26/04/2024 - Edição 540

Poder

Bolsonaro usa pandemia para ameaçar a democracia

Publicado em 27/03/2020 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

O presidente Jair Bolsonaro colocou em dúvida se o Brasil é capaz de manter sua “normalidade democrática” ao falar dos reflexos da crise da pandemia do coronavírus para o País.

“Todos nós pagaremos um preço que levará anos para ser pago, se é que Brasil não possa ainda sair da normalidade democrática que vocês tanto defendem. Ninguém sabe o que pode acontecer no Brasil. Sai porque o caos faz com que a esquerda se aproveite do momento para chegar ao poder. Não é da minha parte não, fique tranquilo”, afirmou ele no último dia 25, na porta do Palácio da Alvorada.

Mas, os defensores da intervenção militar e do fechamento do Congresso não contarão com o apoio das Forças Armadas, afirma o deputado General Peternelli (PSL-SP), para quem não há amparo para ruptura institucional e que as Forças Armadas estão a serviço do Estado brasileiro, e não de governos.

“Quem atua nas Forças Armadas visualiza que a atuação dele é em favor do Estado brasileiro, e não do governo. Não vejo atuação das Forças Armadas que não seja cumprindo suas obrigações legais e constitucionais”, afirmou. Para ele, não há espaço para o fechamento do Congresso e outras instituições democráticas. “Acredito que não tem amparo formal para essa solicitação. Se não tem, não vejo nenhuma possibilidade de atuação das Forças nesse aspecto”, completou o general, ressaltando que não fala em nome da instituição.

Com 44 anos de experiência no Exército, o general diz que a posição atual das Forças Armadas é a mesma já manifestada anteriormente por outros comandantes – a de defender as instituições democráticas. “As Forças atuam institucionalmente de acordo com preceitos da Constituição Federal. Elas já emitiram seu posicionamento e ele não mudou”, declarou.

Peternelli diz não acreditar que Bolsonaro tente um golpe. “Não vejo essa possibilidade. Ele sempre expressa o que pensa”, declarou.

O comandante do Exército, general  Edson Leal Pujol, distribuiu um vídeo aos militares brasileiros sob seu comando. Na mensagem, publicada no último diz 24, pouco antes do pronunciamento de Jair Bolsonaro, Pujol disse aos seus subordinados que o coronavírus "talvez seja a missão mais importante" da atual geração.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) também se mostrou atenta as tentações totalitárias de Bolsonaro. No dia 21 divulgou um parecer (íntegra) no qual aponta a inconstitucionalidade da decretação de um estado de sítio. A ideia foi objeto de uma consulta feita pela Presidência da República na semana passada.

O texto é assinado pelo presidente nacional da OAB, Felipe Santa Cruz, e pelo presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da entidade, Marcus Vinicius Furtado Coelho.

O estado de sítio libera diversas medidas coercitivas, como a restrição do sigilo e o impedimento de reuniões.

"Não há dúvida de que a situação atual produz sensações de pânico e de temor na população. Esses sentimentos não podem, no entanto, ser explorados para autorizar medidas repressivas e abusivas que fragilizem direitos e garantias constitucionais", escreve a OAB.

De acordo com o parecer, o estado de sítio não obedece aos princípios da Constituição Federal de 1988, a mais recente e que rege o Brasil atual, e só deve ser adotado quando não houver mais alternativas.

"O princípio da necessidade estabelece que o recurso à medida somente se justifica na ausência de meio menos gravosos, apresentando-se como ultima ratio (último caso) na defesa do Estado Democrático de Direito. Por sua vez, a temporariedade impõe a fixação de um prazo determinado de vigência do estado de sítio, e a obediência estrita à Constituição requer o cumprimento diligente e rigoroso de todos os termos, procedimentos e condições previstas", consta em trecho do documento.

O rito constitucional do estado de sítio

Previsto no artigo 137, o estado de sítio pode ser decretado após o presidente ouvir o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional e solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio.

Ele pode ser decretado quando há comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa. Quando há declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.

O estado de sítio não pode ser decretado por mais de 20 dias, nem prorrogado, de cada vez, por prazo superior. Porém, ele pode ser decretado por todo o tempo que perdurar a guerra ou a agressão armada estrangeira, se esses forem os casos.

Uma vez decretado, permite a detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns. Ele elimina as restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei. Ele suspende a liberdade de reunião. Permite busca e apreensão em domicílio e intervenção nas empresas de serviços públicos, além de requisição de bens.

Para entrar em vigor, o presidente precisa solicitar autorização para decretar o estado de sítio ou sua prorrogação, relatando os motivos determinantes do pedido, devendo o Congresso Nacional decidir por maioria absoluta.

O presidente Jair Bolsonaro negou que um estado de sítio esteja no radar do Planalto. "Até porque isso, para decretar, é relativamente fácil, fazer uma medida legislativa para o Congresso. Mas seria o extremo isso aí, e acredito que não seja necessário. Bem como estado de defesa. Isso aí você não tem dificuldade de implementar. Em poucas horas você decide uma situação como essa. Mas daí acho que estaríamos avançando, dando uma sinalização de pânico para a população”.

Análise

Esta semana marcou uma virada sem retorno na trajetória do presidente da República. De problema político, a provocar conflitos e a desatar crises entre os Poderes na esperança de destruir a democracia e instalar uma ditadura no seu lugar, Jair Messias Bolsonaro passou também à condição de um grave problema sanitário que ameaça à saúde dos brasileiros.

Os próximos serão dias dilacerantes com a elevação dos casos confirmados de coronavírus e do número de mortos. E os dias mais trágicos ainda não terão chegado. Calculam técnicos do Ministério da Saúde que o pico da primeira onda da pandemia só se dará daqui a quatro semanas, coincidindo com o pico de mais duas epidemias: influenza e dengue. Tempestade perfeita.

Os Estados Unidos são o novo epicentro do coronavírus no planeta, ultrapassando em número de infectados a China, a Itália e a Espanha. Em Nova Iorque, nas últimas 24 horas completadas ontem à noite, morreram mais de mil pessoas. Há pelo menos meio milhão de infectados nos os países que costumam remeter seus dados oficiais à Organização Mundial da Saúde.

Jamais se saberá com exatidão quantos de fato foram contaminados e quantos perderam a vida. É assim nas pestes. Aqui, cientistas desconfiam que os números estejam sendo achatados, ou por deficiência dos sistemas de registro, ou por falta maior de conhecimento da doença, ou por razões ocultas que ainda não foram decifradas, mas que poderão vir a ser um dia.

Depois de estimular seus governados a circularem e se divertirem sem remorsos, o presidente populista de esquerda do México, uma espécie de Bolsonaro de lá, recuou assombrado e decretou a quarentena obrigatória. Menos mal, mas tarde. O prefeito de Milão admitiu que errou ao patrocinar uma campanha publicitária onde garantiu que sua cidade não se fecharia. Fechou-se.

Justamente agora, a Secretaria de Comunicação da presidência da República do Brasil, a mando dos filhos de Bolsonaro e com o seu aval, está prestes a lançar a campanha “O Brasil não pode parar”. Sentindo-se autorizados pelo presidente eleito com o voto de apenas 39% dos brasileiros, devotos do Mito marcam carreatas em apoio ao fim da quarentena bancada pelos governadores.

Em contraste, na França, onde o coronavírus matou 365 pessoas nas últimas 24 horas, o presidente Emmanuel Macron prorrogou o período de confinamento. O presidente Donald Trump, que havia dito que o confinamento no seu país só iria até a Páscoa, engoliu o que disse. Fez um acordo com o Congresso e gastará o equivalente a 6% do PIB para socorrer quem precisa.

Como perdeu o bonde da História por ignorância ou escolha pensada e repensada, Bolsonaro faz o contrário. Atrasa a liberação de recursos para os Estados, o anúncio de medidas para que não se esvaziem rapidamente os bolsos dos que vivem na economia informal, e sabota as providências tomadas em sentido contrário por seus próprios auxiliares, além de detratá-los.

Por toda parte, a azeitada máquina bolsonarista de distribuição de notícias faltas e de produção de eventos se move para acirrar os ânimos e dividir o país, jogando uma parte dele contra a outra. Não importa que a grande maioria dos brasileiros diga apoiar a quarentena. Quem sabe a maioria não se desmanchará quando souber que a quarentena não acabará tão cedo?

Além da tempestade, teríamos então o crime perfeito: deixa-se que os velhos morram (menor pressão sobre a Previdência). E os mais pobres (menor pressão sobre outros gastos). Devolvem-se os jovens ao trabalho. Com salários reprimidos, naturalmente. Salvam-se os que por sorte se salvaram ou por dispor de renda que pagou melhor atendimento. Seleção das espécies.

Do desprezo de Bolsonaro pela vida alheia, do seu absoluto despreparo para exercer a função que exerce, o país teve mais uma vergonhosa amostra quando ele afirmou ao rebater a suspeita de que a pandemia causará grande estrago: “O brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele.”

A Agência Brasileira de Inteligência, órgão do governo, preveniu a tempo Bolsonaro para o que estava por vir – ele não ligou ou não quis ligar ou começou a pensar sobre a vantagem que poderia retirar disso. A agência opera com vários cenários – o pior, de colapso total e rápido do sistema de saúde, da fome que possa matar os desassistidos, de saques e de convulsão social.

É tudo o que almejam Bolsonaro e os que compartilham dos mesmos propósitos. Esperam que em nome do restabelecimento da ordem possam, enfim, apelar para os militares. Dificilmente o Congresso aprovaria a decretação do Estado de Defesa ou do Estado de Sítio. Mas Bolsonaro e sua malta já se contentariam com sucessivas e localizadas operações de Garantia da Lei e da Ordem.

Realizadas por ordem expressa da Presidência da República, as missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ocorrem nos casos em que há o esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, em graves situações de perturbação da ordem. O Exército é despachado para lugares que exijam sua presença por tempo determinado. Para os Bolsonaro já estaria de bom tamanho.

Em meio a uma epidemia do tamanho desta, que obriga o Congresso e a Justiça a funcionarem virtualmente, não se remove um presidente do cargo via processo de impeachment que é demorado. Os ex-presidentes Fernando Collor e Dilma Rousseff só caíram quando o povo foi para as ruas. Nem se quisesse, o povo agora iria. Panelaço faz barulho, mas não derruba presidente.

O que fazer com Bolsonaro que nem sob a pressão da farda renunciará? No passado, ele afrontou a farda ao planejar jogar bombas em quartéis. Afrontou ao cobrar o título de capitão em troca do seu afastamento do Exército por indisciplina e conduta antiética. Os generais fizeram cara feia, mas aceitaram a oferta. Resultado: hoje, batem continência para ele.

O desejo de Bolsonaro de ser promovido a ditador não será satisfeito pelas Forças Armadas. Não se conte, porém, com sua ajuda para que Bolsonaro peça o boné e vá para casa. Caberá aos civis de todas as cores que abominam as trevas desatarem esse nó.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *