26/04/2024 - Edição 540

Brasil

O coronavírus encontra um país devastado

Publicado em 02/04/2020 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

O Brasil corre contra o tempo para enfrentar o pico da epidemia de coronavírus, previsto pelo Ministério da Saúde para daqui a duas semanas. Mas bem que o país poderia ter uma máquina do tempo, voltar algumas décadas, e investir na produção de materiais e equipamentos médicos. Hoje, como em boa parte do mundo, o governo lamenta a falta de projeto de país que deixou o mercado livre para tomar decisões como fechar fábricas em território nacional e levá-las para locais onde as margens de lucro seriam maiores. Ou o arrependimento é pior, pois em muitos casos não há sequer essa história para contar e tudo dependeu da adoção de um papel passivo de importador de insumos. 

“Quando acabar essa epidemia, eu espero que nunca mais o mundo cometa o desatino de fazer 95% da produção de insumos que decidem a vida das pessoas em um único país.” A frase é do ministro Luiz Henrique Mandetta, a quem coube expor como o Brasil está sendo passado para trás na geopolítica que comanda silenciosamente a briga por máscaras, luvas,  respiradores, reagentes e outros produtos essenciais na resposta à covid-19. 

“Os Estados Unidos mandaram 23 aviões cargueiros dos maiores para a China, para levar o material que eles adquiriram. As nossas compras, que tínhamos expectativa de concretizar para poder fazer o abastecimento, muitas caíram”, relatou Mandetta, desdizendo aquilo que havia anunciado 48 horas antes: que as encomendas brasileiras chegariam em, no máximo, 30 dias. “Está havendo uma quebra entre o que você assina e o que recebe. Eu só acredito quando estiver dentro do país, na minha mão”, constatou, tentando transmitir um senso de resignação geral à nação: “Agora é lutar com as armas que a gente tem.” Ou seja, esperar pelo pior.

Porque é de colapso que se trata. Os mesmos EUA que agora dominam as compras de uma China que recomeçou a produzir são, hoje, um bom exemplo da escassez que vamos enfrentar. Em Nova Iorque, onde a situação da epidemia é dramática, falta desde equipamentos de proteção individual a respiradores. Andrew Cuomo,  governador do estado, que tem sido uma espécie de bússola moral entre os políticos daquele país, admitiu que, ao fim de abril, quando o pico dos casos ocorrer, serão 16 mil mortos. De acordo com projeções apresentadas ontem, os hospitais da cidade precisariam ter entre 25 mil e 37 mil respiradores a mais, e 75 mil e 110 mil leitos para enfrentar o que vem pela frente. 

Para se ter uma ideia e comparar, o Ministério da Saúde divulgou que o Brasil dispõe de 65.411 respiradores – a maior parte (46.663) no SUS. Mandetta disse que estão garantidos apenas oito mil respiradores mecânicos a mais vindos da China. O restante encomendado foi tirado de estoque pelo fornecedor. “Você pode ter o PIB do país e dizer: eu quero comprar. A fábrica não consegue te atender. O mundo inteiro também quer. Temos um problema hoje de demanda hiper aquecida sobre os itens-chave”, constatou ele. De acordo com o Estadão, a indústria brasileira estima que consegue produzir por aqui entre dez e 15 mil aparelhos desses. Ficam prontos entre 60 e 90 dias, para depois do pico projetado pelo governo. Então, na melhor das hipóteses, somadas essas compras à capacidade instalada, para um país de mais de 210 milhões de habitantes teríamos, em junho, cerca de 69,6 mil respiradores no SUS… 

Em relação às máscaras N 95, aquelas mais robustas – que são também as mais seguras –, a recomendação do Ministério não chega nem a sair do senso comum: cada profissional terá de esterilizar e usar diversas vezes.

Apesar das dificuldades admitidas a nível de governo federal, Mandetta fez uma recomendação um tanto fora da realidade aos estados: “A compra que o Ministério da Saúde está tentando fazer centralizada é um esforço. Façam vocês também, localmente internacionalmente. Os recurso que a gente repassa podem ser usados.” Como nota O Globo, o ministro da saúde volta atrás mais uma vez, já que até ontem a orientação aos governadores e prefeitos era que as compras fossem centralizadas na Pasta.

Falta Ousadia

Um estudo, ainda em revisão, assinado pelo secretário de Vigilância em Saúde do Ministério, Wanderson Oliveira, junto com pesquisadores de Harvard constata que o Brasil terá falta de leitos de UTI e de internação, além de respiradores. O problema começa agora, no início de abril. Para lidar com a escassez, o artigo propõe a regulação única de leitos – que vem sendo defendida também por diversos especialistas e suscitou até a criação de um movimento de pressão, o Leitos para Todos. 

Isso quer dizer que o governo federal deveria assumir, durante a crise, a responsabilidade pela ocupação dos leitos disponíveis na rede privada. Essa decisão foi tomada na Espanha e na Irlanda. Há um óbvio imperativo ético como pano de fundo, que foi resumido pelo ministro da saúde irlandês: “Na resposta à crise de covid-19 não pode haver espaço para público versus privado”, disse Simon Harris. 

No Brasil, a medida está prevista em casos de “iminente perigo público” tanto na Constituição quanto na principal lei do SUS, a 8.080. Mas para o Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento na Saúde, da UFRJ, o decreto federal de estado de calamidade pública de 20 de março perdeu a chance de utilizar essa brecha. Há um erro (proposital, quem sabe) no diagnóstico e, para os pesquisadores, o documento não reconhece a insuficiência, a desigualdade e a fragmentação da oferta de leitos no país.

Como sabemos, o Sistema Único de Saúde conta com hospitais públicos, administrados pelos municípios, estados e pelo governo federal, mas, historicamente, contrata leitos de hospitais filantrópicos e particulares – que, por sua vez, também vendem sua capacidade instalada para o mercado. “A segmentação da oferta de leitos é peculiar porque, na rede SUS, 21,5% dos leitos são de natureza privada e 64% são filantrópicos. Ou seja, um mesmo hospital pode, no Brasil, vincular-se simultaneamente ao SUS e aos planos privados”, diz o estudo da UFRJ. De modo que esse imbricamento entre o público e o privado já é a realidade do Sistema, predado pelo mercado, como demonstra a diferença entre o número de internações a cada mil habitantes. Para clientes de planos de saúde, foram 171 internações a cada mil deles em 2018. Para usuários do SUS, o número baixa para 73.

Falta Dinheiro

O Conselho Nacional de Saúde estima que, para dar conta da epidemia de coronavírus, seriam necessários mais R$ 42,5 bilhões no orçamento do Ministério. Muito abaixo disso, Mandetta costurou junto ao Congresso um incremento de apenas R$ 5 bilhões. 

Mas há um problema pior: de acordo com o Conselho, ainda não houve repasse desses recursos novos, que virão de emendas parlamentares, e o Ministério da Saúde ainda trabalha com o orçamento normal, apenas remanejado. 

O Conselho vai encaminhar uma nota pública à Pasta com recomendações. E o mesmo cálculo será enviado à ministra Rosa Weber, do STF, que solicitou informações para decidir sobre três ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) que tramitam na Corte contra a Emenda do Teto dos Gastos que já retirou bilhões do SUS. Aliás, outra ADI – a 5595 –, que contesta outra mudança prejudicial ao orçamento do Sistema Único, tem votação prevista para amanhã no Supremo.

Dados escondidos

O colunista da revista Época, Guilherme Amado, denuncia que o Ministério da Saúde tem sonegado dados sobre a resposta à epidemia. De acordo com ele, quatro solicitações, embasadas na Lei de Acesso à Informação (LAI), foram enviadas à Pasta. Pediam atas do Centro de Operações de Emergência, primeira iniciativa lançada pelo Ministério; queriam acesso a processos administrativos relacionais à covid-19; queriam números sobre gastos e investimentos para combater a doença; e, finalmente, se há funcionários com suspeita de infecção. Para todos os casos, a resposta (cretina) foi a mesma: “Os dados são de grande relevância para a adoção de medidas estratégicas para a condução de ações frente à covid-19 e devem ser salvaguardados.”

Especialista na LAI, Joara Marchezini, fez a seguinte reflexão: “Numa pandemia, vai haver dificuldades, mas é quando mais precisamos de transparência. A emergência da calamidade faz com que mecanismos de fiscalização e controle social sejam fortalecidos e não enfraquecidos, para diminuir as chances de corrupção e mau uso do dinheiro público, e estarem bem informadas para conseguir se proteger.”

E, pelo visto, as dificuldades em obter informações do governo federal ultrapassam a imprensa. Ontem, o ministro Alexandre de Moraes determinou um prazo de 48 horas para que o presidente Jair Bolsonaro explique as medidas adotadas para combater a epidemia. A decisão foi tomada no âmbito de uma ação movida pela OAB. A Ordem quer que a Corte proíba o governante de contrariar orientações técnicas nacionais e internacionais.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *