23/04/2024 - Edição 540

Poder

Para salvar a economia e a reeleição, Bolsonaro planeja acabar com o confinamento social

Publicado em 03/04/2020 12:00 -

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Se tudo sair como deseja o presidente Jair Bolsonaro e admitiu, ontem à noite, em entrevista à Rádio Jovem Pan, será assim: neste domingo (5), seus devotos promoverão uma jornada nacional de jejum e de orações sob o estímulo e a benção de pastores evangélicos.

E ele, a partir da segunda-feira (6), poderá a qualquer momento assinar uma Medida Provisória para acabar na prática com o confinamento social decretado por governadores e prefeitos e apoiado por seus principais ministros. Esse é seu plano. Simples.

É fato que o sistema federalista adotado no Brasil concede autonomia administrativa para estados e municípios em áreas como saúde, educação e comércio, o que restringiria a possibilidade de interferência de Bolsonaro. Só que…

Só que Estados e municípios não podem contrariar decreto presidencial que defina como atividades essenciais as que, a juízo de Bolsonaro, devam funcionar. À Justiça, provocada mais tarde, caberá a última palavra. Nesse meio tempo…

Nesse meio tempo boa parte dos brasileiros se sentirá autorizada a voltar a circular, pois o presidente não mandou? O confinamento sofrerá duro abalo. E Bolsonaro terá alcançado seu objetivo. Mas por que, se dependesse dele, jamais teria havido confinamento?

O confinamento enfraquece a Economia, e do sucesso dela depende a reeleição de Bolsonaro em 2022. Não há o que fazer contra o coronavírus, disse Bolsonaro à Jovem Pan. Melhor que o vírus contamine logo cerca de 70% da população, como se estima.

Morrerá muita gente? Morrerá. Morrerão principalmente idosos que já sofrem de outras doenças e estão condenados a morrer mais dia menos dia. Coisas da vida. Tudo passa, passará. Sem eles, a pressão sobre a Previdência será menor. E a Economia, salva.

O The New York Times, o mais importante jornal do mundo, contou que o presidente Donald Trump ouviu de banqueiros e de empresários que deveria permitir que o vírus seguisse seu curso natural, infectando e matando quem tivesse de morrer.

Por isso, até o último dia 27, Trump tratou a pandemia como se fosse uma “gripezinha”. Afinal convencido de que estava errado, pediu aos norte-americanos: “Fiquem em casa”. Pediu ajuda à China e à Rússia. E foi à luta. Está perdendo feio a parada.

Bolsonaro também está perdendo feio – no seu caso porque ficou isolado. Isolado dentro do governo, isolado dentro do Congresso, isolado dentro dos tribunais superiores e isolado nas ruas que ficaram vazias. Daí o desespero que não consegue disfarçar.

Quem, em público, ousa lhe dar razão? Apenas os devotos de raiz nas redes sociais e os pastores aflitos com a queda de arrecadação nas suas igrejas, fábricas de dinheiro. Banqueiros e empresários até que lhe dão razão, mas só às escondidas. E em voz baixa.

Bolsonaro virou um pária. Está para a política como o coronavírus está para a Saúde e a Economia – ambos são tóxicos e letais. Na próxima eleição, antes de digitar na urna o nome do seu candidato, lave bem as mãos com álcool gel para votar melhor.

Evangélicos fazem coro com Bolsonaro e negam riscos do coronavírus

O presidente Jair Bolsonaro gosta de copiar o seu ídolo americano, Donald Trump – da suposta inofensividade do coronavírus até os poderes de cura de medicamentos como cloroquina e hidroxicloroquina, passando pela teoria da conspiração de que o vírus foi uma criação da China para atacar o mundo ocidental.

Ao mesmo tempo, as igrejas neopentecostais brasileiras seguem a mesma linha sobre o novo coronavírus que os pregadores evangélicos da televisão dos EUA.

O vírus é uma estratégia de satã, anunciou Edir Macedo, o fundador da poderosa Igreja Universal do Reino de Deus, em um vídeo nas redes sociais. Quem nada teme não precisa se preocupar, pois o vírus nada poderá lhe fazer, acrescentou o milionário dono da Record. Já Valdemiro Santiago, o líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, considera o vírus uma vingança divina. 

Nos últimos dias, o mais agitado de todos foi Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo e tido como o guru religioso de Bolsonaro. Assim como o mandatário, Malafaia também criticou o isolamento social.

"Vai morrer gente pelo coronavírus? Vai. Mas se houver caos social, vai morrer muito mais. As igrejas são essenciais para atender pessoas em desespero, angustiadas, depressivas, que não serão atendidas nos hospitais", afirmou Malafaia.

No último dia 26, Bolsonaro alterou um decreto que define os serviços públicos e as atividades essenciais em meio à pandemia do novo coronavírus, incluindo na lista as atividades religiosas. No dia seguinte, a Justiça Federal do Rio de Janeiro suspendeu o trecho referente às igrejas do decreto, no dia 31, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) derrubou a decisão, voltando a permitir as atividades religiosas. No último dia 2, um juiz federal de Brasília determinou à União que exclua as atividades religiosas do rol de serviços considerados essenciais. A decisão tem caráter liminar (provisório) e é assinada pelo juiz federal Manoel Pedro Martins de Castro Filho, da 6ª Vara da Justiça Federal do DF.

O fato é que vários templos das grandes igrejas neopentecostais permanecem abertos. A maioria, porém, está vazia. Malafaia e Santiago celebram seu cultos em templos vazios e os transmitem pela internet.

"O declínio é geral em todas as igrejas. Há uma redução enorme da frequência das pessoas nas igrejas", analisa o sociólogo Clemir Fernandes, do Instituto de Estudos da Religião (Iser). "Pois, quanto mais a imprensa fala e as pessoas têm informações qualificadas e percebem os riscos, mais as pessoas tomam previdências. Afinal, as mortes estão aumentando."

Além das grandes igrejas, existe um universo aparentemente infinito de pequenas igrejas, que encontram fiéis sobretudo nas comunidades pobres.

"A pessoa vai no mercado, onde tem muito mais gente do que na igreja que fica na esquina da casa dela. E lá na igreja, ela não se sente insegura", diz Fernandes. Para ele, as pessoas se protegem e "não são irresponsáveis".

Mesmo assim, há relatos de pastores que minimizam os riscos do vírus ou querem derrotá-lo com a ajuda de Deus. Uma igreja em Porto Alegre prometeu até mesmo a imunização contra o vírus.

"Isso é muito folclórico e caricatural, não é representativo do universo evangélico em geral", comenta Fernandes. "No geral, as pessoas são mais racionais."

Segundo ele, o mundo evangélico é bem mais receptivo à ciência do que outras confissões. "As igrejas evangélicas na tradição do protestantismo não negam a ciência. Os evangélicos, em geral, tomam a pílula da ciência, mas também fazem suas orações; não abrem mão nem de uma nem da outra coisa."

Episódios bizarros relatados pela imprensa brasileira têm muito mais que ver com a projeção que os evangélicos obtiveram depois da eleição de Bolsonaro, diz o sociólogo.

"Fundamentalismo do excluído"

Assim como ocorreu com Trump nos EUA, os evangélicos neopentecostais ajudaram a eleger Bolsonaro. Eles são cerca de um terço da população de 210 milhões de brasileiros, mas são muito mais bem organizados do que a maioria católica.

Bolsonaro, que oficialmente é católico, deixou-se batizar por um pastor evangélico no rio Jordão em 2016. Ele costuma frequentar cultos neopentecostais ao lado da esposa, que é evangélica.

Para o professor Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP, Bolsonaro representa uma espécie de "fundamentalismo do excluído", que ecoa sobretudo entre setores da população "que se orientam pelos valores tradicionais e se sentem excluídos e marginalizados no atual processo de desenvolvimento econômico".

Esse setor cultiva também um inimigo imaginário, aponta Ribeiro Neto. "O fundamentalista enxerga o mundo preenchido por perigos e inimigos ocultos e acredita que sua observância estrita a um conjunto de normas e doutrinas é sua única salvação contra o mal do mundo."

"A pandemia reforça essa imagem aterrorizante do mundo atual. Existe uma forte associação entre negar a necessidade de isolamento social, para não atrapalhar a economia, e negar o perigo do aquecimento global, que também atrapalha a economia. O problema de fundo não é a economia, como pode parecer, mas a necessidade de se distinguir do adversário e transformá-lo num 'espantalho ideológico', perigoso e ridículo", diz Ribeiro Neto.

Para Fernandes, a demonização do isolamento social por líderes evangélicos como Malafaia é apenas faro para os negócios, semelhante ao de muitos empresários que também se manifestam contra o isolamento e fechamento de lojas.

"A relação de Malafaia com Bolsonaro é semelhante à de muitos empresários. Eles não querem abrir mão dos seus lucros e dos seus crescimentos. Silas Malafaia é um empresário da religião, que, junto com esse outros empresários, defende os seus interesses."

Do ponto de vista político, negar os riscos do novo coronavírus não é sustentável, avalia Fernandes. Entre os evangélicos, o apoio a Bolsonaro recua, assim como em toda a sociedade brasileira. Isso inclui também a bancada evangélica no Congresso Nacional. Pois também entre eles há médicos e deputados com conhecimentos científicos, lembra.

Estratégia arriscada

A abordagem radical de Bolsonaro em relação à pandemia o isolou. Alguns governadores que alcançaram fama endossando suas políticas de extrema direita se voltam agora contra ele. Metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro vêm registrando protestos diários há duas semanas. Pode-se ouvir o estridente barulho dos panelaços até em bairros de classe alta, que votaram em peso em Bolsonaro em 2018.

Embora Bolsonaro tenha perdido o apoio de muitos seguidores moderados, ele ainda conta com uma base leal para aplaudir sua resposta à pandemia. Além de organizar carreatas por todo o país pedindo o fim das medidas de isolamento, seus apoiadores também alavancaram a hashtag #BolsonaroTemRazao na semana passada.

Uma das principais razões pelas quais Bolsonaro se posiciona com tanto fervor contra medidas de isolamento e a favor da reabertura do comércio pode ser para garantir sua reeleição em 2022. "Acima de tudo, as eleições são sobre a economia. E ele deve assegurar que os eleitores não o considerem responsável pela crise econômica", diz Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

É uma estratégia arriscada, aponta o professor, porque grande parte da população vai responsabilizar Bolsonaro por mortes relacionadas ao coronavírus. Mas, segundo Stuenkel, usar a crise de saúde pública para ampliar as divisões no Brasil também pode fortalecer seu apoio por parte de sua base principal. "É realmente importante para ele manter as pessoas mobilizadas o tempo todo. E o que estimula essas pessoas é um senso de injustiça e a sensação de estar sob ataque", disse Stuenkel. "Ele precisa de polarização."

Gota d´água

O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, segue disposto a não pedir demissão do cargo. Ele tem sido apoiado a permanecer, nos bastidores, pelo vice-presidente, Hamilton Mourão, pelos ministros generais e pela chamada ala “técnica” do governo, composta, entre outros, por Paulo Guedes (Economia), Sérgio Moro (Justiça), Tarcísio Freitas (Infra-Estrutura) e Tereza Cristina (Agricultura).

Nas conversas com Mandetta, os ministros adotam tom entre preocupado com o que pode ser da crise caso ele seja substituído por alguém mais ideológico, afinado com a disposição de Bolsonaro de relaxar as recomendações de isolamento social, e condescendente em relação aos arroubos presidenciais contra o auxiliar, dizendo se tratar do “jeito” de Bolsonaro, e que esses surtos costumam passar caso o alvo dê tempo ao tempo e não “provoque”.

Aliados do ministro no DEM e em outros partidos do Congresso também monitoram sua disposição em conversas diárias. Ouvem do titular da Saúde muita preocupação com o que pode acontecer no sistema de saúde nas próximas semanas e a disposição de manter o esquema do ministério, que está azeitado e em boa conexão com Estados e municípios.

Mas o ministro também teme ser alijado, aos poucos, do comando do manejo da crise, o que poderia fazer com que fosse engolfado caso o número de casos e mortos e a situação dos hospitais saiam de controle. Auxiliares de Mandetta reclamam da exposição desnecessária do ministro em um momento tão grave, como a decisão de exclui-lo de uma reunião com profissionais de saúde e a entrevista com críticas abertas a ele.

O ministro e Bolsonaro devem voltar a conversar ao longo do fim de semana. Aliados temem que, se o presidente encorajar ou de alguma maneira participar de manifestações previstas para domingo, seja a gota d’água para Mandetta.


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