16/04/2024 - Edição 540

Poder

O eclipse do ministro da Saúde

Publicado em 27/03/2020 12:00 -

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Então fica combinado assim, conforme o próprio Luiz Henrique Mandetta, o enfraquecido ministro da Saúde, apressou-se a anunciar logo depois que o governador Ronaldo Caiado (DEM-GO), a quem deve o cargo, rompeu com o governo: ele fica onde está, sim, e tão cedo sairá. Agarrou-se à cadeira.

Sabe como é… Não disse, mas o que seria do país, em hora tão grave, se o governo perdesse uma de suas poucas vozes sensatas – ele mesmo? Se pedisse demissão, a equipe que montou no ministério possivelmente sairia também. É duvidoso, mas…

Desautorizado publicamente pelo presidente Jair Bolsonaro, achou melhor engolir a seco e continuar à frente do mais duro combate travado por uma autoridade médica como ele nos últimos 100 anos. Não mais à frente, forçoso reconhecer. Meio de lado.

A ler-se ao pé da letra o que ele proclamou, nem se quiser sair, ele sairá. “Saio daqui na hora que acharem que eu não devo trabalhar, o presidente achar, porque ele que me chamou, ou se eu estiver doente”, avisou. Sairá, portanto, só demitido ou doente.

Quer dizer: por eventualmente divergir da orientação que possa receber de Bolsonaro, não sairá. Simplesmente obedecerá. Foi o que começou a fazer de imediato. Perguntado sobre a quarentena, respondeu que ela “foi precipitada e desarrumada”.

Ninguém no governo Bolsonaro é ministro. Está ministro. E Mandetta não tem a menor garantia de que estará ministro por muito tempo.  O apoio dos militares à sua permanência no cargo indicaria que, por enquanto, Mandetta é imexível. A ver.

Jair Bolsonaro lidava com duas crises. Uma sanitária e outra econômica. Conseguiu produzir uma terceira: a crise política. Além de exibir em rede nacional um pronunciamento que vai na contramão do mundo, de bater boca com o governador paulista João Doria numa teleconferência e de perder aliados como o governador goiano Ronaldo Caiado, Bolsonaro conduziu Mandetta até uma encruzilhada.

O presidente impôs ao ministro da Saúde uma escolha delicada. Ou Mandetta opta pela insubordinação, ignorando as posições do presidente, ou escolhe o caminho da desmoralização.

Não há meio termo, porque Bolsonaro defendeu em rede de rádio e de TV o oposto do que vinha recomendando o ministro. Ele sustentou que é preciso "voltar à normalidade", com a reabertura das escolas e do comércio. Absteve-se de definir normalidade.

Mandetta, ao contrário, já deixou claro que a anormalidade ainda nem começou. "Em final de abril", previu o ministro, "nosso sistema [de saúde] entra em colapso".

O que é colapso? O ministro esclareceu: "É quando você pode ter o dinheiro, o plano de saúde, a ordem judicial, mas simplesmente não há o sistema para você entrar."

Esse Bolsonaro que conspira contra Mandetta é bem diferente daquele candidato que, na campanha de 2018, prometera prestigiar a técnica em detrimento da política nos ministérios. O Bolsonaro que está no Planalto é indigno do Bolsonaro que se apresentou aos eleitores.

O ministro da Saúde vai permanecendo no cargo. Promove ajustes em seu discurso, encostando perigosamente a ciência na política. Mandetta corre o risco de se transformar num ex-Mandetta.

Apego ao cargo

Depois do pronunciamento em que Bolsonaro orgulhosamente se desfez de todas as evidências científicas sobre a disseminação do coronavírus, pairaram no ar dúvidas sobre a possível queda do ministro da Saúde. O ex-ministro José Gomes Temporão, que elogiou a forma como a Pasta conduziu a crise no começo, disse: “Se o ministro tiver coerência, vai sustentar sua posição. Seria absolutamente inadmissível que ele dissesse ‘sim, está tudo errado e o presidente é quem tem razão’. Isso não tem sentido”.

Mas Mandetta, que já chegou a ser apontado como um ponto fora da curva bolsonarista, mostrou que está mais dentro dela do que nunca: “A saúde só pode funcionar quando gera riqueza”, cravou. “Nesse sentido eu vejo a grande colaboração da fala do presidente: chamar atenção de todos que é preciso pensar na economia”, completou, pouco antes de afirmar que não vai sair do governo. Mandetta deixou a coletiva sem responder às perguntas dos jornalistas.

Seu argumento é o de que a quarentena no Brasil está sendo precipitada: “Nós saímos praticamente do início dos números para praticamente um efeito cascata de decretação de lockdowns em todo o território nacional em paralelo, como se nós estivéssemos todos em franca epidemia”, afirmou. Distorcendo as medidas locais tomadas até agora – que abrem exceção para o funcionamento de serviços essenciais, como alimentação e saúde – ele afirmou que “quarentena sem prazo determinado para terminar vira uma parede na frente da necessidade das pessoas, que precisam comer, que precisam abastecer suas casas, que precisam ir no supermercado, que precisam ir e vir porque isso faz parte da própria sobrevivência”. Afirmou ainda que as restrições podem prejudicar o próprio enfrentamento ao coronavírus porque impediriam a produção de insumos, por exemplo.

Detalhe: além das exceções previstas nos decretos municipais e estaduais, o próprio governo federal tem estabelecido quais serviços não podem parar em âmbito nacional – o que evitaria esse tipo de problema mesmo diante das mais severas quarentenas.

O ministro até admite que um dia seja necessário fazer restrições duras, mas acha que é preciso ter “cuidado” porque a quarentena é um “remédio extremamente amargo”. Então, antes de recorrer a ela, defende medidas alternativas: primeiro “trabalhar em bairros específicos, reduzir a mobilidade em alguns aparelhos”, depois então conter cidades. Como se os casos estivessem concentrados em determinados bairros, num país que já declarou, por meio de decreto, que há transmissão comunitária em todo o território.

“Existe uma série de medidas que vai se tomando até que se tenha um patamar. Quando eu chegar neste patamar, eu passo a considerar conter um bairro, uma cidade”. E qual seria esse patamar? Quantas mortes? Algumas centenas? Não sabemos. Mas ele disse que essa definição precisa ser feita “de maneira organizada”, alinhavada pelo governo federal, “para que todos saibam: quando o número de casos chegar aqui, vamos fazer isso; quando chegar aqui, vamos fazer aquilo”.

Se poucos dias atrás o ministro parecia preocupado com o colapso do sistema de saúde em abril, ontem ele preferiu olhar para mais adiante. “Sabemos que no final essa contaminação vai chegar num ponto de equilíbrio e vai passar”, afirmou. E tirou do governo federal a culpa por qualquer má condução da pandemia. Nosso resultado, argumentou, “não será culpa de a, de b ou de c, será a nossa história”. Pois é. E continuou: “A gente vai ter que sair disso sem vencedor, sem perdedor, sem ataque, sem apontar dedo para a, b ou c. Vai ter que sair disso e, depois que sair, depois de enfrentar essa situação, aí ter um grande debate sobre como se preparar, sobre como conduzir melhor os destinos desse país”.

Enquanto o “ponto de equilíbrio” não chega, Mandetta aproveitou para contar ao público como vem se prevenindo: toma chá, não anda descalço, não bebe gelado e não pega golpe de ar. “Isso é o que a gente sabe que funciona porque é o que a gente aprendeu com os nossos pais numa época que tinha gripe e não existia remédio”. Ah, se o mundo soubesse que é tão simples… 

Apesar do recuo de Mandetta, a Comissão Externa da Câmara que analisa ações preventivas durante a epidemia aprovou uma moção de apoio a ele. Diz que as recomendações do Ministério da Saúde devem se aplicar a todos, inclusive ao presidente. Mas se a Paste se dobra a Bolsonaro, não faz muito sentido.

Uma Saída

Se o rebuliço após as falas de Bolsonaro não levaram Mandetta para fora do Ministério, ao menos um diretor da Pasta saiu. Segundo o Estadão, o médico Júlio Croda, que ocupava o cargo de diretor do Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis, vai deixar a função por conta de divergências internas. Há alguns dias, em coletiva, ele afirmou que o coronavírus está se comportado aqui de forma semelhante ao que ocorre na Itália.


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