29/03/2024 - Edição 540

Poder

Brasil, que perdeu compra na China para os EUA, está no meio de uma corrida global por suprimentos médicos

Publicado em 03/04/2020 12:00 -

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Adianta ter dinheiro para gastar? – queixou-se o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde. Adianta fechar contratos de importação, fixar multa caso não sejam cumpridos, se alguém com muito dinheiro vai às compras e paga por elas o que lhe cobrarem?

O presidente Donald Trump, a quem Jair Bolsonaro imita e reverencia como ídolo, foi às compras, pagou mais caro e arrebatou tudo o que o governo brasileiro esperava receber da China em matéria de equipamentos essenciais para a proteção dos profissionais da saúde e o combate ao coronavírus.

Foi uma razia. Trump mandou 23 grandes aviões militares se entupirem na China de tudo que estivesse à venda. Mais de 240 mil americanos poderão ser mortos pelo vírus a se confirmarem as piores previsões. No momento, 187 mil estão infectados e há 4.600 mortos. Nos atentados de 11 de setembro, morreram 2.977.

Até a semana passada, Trump ainda se referia ao coronavírus como “uma gripezinha”. Entendeu por que Bolsonaro repetia gripezinha? Trump, depois, admitiu que o coronavírus seria um caso sério, como está vendo. Aqui, anteontem, Bolsonaro concedeu ao vírus a patente de “o maior desafio da nossa geração”.

Os dois conversaram por telefone. Trump informou a Bolsonaro que “o Brasil está parando”. Nada que Bolsonaro não soubesse. Dizem assessores de Bolsonaro que ele ofereceu ajuda. A maior ajuda seria não ter comprado o que o Brasil já comprara. Mas América em primeiro lugar! E a situação está feia em todo canto.

Se morrerem apenas 110 mil americanos, o número será maior do que a soma de todos os que morreram nas guerras da Coreia (40 mil), do Vietnam (58 mil) e do Iraque e Afeganistão (6,6 mil). O ano nos Estados Unidos é de eleição presidencial. Trump já teve a reeleição garantida. Agora teme o que possa acontecer.

Como Bolsonaro também teme – no seu caso, não a reeleição, mas a sorte do atual mandato. O número de brasileiros infectados é muito maior do que o reconhecido oficialmente – 6.836. O de mortos, idem – 241. O próprio Mandetta advertiu para o crescimento de tais cifras a partir de hoje.

São Paulo e Rio de Janeiro estão no epicentro da pandemia. Nos dois Estados, 250 mortos esperam o resultado dos seus exames. Decepcionaram-se em poucas horas os que esperaram que a fala à Nação de anteontem significasse uma mudança de comportamento de Bolsonaro. Saíra de cena o radical. Entrara o moderado.

Qual o quê! Bolsonaro amanheceu postando nas redes sociais outra fakenews – desta vez o vídeo de um homem sobre desabastecimento em Belo Horizonte. Deu tempo para que seus devotos o copiassem e reproduzissem. Então apagou o vídeo e pediu desculpas. No fim da tarde, aprontou novamente.

Voltou a criticar os governadores que adotaram medidas restritivas em seus Estados, e defendeu que os mais necessitados fossem trabalhar para garantir o sustento. Não se sabe como o dinheiro prometido a essas pessoas pelo governo chegará às suas mãos. Por enquanto, nem o governo parece saber.

E pensar que tudo só está começando, e começando mal desse jeito… A coincidência de epidemias (coronavírus, dengue, influenza  e bolsonarismo) ameaça fazer muito mal ao Brasil.

Para entender

Produtora de mais da metade das máscaras de proteção do mundo, a China está no centro de uma batalha global por equipamentos essenciais no combate ao novo coronavírus. Enquanto os Estados Unidos fecharam acordo para compra de luvas, máscaras e roupas transportadas por ao menos 20 voos fretados, países como Brasil, França e Canadá questionam o cancelamento de pedidos que já haviam sido fechados com fornecedores chineses.

— Perdemos um pedido para os americanos que nos superaram em uma remessa que tínhamos feito — diz Valérie Pécresse, presidente da região de Île-de-France.

Segundo Pécresse, as máscaras que chegaram aos Estados Unidos da China haviam sido encomendadas por autoridades francesas. Ela afirma que a França não recebeu o material porque os Estados Unidos teriam oferecido valor três vezes maior por elas.

Na quarta-feira (1º), o ministro da Saúde do Brasil, Luiz Henrique Mandetta, havia feito declaração similar, afirmando que compras brasileiras haviam “caído” depois da confirmação das compras americanas. Ontem, ela disse que estuda mandar aviões da FAB e de empresas aéreas brasileiras para pegar os materiais diretamente na China.  O primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, também pediu para que as autoridades investigassem o suposto desvio de máscaras do país para os Estados Unidos.

—  Precisamos garantir que o equipamento destinado ao Canadá chegue e permaneça no Canadá. Pedi aos ministros que acompanhem essas informações.

Segundo o New York Times, a negociação entre empresas privadas americanas e chinesas foi feita com ajuda da mediação do genro do presidente americano Donald Trump, Jared Kushner. O avião que pousou no domingo em Nova York vindo de Xangai trazia 130 mil máscaras N-95, quase 1,8 milhão de máscaras cirúrgicas e roupas e mais de 10,3 milhões de luvas, além de 70 mil termômetros.

A compra de produtos se diferencia da doação que tem sido feita como política pelo governo chinês, no que foi chamado de “diplomacia das máscaras”. Na semana passada, por exemplo, o governador de Nova York, Andrew Cuomo, chegou a agradecer a doação de equipamento ao estado pela empresa chinesa Huawei. O Brasil recebeu 500 mil kits para testes rápidos, e, na América Latina, também receberam doações México, Bolívia, Argentina, Equador, Venezuela, Peru, Chile, Uruguai e Panamá.

O que está em discussão na batalha por equipamentos não são as doações, e sim as compras realizadas por empresas privadas e por governos.

Mesmo antes da pandemia, a China já era a principal fornecedora internacional de escudos faciais de proteção, roupas, equipamento de proteção para boca e nariz, luvas e óculos. Ela é a principal exportadora desses produtos juntos e também individualmente. 43% das importações mundiais deles vêm da China. Os números são de 2018 e foram compilados pelo Peterson Institute for International Economics.

Com o aumento da demanda global pelos produtos, a China está aumentando sua produção. Segundo dados do governo chinês, o país está produzindo 116 milhões de máscaras atualmente, 12 vezes mais do que antes. O governo também afirma que aumentou a produção de 20 mil peças de roupas de proteção por dia para mais de 500 mil. A produção de máscaras N-95 também teria aumentado: de 200 mil para 1,6 milhão.

No início da pandemia, quando o coronavírus atingia principalmente o país asiático, havia receio de que a China não conseguisse manter as exportações. Porém, segundo dados compilados pelo pesquisador do Peterson Institute Chad P. Bown, a quantidade de exportações de produtos médicos chineses mesmo durante o surto no país caiu apenas 15%, menos do que outros itens.

—  Minha preocupação é de que esta narrativa seja a que os políticos querem que acreditemos, para colocar a culpa uns nos outros, ao invés de tentar encontrar maneiras para cooperarmos juntos — diz Chad.

Segundo a Bloomberg, durante o período de auge do surto na China, o país, que também produz metade dos respiradores pulmonares no mundo, proibiu a exportação de máscaras e ordenou que todas as fábricas funcionando no país, incluindo a 3M, que é americana, a aumentar a produção.

O governo chinês nega que tenha proibido a exportação e afirma que 70% do que é produzido anualmente no país é exportado. Mas um estudo do Global Trade Alert mostra que 54 países, entre eles China, países europeus, Índia e Rússia, adotaram medidas de restrição à exportação de produtos médicos desde o início do ano.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) já afirmava em um relatório do fim de fevereiro que há uma “corrida global por máscaras, produtos de higienização de mãos e outros equipamentos de proteção pessoal”.

A pesquisadora do Instituto de Política Externa da Universidade Johns Hopkins Cláudia Trevisan lembra que a relação entre China e Estados Unidos vinha se deteriorando até a semana passada e havia chegado a seu “pior patamar em décadas”. A situação, segundo a pesquisadora, mudou na sexta-feira, quando os presidentes Donald Trump e Xi Jinping conversaram por telefone e prometeram cooperar na luta contra a pandemia.

—  Apesar de a negociação para a compra de equipamentos ter sido feita com empresas privadas, é difícil imaginar que 23 aviões americanos carregados com toneladas de material médico sairiam da China se não houvesse o sinal verde de Pequim. Com o coronavírus, esses produtos ganharam o status de bens estratégicos.

Ainda assim, Trevisan afirma que a trégua deve ser passageira: “a tensão entre EUA e China voltará a se agravar depois da fase aguda da crise atual”.

Nos Estados Unidos, os estados estão competindo até entre si pela compra de máscaras e respiradores. O governador de Nova York, Andrew Cuomo, cobra da Casa Branca para que entregue 30 mil respiradores. Ele afirma que só tem equipamento para mais seis dias. Trump chegou a dizer que não acreditava que Cuomo precisaria de tantos e enviou cerca de quatro mil.

As dificuldades para equipar os hospitais têm reacendido o discurso anti-China por outros vieses, diferentes dos encampados até então durante a guerra comercial dos últimos três anos. O senador republicano Marco Rubio, um dos principais exemplos dessa vertente, argumenta que é preciso ampliar a capacidade nacional de produção de equipamentos médicos.

Mas reconverter parques industriais é uma tarefa de médio a longo prazo, e nem todos os insumos estão disponíveis nacionalmente, já que o fornecimento de peças, principalmente em aparelhos complexos como ventiladores, se dá por meio de cadeias globais de suprimento. A Ford e a General Motors estão se empenhando em reconverter seus parques industriais, mas o processo pode demorar semanas e até meses.

O foco na produção nacional também ocupa o debate na França, onde o presidente Emmanuel Macron prometeu que o país se tornaria autossuficiente na produção de máscaras até o fim do ano. No México, importante fornecedor de equipamentos de proteção médica para os Estados Unidos, ainda não há sinais de que as exportações diminuirão. Mas com o crescimento da demanda interna, o tema pode se tornar nova fonte de rusga bilateral com o vizinho.


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