20/04/2024 - Edição 540

Poder

A PGR domesticada

Publicado em 03/04/2020 12:00 -

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Cobrado internamente pelos procuradores da República por seu silêncio em meio à pandemia do novo coronavírus, os atritos institucionais entre os Poderes decorrentes dela e as ações do presidente Jair Bolsonaro contrariando recomendações das autoridades sanitárias, o procurador-geral da República, Augusto Aras, rompeu o silêncio em entrevista ao jornal O Globo.

Ele negou que esteja omisso na crise, listou ações burocráticas da PGR para responder à pandemia e esboçou algumas respostas quanto a condutas de Bolsonaro. Afirmou que, até aqui, as manifestações do presidente estão resguardadas pela liberdade de expressão assegurada na Constituição. Mas que pode vir a tomar providências caso Bolsonaro venha a “baixar um decreto contrariando a orientação da horizontalidade”, em referência ao isolamento recomendado pelo Ministério da Saúde.

A divisão interna no Ministério Público Federal, graças à omissão de Aras, se estende há semanas. O assunto deixou a rede interna do MPF, na qual alas de procuradores já se digladiam abertamente desde a sucessão no órgão, e ganhou as redes sociais.

Janice Ascari, veterana do Ministério Público, ativa em casos como o da construção da sede do TRT-SP, nos anos 2000, que levou à prisão do juiz Nicolau, e também na Lava Jato, foi uma que se opôs publicamente à postura de Aras. “Até o Twitter excluiu posts de desinformação do Presidente da República. O pedido de 18 colegas da cúpula do MPF para que o PGR Aras tomasse uma atitude quanto ao respeito às normas de combate ao coronavírus nas ações e pronunciamentos foi indeferido”, escreveu ela.

A procuradora se referia a uma representação assinada por vários subprocuradores e remetida a Aras na semana passada pedindo que ele enviasse uma moção de censura ao comportamento de Bolsonaro. O pedido foi indeferido pelo chefe do MPF, que respondeu com a publicação de uma burocrática lista de providências tomadas durante a crise da covid-19.

Diante da insistência de Bolsonaro em negar a gravidade da pandemia e o passeio que deu pelas cidades-satélites de Brasília no fim de semana, Aras, nomeado pelo presidente sem constar da lista tríplice escolhida pelos procuradores em votação, decidiu se manifestar na entrevista.

O MPF hoje está cindido entre a ala bolsonarista, que recebeu cargos no gabinete de Aras, e os grupos que antes se revezavam nos cargos de cúpula da corporação, ligados ao ex-procurador-geral Rodrigo Janot ou a seus antecessores. No grupo bolsonarista se destacam o secretário de Direitos Humanos Ailton Benedito, que não se exime de defender o presidente abertamente nas redes sociais, e a ex-coordenadora da Lava Jato em São Paulo Thaméa Danelon, promovida por Aras em novembro a procuradora regional e designada a atuar junto ao TRF-4, o tribunal que é a segunda instância dos casos da Lava Jato em Curitiba.

"Augusto Aras não explicou porque considera aceitáveis as ações do presidente Bolsonaro contra as medidas sanitárias para combater o coronavírus e colocou tudo na conta da 'polarização', como se todo o consenso científico e recomendações sanitárias fossem questões de opinião. Um erro brutal do procurador, um atentado contra a função que deveria desempenhar." A avaliação é de Eloisa Machado, advogada constitucionalista, professora da FGV Direito SP e coordenadora do centro de pesquisa Supremo em Pauta.

Machado considera "um descalabro" o procurador-geral da República arquivar uma solicitação de cinco subprocuradores-gerais para que recomendasse ao presidente não se manifestar contra a política do Ministério da Saúde de combate ao coronavírus. Em nota pública, Aras afirmou que "neste momento em que o país atravessa estado de calamidade pública, exige-se que o Ministério Público brasileiro mantenha-se afastado de disputas partidárias internas e externas".

Para ela, que analisou a atuação do PGR no Supremo Tribunal Federal, há acomodação e subserviência. "Desde o início de seu governo, Bolsonaro desmontou a política ambiental, atacou indígenas, os órgãos científicos, faz barbaridades na educação, comemora golpe militar e ataca a imprensa", avalia. "À Procuradoria-Geral da República cabe questionar esses atos no Supremo e é a instituição incumbida de investigar e acusar o presidente da República por crimes comuns. O que fez a PGR? Nada. Inconstitucionalmente, nada."

Machado é uma das advogadas signatárias de uma das notícias-crime contra o presidente da República protocolada junto ao procurador-geral da República. Nela, informam que o presidente cometeu crime de infração de medida sanitária, incitando que brasileiros desconsiderassem e descumprissem as medidas impostas para combater o coronavírus. Tanto através de seu pronunciamento à nação, no dia 24, como no vídeo institucional e na promoção do slogan "O Brasil não pode parar", a partir de quinta (26), e nos passeios que deu no Distrito Federal, causando aglomerações de pessoas, apesar das orientações sanitárias.

O ministro Marco Aurélio Mello, do STF, determinou que a Procuradoria-Geral da República analise outra notícia-crime apresentada contra Bolsonaro pelo deputado federal Reginaldo Lopes (PT-MG). Ele pede que Aras promova denúncia contra Bolsonaro devido ao "histórico das reiteradas e irresponsáveis declarações" feitas por ele sobre a pandemia.

"Se uma das principais instituições de controle está domesticada por um governo autoritário, temos o aprofundamento das violações constitucionais. O perigo é o que estamos vivendo: um governo inconstitucional. E há um efeito ruim para toda a carreira, uma demonstração de tamanho alinhamento com o governo passa o recado que não haverá apoio da cúpula em ações maiores e complexas em agendas que sejam caras ao governo", avalia Eloísa Machado.


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