28/03/2024 - Edição 540

Poder

Bolsonaro perde apoio dentro do governo por postura na crise do coronavírus

Publicado em 03/04/2020 12:00 -

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Enquanto o presidente Jair Bolsonaro modula seu discurso no caminho contrário ao que o mundo vem fazendo para conter a pandemia do coronavírus, no Brasil, bem próximo dele, inicia-se uma espécie de sondagem para o caso de um afastamento do chefe do Executivo.

Na semana que passou, quando o mandatário elevou o tom sobre o que chama de “gripezinha”, o vice-presidente Hamilton Mourão foi procurado por militares de alta patente do Exército, Marinha e Aeronáutica. Além de expressar preocupação com o momento, colocaram-se à disposição de Mourão no caso de um impeachment ou renúncia de Bolsonaro. 

O site HuffPost falou com participantes desse encontro e interlocutores de Mourão, sob a condição de anonimato. A conversa inicial se deu logo após o pronunciamento de Bolsonaro em rede nacional de rádio e televisão, no último dia 24, mas outros encontros voltaram a ocorrer na sequência. 

A avaliação do núcleo militar é que, sob o pretexto de se mostrar como um político diferenciado, o presidente está colocando vidas em risco. Contudo, para eles, Bolsonaro parece não estar levando em conta que muito será perdido e que, quando se fala em perdas humanas, isso “vale mais do que qualquer crise econômica”, disse um dos interlocutores. 

Em Brasília, não são apenas os militares que já traçam cenários para o futuro. A conversa que o comando militar teve com Mourão, por exemplo, ocorre com outros ministros também: O que fazer caso o presidente seja afastado?

Auxiliares de Bolsonaro no Planalto e pela Esplanada avaliam que, desta vez, o presidente pode estar esticando a corda para além do limite. Ninguém acredita, porém, que o presidente vá abrir mão do cargo por meio de uma renúncia, como sugeriu recentemente uma antiga aliada de Bolsonaro, a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP), que chegou a ser cogitada a vice dele nas eleições de 2018. 

Embora alguns processos de impeachment já tenham sido protocolados nos últimos dias, desde a fala de Bolsonaro à nação, e mesmo que haja outros, mais antigos, aguardando avaliação da equipe técnica da Câmara dos Deputados – são mais de 15 solicitações na Casa -, não há clima político para isso no momento.

Responsável por dar o sinal verde para o andamento de processos de impeachment, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), já disse mais de uma vez não estar disposto a isso. Ao menos por enquanto. Ele diz a interlocutores que o procuram para tratar do assunto que, no meio de uma crise sanitária, a prioridade do País é salvar vidas e não “domar o presidente”.

A avaliação de Maia e também do núcleo militar é compartilhada nos bastidores do Congresso. Não é hora para se falar em tirar o presidente do cargo. Para parlamentares ouvidos pelo HuffPost, um processo como esse agravaria a crise política e, pior, institucional na qual o País está mergulhada. 

Chefe da Procuradoria-Geral da República, Augusto Aras responde de pronto, quando cobrado a agir contra Jair Bolsonaro por causa das seguidas ações estapafúrdias do presidente nessa crise do coronavírus. “O pessoal está batendo na porta errada. Aqui não é casa de solução política, é casa de legalidade. Para cassar presidente, tem que ir ao Congresso. Não vou aceitar manipulação de ninguém, vou cumprir as leis, não adianta pressionar”, disse a coluna Radar, da Veja.

Há preocupação por parte do mercado. O analista sênior da Eurasia Group Silvio Cascione diz que não se pode afirmar que o presidente está “inviabilizado”, mas que “com certeza piorou o ambiente não só para o enfrentamento à crise, mas para a agenda política depois dela”. 

“O comportamento dele está causando muita preocupação [ao mercado]. Está acirrando a disputa com o Congresso, o que aumenta a incerteza sobre a agenda econômica e também o risco de que o controle da epidemia leve mais tempo”, destacou ao HuffPost. 

Na avaliação de Cascione, a preocupação de Bolsonaro com a economia e os efeitos do coronavírus é “pertinente”. “Mas está sendo comunicada de uma forma muito agressiva e aumentando o risco de que as pessoas se exponham ao vírus”, ponderou.

Reações

Líderes de partidos de oposição ao governo e os ex-presidenciáveis Fernando Haddad (PT), Ciro Gomes (PDT), Guilherme Boulos (Psol) e Manuela D'Ávila (PCdoB) se uniram de forma inédita para lançar um documento no qual pedem a renúncia do presidente. 

No documento, acusam Bolsonaro de ser "um presidente da República irresponsável" e o “maior obstáculo à tomada de decisões urgentes para reduzir a evolução do contágio” do novo coronavírus, “salvar vidas e garantir a renda das famílias, o emprego e as empresas”. 

Eles ainda afirmam que o capitão reformado não tem condições de continuar governando o país: “Comete crimes, frauda informações, mente e incentiva o caos, aproveitando-se do desespero da população mais vulnerável”. E continuam dizendo que o presidente deve renunciar. Ele “é mais que um problema político, tornou-se um problema de saúde pública”, diz o texto.

O movimento é apoiado por outros políticos, como o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB); o ex-governador do Paraná Roberto Requião (MDB); o ex-governador do Rio Grande do Sul Tarso Genro (PT); e pelos presidentes do PT, Gleisi Hoffmann; do PSB, Carlos Siqueira; do PDT, Carlos Lupi; do PCB, Edmilson Costa; do Psol, Juliano Medeiros; e do PCdoB, Luciana Santos.

Segundo Jandira Feghali (PCdoB-RJ), o PCdoB do Distrito Federal “vai processar Bolsonaro por ameaça à saúde pública ao circular pela capital e instigar o fim da quarentena em meio à crise sanitária”. 

No mesmo movimento, no último dia 29, cerca de 25 entidades ligadas à saúde classificaram, em um manifesto, o posicionamento de Bolsonaro diante da pandemia como “intolerável”. “Bolsonaro comete o crime de infração de medida sanitária preventiva, a ser enquadrado no art. 268 do Código Penal Brasileiro, ao desrespeitar 'determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa'”, afirmam as entidades no documento.

Petição

O pedido de impeachment do presidente Jair Bolsonaro alcançou a marca de um milhão de assinaturas em petição de apoio on-line. As assinaturas foram entregues na Câmara dos Deputados, no último dia 31, e anexadas ao pedido oficial formulado pelos deputados federais do PSOL Fernanda Melchionna (RS), Sâmia Bomfim (SP), David Miranda (RJ), a deputada estadual do Rio Grande do Sul, Luciana Genro, e mais de 200 pessoas públicas, como a economista Monica de Bolle, os cientistas Stevens Rehen e Sidarta Ribeiro, as antropólogas Débora Diniz e Rosana Pinheiro-Machado, o filósofo Vladimir Safatle, artistas como Gregório Duvivier, Maria Rita, Chico César e Zélia Duncan, e até o youtuber Felipe Neto.

“A coleta de mais de um milhão de assinaturas ao pedido de impeachment de Bolsonaro é a demonstração da indignação popular diante das atitudes e declarações criminosas e irresponsáveis de Bolsonaro. No momento de pandemia do novo coronavírus precisávamos de um líder da nação, mas Bolsonaro prefere liderar os seus, a extrema-direita. Ele atenta contra a vida de 200 milhões de brasileiros, ao negar a Ciência e ignorar as recomendações da OMS sobre o isolamento social. Bolsonaro não tem mais condições de continuar”, afirma Melchionna.

Análise

Sabe Deus o que se passa na cabeça do presidente Jair Bolsonaro. Ou nem Deus sabe, talvez só o dono da cabeça. Luiz Henrique Mandetta, ministro da Saúde, apareceu na televisão e disse que o isolamento social deve ser mantido enquanto não passar a pior fase da pandemia. Menos de 12 horas depois, Bolsonaro desfilou por galerias e ruas de Taguatinha, Ceilândia e Sobradinho, cidades do entorno de Brasília, atraiu gente, posou para fotos com seus admiradores e até com crianças, apertou mãos, e anunciou que cogita de um decreto mandando todo mundo trabalhar.

Que ordem valerá? A dada por Mandetta? Ou a que Bolsonaro poderá tomar? Qual será a reação das pessoas país a fora? Se o presidente volta a circular e diz que o coronavírus não é tão feio como parece, é razoável que muitos acreditem nele. E que o imitem. Consequências? Mais infectados, mais aspirantes à morte.

É fato que de 15 dias para cá, os brasileiros vem tapando os ouvidos ao que ele diz. No fim de semana dos dias 14 e 15, as praias do Rio, a Avenida Paulista e a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, estiveram atulhadas de gente. Foi no dia 15 que Bolsonaro recepcionou seus devotos à entrada do Palácio do Planalto.

De lá para cá, na contramão dos seus equivalentes no resto do mundo, Bolsonaro tornou-se um grave problema sanitário para o país. Chefes de Estado, que a princípio vacilaram diante de um inimigo desconhecido contra o qual carecem de armas, aos poucos foram se ajustando à realidade. Até Donald Trump.

Sem essa de que o tempo foi curto para perceberem o que estava por vir. No dia 31 de dezembro último, jornais chineses publicaram que um novo tipo de pneumonia fora identificado em Wuan, a sétima cidade mais populosa daquele país, com cerca de 11 milhões de habitantes. O avanço da doença foi rápido.

Dali a 17 dias, o governo chinês informava que o vírus já contaminara 62 pessoas, matando duas. No dia 19 de janeiro, o número de casos de infecção saltara para 198, com quatro mortes. Um jornal francês publicou que havia cerca de 1.7 mil pessoas na China com sintomas da doença, e duas na Tailândia.

No dia 20 de janeiro, 291 chineses contaminados e seis mortos. Três dias depois, os moradores de Wuan acordaram com o comunicado de que ninguém sairia mais da cidade nem entraria. Confinamento geral e obrigatório. Exército nas ruas. Médicos de prontidão. Só funcionariam os serviços essenciais.

Aqui, estávamos a um mês do carnaval, esquentando os tamborins, lubrificando as engrenagens dos trios elétricos e costurando as últimas fantasias. Os sambas-enredo, escolhidos há três meses, eram cantados por dançarinos e torcidas. Bolsonaro já aprontava. Dava bananas para a imprensa. Mas quem ligava? Evoé, Momo!

Apronta desde o primeiro dia no cargo. Seu discurso de posse contém todas as sementes do ódio que germinava dentro dele e dos filhos e que ele desejava inocular na maior quantidade possível de brasileiros para garantir sua reeleição em 2022. Ele, agora, luta para que não se disperse o núcleo mais resistente do seu bloco.

Daqui para frente, como será? Bolsonaro dobrará sua aposta, triplicará, com a esperança de que o coronavírus mate menos brasileiros do que indicam os cálculos do Ministério da Saúde e os estudos de duas universidades britânicas. O sistema de saúde do país poderá entrar em colapso em meados de abril.

A melhor arma de combate ao coronavírus é testar, testar, testar o maior número de pessoas. Foi o que aconselhou há algum tempo a Organização Mundial de Saúde. Mandetta discordou. Na semana passada, cedeu e anunciou a compra de 22 milhões de kits de teste que levarão dias para estarem disponíveis.

“Todos nós morreremos um dia”, saliva Bolsonaro. Ele que morra se quiser – os outros, não.


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