25/04/2024 - Edição 540

Poder

Bolsonaro, Mourão e militares celebram Golpe de 1964

Publicado em 03/04/2020 12:00 -

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Bolsonaro desdenha das vítimas do coronavírus como desdenha dos mortos pela ditadura, que completou 56 anos no último dia 31. Acredita que são baixas de guerra. Avalia que, em nome de um bem maior determinado pelo autocrata de plantão, o governo tem soberania para decidir quem vive e quem morre. Uma análise mais refinada colocaria Bolsonaro como exemplo da necropolítica, no conceito do filósofo camaronês Achille Mbembe. Para o grosso da população, basta a comparação com um chefe de milícia.

Jair Bolsonaro corria o risco de passar para a história apenas como um presidente medíocre, mentiroso e agressivo. Até que a pandemia de coronavírus chegou ao Brasil. No único momento em que o país precisou de sua liderança, ela não apareceu. Pelo contrário, dedicou-se sistematicamente a facilitar os óbitos de milhares de brasileiros não apenas por um negacionismo passivo, mas lutando ativamente contra as medidas sanitárias. Ao mesmo tempo, sua demora em garantir ajuda a trabalhadores atingidos e micro e pequenas empresas prejudicadas semeou caos social e econômico, que colheremos em breve.

Prontamente revelou seu ciúme em relação a um subordinado que se destaca, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Por outro lado, foi incapaz de demonstrar empatia com as famílias dos mortos por Covid-19. Inseguro, precisou lembrar mais de uma vez aos jornalistas que "o presidente sou eu". Em uma coletiva de imprensa montada para convencer que ele estava fazendo algo de útil na crise, teve a coragem de dizer que "se o time está ganhando, vamos elogiar o técnico, que se chama Jair Bolsonaro". Mas o time não está ganhando, nem tem um técnico.

O naco não-circense de seus ministros nunca o respeitou. Mas, agora, diante das manchetes de jornais e revistas ao redor do mundo tratando-o como um terraplanista biológico, não se importam mais em esconder isso. Começa a ser visto como café com leite por pessoas como Sergio Moro, Paulo Guedes e Mandetta. Pior, como inimputável.

E ao tentar salvar sua reeleição em 2022, prejudicada diante da iminente recessão de uma economia em quarentena, pode ter rifado seu próprio mandato – que dificilmente sobreviverá se a contagem de corpos chegar a quatro dígitos por dia.

Jair Bolsonaro nunca escondeu dois desejos: reescrever a história e entrar para a história. E dedicou-se ao primeiro, acreditando que o segundo viria automaticamente.

O Palácio do Planalto, durante sua gestão, foi convertido em uma espécie de "Ministério da Verdade", como no romance "1984", de George Orwell, destinado a ressignificar os registros históricos e qualquer notícia que seja contrária ao próprio governo – como escrevi aqui em novembro de 2018. Para tanto, sua máquina de guerra nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens foi usada para atacar a imprensa, o Congresso e o Supremo.

"AI-5! AI-5! AI-5! AI-5!" Uma multidão de fãs de Bolsonaro se aglomerou para se contaminar e tirar fotos com o presidente durante as maniufestações contra o Congresso Nacional em 15 de março. Sorridente, o presidente saiu do Palácio do Planalto para contaminá-los e tirar selfies, desrespeitando o isolamento de sete dias para quem volta do exterior. Vale lembrar que sua comitiva de viagem aos Estados Unidos foi um dos vetores de difusão do coronavírus no Brasil. Um grupo mais exaltado pedia um novo Ato Institucional número 5. Bolsonaro – que jurou proteger a Constituição Federal – acenava a eles.

Neste 31 de março, em que lembramos do golpe de 1964, também rememoramos que, desde que assumiu, Bolsonaro diz que mortes e tortura de dissidentes políticos e indígenas pela ditadura são uma grande mentira. E que o ignóbil coronal-açougueiro Brilhante Ustra foi um herói. Não há dúvida que o presidente nos levaria de volta a 1964 – ou, pior, a 1968 – se pudesse. Prova é seu comportamento durante a pandemia de coronavírus.

Tendo subestimado o tamanho da pandemia, apostou o seu mandato que o coronavírus será um traque em comparação ao que acontece na Itália, Espanha e Estados Unidos. E acredita que, se tudo der errado, sua máquina de mentiras passará pano em tudo. Nem todas as fakes sobre primos de caminhoneiros serão suficientes para esconder a montanha de corpos que se avizinha.

Se assim for, não será apenas enviado à reserva, como em 1988, após subverter a ordem e colocar a vida das pessoas em risco no Rio. Bolsonaro vai conseguir entrar para a história. Mas não do jeito que imaginava.

Em tempo: "Há 56 anos, as FA [Forças Armadas] intervieram na política nacional para enfrentar a desordem, subversão e corrupção que abalavam as instituições e assustavam a população. Com a eleição [indireta, pós-golpe] do General Castello Branco, iniciaram-se as reformas que desenvolveram o Brasil." Postagem do vice-presidente, general Hamilton Mourão, defendendo o golpe militar, nesta terça, lembra a quem tem apreço à democracia que o dia seguinte a uma renúncia ou a um impeachment também não seria nada fácil.

Página revisitada

Em mais um aniversário do golpe de 1964, Jair Bolsonaro saudou a data como "grande dia da liberdade". Faltou definir liberdade, que, naquela fase, não existia senão como uma lamentável negligência das autoridades.

Bolsonaro tem uma visão peculiar da história. Ele já declarou que "não houve ditadura no Brasil", porque "uma ditadura não entregaria o governo para a oposição."

Aceitando-se como verdadeira a versão extravagante do capitão, será necessário concluir que jamais houve ditadura também em países como Espanha e Chile. Ou na velha União Soviética.

A história mostra que a deposição de João Goulart foi saudada pela imprensa e festejada nas ruas. Entretanto, quem imaginou que os militares desejavam consertar a democracia perdeu a ilusão quando foi editado o Ato Institucional que passou mandatos na lâmina, mandou direitos políticos para o beleléu e enviou ao olho da rua magistrados e servidores.

Em reação, terroristas a certa altura foram à sorte das armas. O regime respondeu abrindo nos porões da República uma máquina de tortura e execuções. A pancadaria e o extermínio viraram políticas de Estado. O regime matou inclusive quem não pegou em armas.

Bolsonaro já chamou a tortura e as execuções de pequenos problemas. O presidente e seu vice, o general Hamilton Mourão, tratam o torturador Brilhante Ustra como herói da resistência.

A ditadura demora a virar história porque há gente como Bolsonaro e Mourão chamando tortura de probleminha e torturador de herói. Do outro lado, há quem sustente que a turma que foi às armas queria democracia, não uma ditadura com sinal invertido.

Essa é a história. Quem a conhece não celebra, lamenta. Ao tratar o aniversário do golpe como "grande dia da liberdade", Bolsonaro impede o país de olhar para a frente.

Quando vira a página para trás, o presidente desperdiça um tempo que poderia usar para escrever páginas novas e mais dignificantes. Mas dignidade é vocábulo que parece não existir no português bélico do capitão.

Estupro da democracia

A ditadura militar de 1964 durou 21 longos anos – parte deles tenebrosos, com a morte e o desaparecimento de 434 pessoas e o envolvimento de 377 outras, direta ou indiretamente, em práticas de tortura e assassinato. A tortura a presos políticos e a eventuais inocentes foi adotada como política de Estado.

A liberdade e o respeito aos direitos humanos foram suprimidos no país por largo tempo. As garantias individuais, também. A Constituição foi rasgada e deu lugar a periódicos atos institucionais, o mais célebre deles o AI-5, que garantiram a continuidade do regime autoritário até ele se desmanchar.

O general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, disse que o golpe de 64, que ele não chama de golpe, é um fato que “pertence à História”. Se o reconhecesse como um fato positivo o teria dito com todas as letras, como no passado já disse. Mas seus ex-colegas de farda insistem em exaltar o feito.

Ordem do dia assinada pelo ministro da Defesa e pelos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica a propósito do 56 anos do golpe, confirma que os militares nunca engoliram e talvez jamais venham a engolir o fato de terem rompido com a legalidade e implantado no país uma ditadura.

Custa a crer, mas a ordem que será lida e distribuídas em todos os quarteis afirma que o golpe foi um movimento que representou “um marco para a democracia”. Como um marco? Marco de quê? Da destruição dos princípios e valores que distinguem entre um país democrático e outro que não é? Nesse caso faria sentido.

Faltou um bom redator para dar um trato à nota? Ou o ministro da Defesa e os comandantes das três armas querem mesmo dizer que um dos marcos da democracia entre nós foi a intervenção armada que depôs um presidente eleito pelo povo, substituindo-o por sucessivos generais “eleitos” por um Congresso emasculado?

Diz a nota que “o Brasil reagiu com determinação às ameaças que se formavam àquela época”. Uma das utilidades do papel é que ele serve para que se escreva qualquer coisa… Que Brasil reagiu? As chamadas “forças produtoras”, a imprensa e parte da classe média assustada, como de hábito, apoiaram o golpe.

Mas daí generalizar e apresentá-las como se falassem pelo país… O povo, como em outras ocasiões históricas, uma delas a da Proclamação da República, a tudo assistiu bestificado. Povo! Como se usa seu santo nome em vão. Como a palavra povo serve para legitimar medidas que seriam para o seu próprio bem.

Não há um só líder político, em democracia ou ditadura, que não encha a boca para dizer que fala em nome do povo. Os mais modestos, se há algum modesto, diz que fala em nome dos seus eleitores. O presidente Jair Bolsonaro usa as duas formas de acordo com as conveniências do momento. Pura enganação.

O ex-presidente Tancredo Neves ensinava que político depois de eleições não tem mais voto – teve. Passou. A cada dia deveria se lembrar disso. Se lembrasse, cuidaria melhor do povo para reconquistar os votos que perdeu desde que o resultado da eleição foi proclamado. Bolsonaro parece não se dar conta disso.

Da ordem do dia sobre o golpe que inventou o falso “milagre econômico brasileiro”, um período que na verdade beneficiou os mais ricos em detrimento dos mais pobres, só é aproveitável o trecho que reafirma que as Forças Armadas estão “submetidas ao regramento democrático”. No que não fazem nenhum favor.


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