26/04/2024 - Edição 540

Brasil

Domésticas pelo direito à quarentena remunerada

Publicado em 09/04/2020 12:00 -

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De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2018, as mulheres representavam 92% do trabalho doméstico no país. Nas últimas três semanas, não foi raro ouvir falar sobre diaristas que foram dispensadas e ficaram sem renda ou empregadas domésticas que estavam a depender da consciência dos patrões para poder ficar em casa e se proteger do coronavírus.

Ainda não se sabe quantas mulheres estão nessa situação. O que está claro é a dificuldade de encontrá-las e ouvi-las sobre o momento atual, já que o medo de perder o emprego ou o trabalho é legítimo e evidente diante das incertezas que batem à porta.

Sandra Soares, de 38 anos, é empregada doméstica, mora no bairro recifense de Dois Unidos e trabalha em Boa Viagem. Pega quatro ônibus ao dia, no percurso de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Provavelmente, ela representa uma exceção nessa pandemia. Foi liberada pelos patrões há mais de duas semanas e continua recebendo o salário integral. Não satisfeita em ser uma das poucas a ter seu direito garantido, decidiu ajudar mais gente e gravar um vídeo para colocar nas suas redes sociais.

O recado tinha como foco empregadores e trazia a cobrança sobre “compromisso com a saúde e o social”. Entre trabalhadoras domésticas do círculo de convívio dela, o vídeo viralizou e obtive efeitos que causaram surpresas.

“Eu coloquei no facebook e compartilharam muito rápido. Amigas minhas foram liberadas e me ligaram para contar. Uma prima que trabalha quinzenalmente cuidando de um idoso, que os filhos estão na França, estava com medo de ficar sem renda. Eu disse ‘Para ter certeza, mande esse vídeo’. Quando eu liguei depois, ela me contou que foi liberada e tinha recebido o salário sem desconto nenhum”, explica Sandra.

Ela também atua como cabeleireira e manicure, mas suspendeu os serviços para se prevenir do contágio com o coronavírus. É mãe solo e ficará com os dois filhos em casa, enquanto a rotina não volta ao normal. Cogita tirar 15 dias de férias nesse período. “Fico mais aliviada de estar protegida e ter meu emprego garantido para depois da quarentena, eu e meus patrões estamos sempre conversando e avaliando as possibilidades.”

Menos trabalho formal

O exemplo de Sandra é positivo no sentido da garantia do emprego por meio do regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mas não reflete a realidade do trabalho doméstico no país. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (Pnad) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o trabalho doméstico no Brasil bateu o recorde em 2019, chegando a 6,3 milhões de pessoas nesta atuação.

O número quando comparado ao de 2018, que foi de 6,2 milhões, apesar de ser um recorde não demonstra grandes alterações. Mas, o que chama atenção é que este índice cresceu junto ao trabalho informal, enquanto o registro de carteira assinada diminuía.

Em 2019, 55 mil pessoas se somaram à informalidade, o que significou uma queda de 3% no índice de pessoas com registro profissional.

Garantia de direitos

O vídeo de Sandra chamou a atenção da presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Luiza Batista, que compartilhou o conteúdo e ressaltou a importância de mostrar que a quarentena não pode ser um “privilégio”. Mas ela pondera que “infelizmente” a reação positiva à ideia de Sandra não é muito recorrente na classe patronal.

A federação tem se esforçado para conscientizar empregadores e também as trabalhadoras sobre a importância de ficar em casa e ter os direitos garantidos. Com os idosos inseridos no grupo de risco, a organização também está com uma campanha voltada especificamente para as cuidadoras de pessoas dessa faixa etária.

“As pessoas não entendem que exigir que as trabalhadoras domésticas estejam no local de trabalho é arriscá-las e arriscar a família. O risco de contaminação é grande nos transportes públicos, já que estão sempre lotados. Os limites de distância entre uma pessoa e outra não são respeitados e para gente fica difícil porque, nesse momento que o país vive essa crise sem precedentes, ninguém quer perder seus empregos. A trabalhadora doméstica se sente na obrigação de ir para não haver demissão.”

Para a presidenta, a Covid-19 chegou no pior momento. Ela lembra que, desde o Golpe de 2016, que afastou Dilma Rousseff (PT) da Presidência da República, a retirada de direitos promovida pelo governo Temer com a “deforma trabalhista” e pelo governo Bolsonaro com a “deforma da previdência” contribui para um cenário ainda mais devastador para a categoria das empregadas domésticas e diaristas. Luiza acredita que a pior ameaça vem do posicionamento do governo federal diante da atual crise.

“O golpe desgastou nossas conquistas, gerou uma onda de ódio nas pessoas e culminou na eleição de uma pessoa despreparada para a Presidência da República. E o fato é que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco. A gente se prejudicou com a reforma da previdência porque alguns patrões não querem assinar a carteira e não há punições severas para isso. Somos tratadas como pessoas inferiores por sermos negras, de periferias e, muitas vezes, analfabetas.”

Inseridas no trabalho informal, as diaristas estão ainda mais vulneráveis na pandemia. Com a renda básica emergencial sancionada por Jair Bolsonaro na última quarta-feira (1), voltada para os trabalhadores informais, a prioridade agora é garantir que o pagamento do benefício seja feito imediatamente. Contudo, Luiza Batista traz uma questão: “O acesso a este benefício vai ser desburocratizado? Como ficam as trabalhadoras que não estão inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) e nem são Micro Empreendedoras Individuais (MEI), por exemplo?”

Segundo ela, se a desburocratização não for levada em conta, quem mais precisa pode ficar de fora do benefício.

Neste sentido, uma medida foi apresentada até então. A Caixa Econômica Federal lançou um aplicativo voltado para os trabalhadores informais que não são beneficiários do Bolsa Família e não tem o CadÚnico. O acesso pode ser feito pelo computador ou celular.

Histórico e perspectiva

Para a pesquisadora do SOS Corpo – Instituto pela Democracia, Betânia Ávila, a denúncia sobre a realidade das empregadas domésticas deve ser feita de maneira permanente. Ao fazer um breve resgate sobre o histórico de direitos trabalhistas da categoria, ela lembra que o principal marco aconteceu recentemente, quando a PEC das Domésticas (PEC 66/2012) foi promulgada pela ex-presidenta da República, Dilma Rousseff (PT), há seis anos. Em sua análise, o afastamento da petista se deve também a estas mudanças trabalhistas da categoria, porque o país carrega uma “tradição escravocrata”.

“Antes de 2013, muitos direitos não eram pagos. Mesmo a categoria já tendo garantido algumas direitos na Constituição de 1988. Só em 2013 conseguimos a lei da plenitude trabalhista. Acontece que as classes média e alta acharam que os custos aumentaram depois da PEC. O trabalho doméstico é uma despesa que as classes média e alta querem minimizar no seu orçamento, mas não querem reduzir a jornada de trabalho dessas mulheres. E, quando preciso, não querem liberar com remuneração.”

Betânia não acredita que a dispensa com remuneração possa acontecer de maneira generalizada para as empregadas domésticas. E, assim como Luiza, chama atenção para que a renda básica emergencial seja paga o mais rápido possível.

Questionada sobre a possibilidade da pandemia revelar às classes mais abastadas o valor do trabalho doméstico e alterar, de alguma maneira, as relações de trabalho, ela afirma que vê como algo que pode acontecer pontualmente e que isso não pode descartar os mecanismos de luta e resistência que os movimentos de trabalhadores e feministas têm organizado ao longo do tempo. “É o momento de discutirmos e avançarmos nessa correlação de forças”.

Campanha de filhos para mães

Para um país estruturalmente racista e mal acostumado a um contexto historicamente escravocrata, perder temporariamente o privilégio de ter uma empregada doméstica à disposição para limpar o apartamento de 500 m² causou estranheza em muitos patrões por aí. “Você lava sempre as mãos durante o trabalho, não vai pegar nada”, “Muda só o horário de vir para não tomar ônibus cheio”, “Vem de luvas e máscaras, que não contrairá o vírus”.

Frases parecidas com essas estão sendo ouvidas por diaristas e empregadas domésticas em todo o Brasil. É o que mostra uma campanha criada pelo coletivo “Pela Vida de Nossas Mães”, que lançou um abaixo-assinado, na plataforma Change.org, para reivindicar que essas mulheres tenham dispensa remunerada e, assim, possam atender às medidas de quarentena e precaução estipuladas pelas autoridades, protegendo-se a si e às suas famílias.  

Na página da carta-manifesto, que já recebeu o apoio de 64 mil pessoas em apenas três semanas, os integrantes do coletivo apresentam depoimentos de filhas e filhos de empregadas que desnudam como nunca o caráter escravagista que impera em muitas relações entre domésticas e patrões pelo país. O objetivo da causa? Apenas fazer com que suas mães também tenham o direito de se manterem seguras sem passar por necessidades financeiras. 

“Minha mãe trabalha como empregada doméstica, babá, diarista desde os 14 anos. Nesse surto de coronavírus aqui no país, nenhum empregado disse que pagaria para ela”, conta Bruna Fabrícia da Silva em relato postado na rede social do coletivo. “Ela é diarista hoje em dia, trabalha em quatro casas pela semana. A diária da minha mãe é 80 reais, mas mesmo assim eles não pagam para ela se resguardar”, completa a moradora de João Pessoa (PB).  

Essa realidade e de outras trabalhadoras que foram simplesmente dispensadas sem qualquer amparo, levou o coletivo a iniciar um mapeamento das mulheres que estão enfrentando situações do tipo e precisam de apoio financeiro para pagar as contas de casa, bem como de colaboradores que desejam ajudá-las. O movimento #ApadrinheUmaDoméstica já recebeu formulários de pelo menos 53 empregadas e cerca de 15 “padrinhos”.  

“A quarentena, o isolamento social, que é recomendado pela OMS [Organização Mundial da Saúde], não é um privilégio, é um direito de se manter seguro e assegurar os seus coletivos familiares. E para que isso aconteça, os empregadores e empregadoras precisam entender que a quarentena remunerada vai além do vínculo empregatício, é o bom senso”, fala a atriz Jessica Meireles em vídeo publicado no Instagram do “Pela Vida de Nossas Mães”.

Em seu relato, Jessica afirma que a quarentena remunerada é a “medida mínima” a ser oferecida a essas mulheres “que passam a vida inteira trabalhando e cuidando de outras famílias, para que neste momento elas possam se assegurar e assegurar o seu coletivo”. Ao final, a jovem pede: “Se você tem uma empregada doméstica, faça a dispensa remunerada”. 

Juliana França, nascida e criada em Japeri, município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, é uma das integrantes do “Pela Vida de Nossas Mães” e, em depoimentos para o coletivo, contou sobre sua realidade como filha de empregada doméstica.   

“A gente tem um histórico de quatro séculos de escravidão neste país, quase quatro séculos. Isso quer dizer que ainda hoje, 2020, a gente vive numa sociedade estruturalmente racista. Aí você vai me dizer: ‘Ah, mas eu não escravizei ninguém’. Mas você se beneficia dos privilégios herdados desse contexto escravocrata. Assim como os nossos corpos, pretos e periféricos, são acometidos diariamente por essa sociedade racista”, relata a jovem. 

Ainda sobre o contexto, Juliana observa que essa realidade também reflete um número maciço de mulheres pretas e periféricas que ocupam o cargo de empregadas domésticas no país. “A gente precisa entender qual é a nossa função nesse atual momento de pandemia da Covid-19. A gente só vai passar por isso coletivamente”, afirma a jovem no depoimento.  

De patrões que sugeriram a empregadas ficarem de quarentena no trabalho a outros que dizem não poder perdê-las na pandemia porque elas “são da família”, os inúmeros relatos de filhas e filhos de diaristas parecem tirados de cenas do filme “Que horas ela volta”, protagonizado por Regina Casé. A trama, assim com a vida real, mostra como a naturalização dos dos privilégios e desigualdades alimentam também uma cruel relação de subserviência. 

“Minha mãe tem 63 anos e ainda é diarista, mesmo aposentada, para ter uma graninha a mais. E por mais que eu converse com ela, ainda existe uma relação de subserviência de quem não teve outra oportunidade na vida”, narra Sueli Alves, que mora na capital paulista. 

E assim como o de Sueli, multiplicam-se os relatos de filhos e filhas dessas trabalhadoras lembrando como suas mães migraram de outros estados para trabalhar de domésticas nas grandes capitais, “desde os 12 anos limpando, cozinhando, criando filhos dos patrões, fugindo de homens que tentavam abusar dela”, ou indo “trabalhar doente para manter seus compromissos”, mesmo com o risco do coronavírus, para não ser demitida. 

Renda emergencial 

O abaixo-assinado criado pelo movimento “Pela Vida de Nossas Mães” destaca que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a nação possui 6,3 milhões de profissionais que prestam serviços domésticos, como diaristas, jardineiros e caseiros. Do total, conforme apontado pelo coletivo, 2,3 milhões trabalham sem carteira assinada e 2,5 milhões são diaristas que estão desamparadas por leis trabalhistas e não possuem contratos legais. 

Depois de muita demora, o governo finalmente começou a pagar o auxílio emergencial de R$ 600 para trabalhadores autônomos, informais e microempreendedores individuais (MEI). O Senador também aprovou a inclusão de outras categorias de beneficiários, incluindo diaristas, taxistas, manicures, pescadores, entre outras. A medida pode trazer algum alívio a esses trabalhadores, mas não isenta empregadores do bom senso de suas responsabilidades.  

Na campanha, o coletivo apresenta algumas medidas que podem ser adotadas por patrões de empregadas domésticas, como a dispensa remunerada e o adiantamento das férias em sua totalidade ou de forma parcial. A petição foi incluída em um movimento de enfrentamento ao coronavírus, lançado pela Change.org, para dar mais visibilidade às campanhas relacionadas à pandemia. 


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