxergava demais. Seus novos conhecimentos quebravam a paz propiciada pela ignorância.

Supondo-se que Mandetta tenha desejado construir sua própria alegoria a partir das metáforas de Platão, a mania do ministro de combater o coronavírus à luz da ciência faria dele o ex-acorrentado que viu a luz solar —aquele que morre no final, ao tentar libertar a turma da caverna dos grilhões da ignorância.

Desde Platão existe uma coceira, uma tentação, uma dúvida hedionda: não seria melhor entregar o governo aos sábios, já que os loucos não resolvem? Bolsonaro ressuscita a interrogação.

Mandetta disse ter lido o Mito da Caverna pela primeira vez aos 14 anos. Desde então, revisitou o texto duas dezenas de vezes. "Até hoje não consigo entender. Continuei sem entender". A permanência do doutor na Esplanada, de fato, desafia a compreensão e vã filosofia.

Análise

O relacionamento entre Jair Bolsonaro e Henrique Mandetta afunilou-se. Há três caminhos possíveis. Ou o presidente aciona a caneta ou o ministro chama o caminhão de mudança ou os dois naufragam abraçados.

O ministro da Saúde afirmou que "médico não abandona o paciente." O presidente declarou que "o médico não abandona o paciente, mas o paciente pode trocar de médico." As frases denunciam um relacionamento tóxico.

Mandetta defende o isolamento social. Bolsonaro vai à padaria. O ministro prescreve cuidado no uso da cloroquina. O presidente trata o remédio como panaceia.

O festival de dubiedades não orna com a gravidade da pandemia. O pior que pode acontecer nesse caso é não acontecer nada. A conjuntura pede nitidez, não um teatro chinfrim. Numa democracia, não há ministros nem presidentes insubstituíveis.


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