23/04/2024 - Edição 540

Eles em Nós

Não se entende a catástrofe brasileira sem viver o Whatsapp

Publicado em 08/04/2020 12:00 - Idelber Avelar

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Não se entende a catástrofe brasileira sem viver o Whatsapp. Espero que todo mundo, mesmo quem nunca esteve em grupo de zap, já tenha sacado isso.

O zap é o terreno em que Bolsonaro venceu em 2018 e é o terreno em que estamos perdendo o jogo, não "para o vírus" (ninguém livra uma guerra contra um vírus, ou contra uma droga), mas para o colapso hospitalar.

Ë muito urgente que mais gente do mundo do Instagram, do Facebook e do Twitter frequente o zapistão.

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No Whatsapp faz-se de tudo mas, sobretudo, encaminha-se. Para uma classe social e uma geração que tiveram acesso à cultura do compartilhamento de links do mundo dos blogs, na qual o que importava era dar o crédito e dizer de onde as coisas vinham, e mesmo para a faixa mais ampla da população que, na virada da primeira década do século, passou a utilizar as funções “retuitar” (no Twitter) e “compartilhar” (no Facebook), o encaminhamento do Whatsapp trazia uma novidade gigantesca, que passa despercebida nas análises, por ser tão óbvia.

No Facebook e no Twitter, mil retuítes e mil compartilhamentos não apagarão a autoria original da postagem. O repasse em segunda mão preserva a origem do repassado. No Whatsapp, quem recebeu de você um meme sabe que de você ele veio, mas a origem e a autoria originais já se perderam. A digitalização desenfreada ao alcance do dedo no celular elimina qualquer remissão à autoria, mais ou menos como Walter Benjamin imaginara que a fotografia serializada–ou seja, o cinema—tinha o potencial de destruir auras religiosas e pré-modernas da arte. Na reprodução digital infinita ao alcance do dedo do pobre em um celular com plano de dados, o encaminhamento foi a função decisiva para a eleição de Bolsonaro, muito mais que os disparos em massa, o que é outro dado que empresta fundamento à tese de que o bolsonarismo não pode ser narrado como a história de uma fraude.

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Eis a sugestão de faixa de corte: questione os intelectuais que escrevem sobre "o Brasil" ou sobre "o bolsonarismo" sem saber que, para milhões de brasileiros, por limitações que têm a ver com o plano de dados do celular, o Whatsapp É a internet.

DISPARIDADES SOCIAIS                 

As disparidades raciais nas mortes são absurdas.

Em Michigan, os negros representam 14% da população e 40% das mortes. Na Louisiana, 32% da população é negra, mas os negros perfazem 70% das mortes. Em Chicago, negros totalizam 30% da população e 72% das mortes. E por aí vai.

Com a arrogância que lhe é peculiar, Trump disse ontem que "ninguém entende" por que negros e negras morrem em taxas muito mais altas e que "estamos todos tentando entender".

Na verdade, todo mundo que mexe com o assunto já entendeu há muito tempo: negros estão desproporcionalmente representados na mão-de-obra que não pode se dar ao luxo da quarentena, por diferenças sociais e econômicas negros têm taxas de diabete, hipertensão e obesidade mais altas, e negros têm, em geral, um cuidado preventivo de qualidade mais baixa do que brancos. Até agora, a ênfase dos especialistas tem recaído nas disparidades sociais como fator preponderante.

Como sempre, em Trump, a frase "ninguém consegue entender" significa "os fatos são bem conhecidos, mas eu não tinha notícia".

VAI FICAR DIFÍCIL

Ontem (9), no Carrefour de uma grande capital brasileira, havia famílias e mais famílias indo às compras juntas, enormes aglomerações de pessoas e um cenário que provoca medo e receio em quem está acompanhando as notícias.

Não tenho o quadro de todas as capitais e não sei se isso se aplica a todas, mas falei com gente de várias, desta vez principalmente Sul / Sudeste, e a sensação de muitos é de que nos últimos dias, em especial, a coisa deu uma relaxada geral.

Tem gente indo às compras com conge, irmão, irmã, primo, tia, vovô e papagaio. Aí vai ficar difícil. Estou bastante temeroso.

CATÁSTROFE              

É catastrófica a notícia. Morreu nosso primeiro parente Yanomami de coronavírus. E era um garoto.

Leia e circule, por favor, a bonita, sensível matéria da Amazônia Real:

"A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, informou na noite desta quinta-feira (9) que o estudante Yanomami, de 15 anos, morreu às 20 horas (21 em Brasília) por complicações da infecção no pulmão devido à doença Covid-19.

Por respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Amazônia Real não tinha divulgado antes o nome do estudante. O Ministério da Saúde, divulgou o nome do jovem e publicamos. Mas em respeito ao luto do Povo Yanomami, a agência retirou o nome da família e a fotografia do estudante desta reportagem."

PROFISSÕES EM RISCO

Continuo pensando nas profissões e em todo o impacto que este o contexto tem nelas. Por exemplo, muitas trabalhadoras do sexo estão agora em uma pindaíba desesperadora, algumas já tendo que mendigar.

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Tem a turma das lojinhas, classe média, que sempre funcionou na tranqueira, pagando aluguel do ponto, funcionários, e que já está tendo que fechar. Já conheci várias histórias assim, literalmente de Porto Alegre a Boa Vista.

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E tem a galera cujos problemas são tão absurdos e surreais que a gente começa a rir. Esta é a situação de, por exemplo, os diretores de programação de SPORTV e ESPN.

Vocês imaginam o trabalho desses coitados hoje em dia? Dos 210 milhões de brasileiros, eu devo pertencer ao 0,00001% que mais assiste a futebol velho. E a última coisa que quero fazer agora assistir a futebol velho.

Agora imagine ter que preencher 24 horas de programação enchendo linguiça sobre o presente ou exibindo VTs do passado.

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A gente dá risada porque tudo é tão surreal, mas várias profissões estão agora sendo esfareladas, e a galera que está sofrendo são nossos irmãos e irmãs.

Vamos juntos ouvi-los e fazer o que der para ajudar.

BERNIE

Bernie Sanders retirou sua candidatura, como bom gentleman que é.

Joe Biden, que pouca gente sabe onde anda, parece tão fraquinho que tive a sensação de que, se o Covid espirrar, Biden sai voando. Ele iniciou sua campanha falando para mil e seiscentas pessoas no YouTube. Isso não dá metade do que a gente conseguiria se ligasse minha câmera aqui agora.

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Enfim, como sabe quem conhece a internet dos EUA, nela há Donald Trump e há Bernie Sanders. Na internet, não há mais ninguém. Eu nunca vi um apoiador de Biden na internet na minha vida. Como acabou a campanha clientelista, de aperto de mão, estilo Biden-Obama, e como agora é tudo digital, a goleada Trump fica pior ainda.

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Desde 1992, honro a tradição de ganhar, de brasileiros, apostas sobre resultados das eleições americanas; mas acho que desta vez a galinha dos ovos de ouro secou. Nem entre brasileiros vou achar alguém disposto a apostar em Biden.

Trump reeleito em novembro, é o veredito óbvio, olhando a coisa com um mínimo de distância e informação.

Se ainda houver algum louco querendo apostar em Biden, a hora é agora. Aposta mínima 100 reais, porque com a pandemia já não dá para apostar caixa de cerveja ou jantar.

URGENTE

Não cessa de me espantar o completo derretimento dessa palavrinha, "urgente".

Vocês se lembram que até um mês atrás tudo era urgente? Lembram-se da quantidade de emails que a gente recebia com a palavra "urgente?" Eu cheguei a criar um filtro no meu Gmail. Se o email continha a palavra "urgente", ele ia para uma pasta que eu só olhava uma vez por semana.

A esmagadora maioria do que era chamado de "urgente" não foi feito de forma urgente e nem foi feito de forma nenhuma. Não apenas não era urgente, como não era necessário também.

Preocupo-me, claro, com o que vai rolar, e me angustio com as notícias ruins. Mas não há como não achar a pandemia instrutiva para todos nós–especialmente para os apressadinhos, que sempre queriam todo mundo correndo como eles.

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O mundo atual se deixa descrever em uma daquelas frases maravilhosas de criança, que Alexandre uma vez me legou:

"Pai, eu dormi, acordei e o mundo está no mesmo lugar!"

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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