26/04/2024 - Edição 540

Poder

Bolsonaro apostou seu mandato que o coronavírus será menos letal no Brasil

Publicado em 27/03/2020 12:00 -

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Há varias razões para o pronunciamento irresponsável que Jair Bolsonaro proferiu, em cadeia nacional de rádio e TV, na noite do último dia 24. Todas apontam que ele, mesmo em uma mortal pandemia global, pensa apenas em sua sobrevivência política. Com o discurso, o presidente apostou o seu mandato que o coronavírus será menos letal no Brasil. O povo? Que morra.

Bolsonaro menosprezou a gravidade da doença, chamando-a arrogantemente de "gripezinha" e "resfriadinho". Culpou a imprensa de "espalhar a sensação de pavor", apesar de ser graças a ela que a população está sendo alertada sobre os riscos e formas de prevenção. Atacou governadores que estão organizando ações de contenção ao vírus, criticando o fechamento de escolas e do comércio. Conclamou os cidadãos a "voltar à normalidade", saindo do isolamento social – forma de retardar a propagação do coronavírus.

O discurso não soou como aquele esperado do líder de uma democracia. Parecia o de alguém que – incapaz de sentir empatia por seu semelhante – dedica-se a atacar pessoas e instituições que tentam salvar vidas. Por isso, após esta noite, Bolsonaro se torna corresponsável pelas mortes que ocorrerem devido ao coronavírus.

Mas há também uma lógica bizarra nesse processo, que transforma a vida de milhares de pessoas em peças de jogo político.

O presidente atiçou a sua legião de fãs, que instantaneamente, reforçou a defesa violenta de seu líder nas redes sociais. Como Bolsonaro está isolado, acredita que um grupo que perfaz entre 12% e 15% da população, segundo pesquisas de opinião, e que saltaria do penhasco se ele ordenasse, sairá às ruas e pegará em armas para defendê-lo.

Também alinhou-se ao discurso do naco insensível e egoísta do empresariado, que acredita que a morte de milhares de brasileiros é um preço pequeno a pagar diante da possibilidade de recessão como podem ser vistas pelas declarações de personagens da publicidade, do comércio, da gastronomia. Naco que vem lhe dando respaldo, bancando seus disparos de WhatsApp e, em troca, vê sua pauta sendo defendida.

Ao mesmo tempo, Bolsonaro usou o pronunciamento para jogar no colo dos governadores João Doria, de São Paulo, e Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, a responsabilidade pela perda de empregos que ocorrerá com as necessárias medidas de isolamento social.

Apesar de ser notório, desde janeiro, que a pandemia chegaria aqui e provocaria o caos, o ministro da Economia, Paulo Guedes, não preparou um plano de contingência. Um simulacro disso vem sendo divulgado agora, a conta-gotas, com liberação insuficiente de recursos para proteger trabalhadores informais e desempregados e a ausência de vontade de bancar os salários dos que contam com carteira assinada e ficarão parados. Em outras palavras: era para milhões estarem recebendo ajuda do governo federal, neste momento, em que começa a quarentena em grandes cidades. Era.

Restou a Bolsonaro, que não preparou o país para o que viria e que sofrerá as consequências de uma profunda recessão e de um salto no já alto desemprego, apostar tudo no discurso de que o "coronavírus" vai ser uma marolinha por aqui e que os danos à economia serão causados exatamente pelas ações de governadores e da imprensa.

Se o vírus for menos letal, ele cantará vitória sozinho. Mas o mais irônico é que se as ações tomadas por políticos, empresários e a sociedade civil preocupados com o coronavírus derem certo e conseguirmos conter a virulência da doença, Bolsonaro também buscará capitalizar isso como vitória de sua narrativa, de que tudo era uma "fantasia".

Na hipótese provável – e triste – de termos um número considerável de óbitos, ele tem o mandato cancelado. Se não formalmente, ao menos na prática.

Em qualquer dos cenários traçados por Bolsonaro, contudo, é o povo, principalmente o mais pobre, que vai perder. Quer dizer, morrer.

Ele, sinceramente, não se importa.

O discurso do presidente serviu também para lançar mais uma cortina de fumaça no rastro de incompetência e de enganação que ele e parte de sua equipe deixaram ao longo desta crise – com nobres exceções, como o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. A última incompetência foi a divulgação de uma Medida Provisória que permitia a suspensão de salários dos trabalhadores por quatro meses. E a principal acusação de enganação é o caso de seus testes para coronavírus. Deram negativo, segundo ele – que se nega a mostrá-los mesmo após 23 membros de sua comitiva aos Estados Unidos terem testado positivo. Sim o presidente pode ter sido um dos vetores da doença no Distrito Federal.

Bolsonaro, enfraquecido, sabe que a abertura de um processo de impeachment ou de afastamento por insanidade pode ajuda-lo a reunir apoio através de um longo processo de vitimização. Acredita ser possível copiar Donald Trump, seu ídolo. Também sabe que as lideranças no Congresso Nacional tem evitado levar adiante essa saída exatamente por conta dessa possibilidade. E, colocando à prova a paciência ou a covardia das instituições, vai se aproveitando da posição de franco-atirador.

O discurso de hoje, ao som de um panelaço ensurdecedor, mostra que não temos mais presidente da República, mas um parasita institucional. A questão é que esse parasita montou trincheiras no Palácio do Planalto e promete resistir usando as armas que forem necessárias, apostando alto com a saúde e a dignidade da população.

Quem manda sou eu…

Desde que começaram as crises na saúde pública, na economia e na política trazidas pela pandemia de coronavírus, o presidente tem, repetidas vezes, reafirmado que é ele quem manda. As constantes declarações são um indício de que nem ele tem tanta certeza disso. "O presidente sou eu, pô. O presidente sou eu. Os ministros seguem as minhas determinações", afirmou Bolsonaro, na quinta (26), em frente ao Palácio do Alvorada.

Ele respondia a um questionamento sobre a declaração de seu vice, general Hamilton Mourão, de que o governo continuava com posição única, defendendo o "isolamento e distanciamento social" para combater a infecção. Bolsonaro, no já antológico pronunciamento-tragédia de terça (24), defendeu a reabertura das escolas e do comércio e a quarentena apenas para idosos. "Pode ser que ele tenha se expressado de uma forma, digamos assim, que não foi a melhor", afirmou Mourão.

No "Baile da Máscara Cirúrgica", coletiva à imprensa, realizada no dia 18 de março, para tentar convencer a população que o presidente estava fazendo algo de útil nesta crise, Bolsonaro – depois de produzir um tutorial involuntário de como não usar uma máscara – tentou capitalizar no trabalho alheio.

Claramente ressentido pelo fato da mídia elogiar o trabalho do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e não o dele, afirmou: "se o time está ganhando, vamos fazer Justiça, vamos elogiar o seu técnico – e o seu técnico chama-se Jair Bolsonaro". Mandetta, por via das dúvidas, disse que "o presidente é o grande timoneiro desse barco".

Essa necessidade de autoafirmação em público não é de agora, mas se repete sempre que se sente ameaçado por algum subordinado.

Por exemplo, nos atritos entre ele e o ministro da Justiça, Sergio Moro, por conta das trocas no comando da Polícia Federal, ele afirmou, no dia 18 de agosto do ano passado: "quem manda sou eu, vou deixar bem claro". A declaração demonstra uma insegurança inusitada para um presidente da República. "Eu tenho poder de veto, ou vou ser um presidente banana agora?"

Ninguém o havia acusado de ser um presidente banana por conta disso, mas ele trouxe a figura à tona, mostrando que teme tal comparação.

A impressão é que ele acredita que precisa justificar o tempo todo o lugar que ocupa, talvez porque não se veja como alguém qualificado o bastante para a posição. Acha que foi indicado por Deus, certamente, mas isso é outra história que não tem a ver com competência técnica ou política. Lá no fundo, talvez acredite que, mais cedo ou mais tarde, alguém vai trata-lo como um impostor.

Afinal, como diria Baden Powell e Vinícius de Moraes, "o homem que diz sou não é".

Uma "gripezinha"

Bolsonaro gosta de bater de frente. Essa é a sua natureza, e quem achava que a Presidência da República traria um pouco de sensatez e leveza no trato ao ex-militar se enganou. Isso voltou a ficar evidente em sua fala agressiva de terça-feira à noite e no acesso de fúria direcionado ao governador de São Paulo, João Doria.

Em vez de aproveitar a crise para se apresentar como estadista, Bolsonaro se deixa levar por escaramuças egocêntricas, das quais ele só pode sair perdedor.

Claro que se pode ter opiniões diferentes sobre quanto tempo o isolamento social por causa da epidemia de coronavírus deve durar. Essa questão é debatida em todo o mundo, o que é perfeitamente compreensível. Pois, em todo o mundo, a paralisação da atividade econômica vai lançar as economias numa crise, possivelmente numa recessão.

O Brasil não pode se permitir isso, diz Bolsonaro, e também empresários ligados a ele deram declarações semelhantes. E este é, de fato, um ponto que também deve ser considerado.

Decisivo, porém, é como se abre essa discussão. No caso de Bolsonaro, isso soa tão assustador como as declarações de um de seus apoiadores, o empresário do setor de gastronomia Junior Durski, para quem o Brasil não pode parar por causa de 5 mil ou 7 mil mortes.

Já Bolsonaro falou de uma "gripezinha", o que, mais uma vez, mostra o grau de empatia de que ele dispõe: zero. Pior ainda, parece não lhe fazer diferença alguma se ele ofende outras pessoas, como os parentes das mais de 50 vítimas que o novo coronavírus já deixou no Brasil.

Mas também na atual situação Bolsonaro é fiel a si mesmo. A diferença é que quando ele elogiou o torturador da ditadura, o coronel Ustra, poucos se incomodaram – a ditadura, afinal, já passou faz tempo. Quando ele atacou os indígenas brasileiros, isso também não incomodou quase ninguém – os índios, afinal, moram bem longe. Quilombolas ele também pode ironizar – afinal, quantas pessoas conhecem um quilombola? No caso do coronavírus, porém, tudo muda: ninguém quer correr o risco de infectar os próprios pais, que poderiam ter uma morte lenta e cheia de sofrimento.

Bolsonaro não entendeu isso. Na sua limitada visão de mundo militar, vítimas são parte do jogo, e o que interessa é o todo. Além disso, ele espera que todas as autoridades o obedeçam cegamente. A suposta carta branca aos seus ministros é só fachada. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, precisa defender as atitudes irresponsáveis de Bolsonaro – como as selfies com manifestantes em 15 de março ou a exigência de acabar com o isolamento social – mesmo sabendo que tudo isso está errado.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, é outro que se meteu numa situação desconfortável. Em vez de reduzir o endividamento do Estado e diminuir a máquina estatal por meio de privatizações e da reforma administrativa, como ele queria, precisa agora fazer novas dívidas de centenas de milhões de reais e aumentar o papel do Estado na economia.

A reforma trabalhista iniciada no governo do presidente Michel Temer também terá que ser reavaliada em breve, ao que tudo indica. O Brasil tem mais de 40 milhões de pessoas na informalidade. São pessoas que estão desprotegidas diante de uma crise como a atual. Agora é necessário admitir que tudo isso foi irresponsável. Será que o neoliberal Guedes vai virar à força um social-democrata? Seria melhor para ele. Mas o provável é que ele se vá antes disso.

É impossível saber de quanto tempo o Brasil vai precisar para superar as consequências econômicas da crise do coronavírus. O dinheiro economizado com a reforma da Previdência logo vai ser gasto nos novos pacotes de ajuda. Com suas duras críticas ao lockdown, Bolsonaro já está tentando se vacinar contra a próxima crise econômica. Numa entrevista na televisão, ele já disse que os milhões de desempregados não serão culpa dele. Mas, se ele não é o responsável, o que está fazendo na cadeira de presidente?

O declínio da sua autoridade, nos últimos dias, é assustador. Aliados se afastam, e ele perde apoio também no Congresso. Bolsonaro corre o risco de não ser mais levado a sério. Ele conseguirá se recuperar dessa situação? Ou seus rivais moderados, como os governadores João Doria e Wilson Witzel, vão ficar com os eleitores da direita?

Até parece que o novo coronavírus escolheu a dedo uma vítima especial: Jair Messias Bolsonaro. Quem achava que isso não ia dar em mais do que uma "gripezinha" ainda vai se surpreender.

Em queda livre

É o que mostram recentes pesquisas sobre o comportamento do presidente diante da crise. Depois do pronunciamento do dia 24, o apoio ao presidente nas redes sociais caiu fortemente e a rejeição disparou. Um levantamento feito pela plataforma de monitoramento digital Torabit identificou que, entre as 20h30, horário em que o pronunciamento do presidente iniciou, e as 11h do dia seguinte, 81% das menções a Bolsonaro foram negativas, enquanto apenas 14,2% foram positivas e 4,7% neutras.  

Entre os integrantes do Congresso, 22 senadores publicaram sobre o presidente em 85 posts. 91,8% dos posts fizeram menções desfavoráveis a Bolsonaro, 2,4% foram neutros e 5,8% positivos. Os senadores que mais publicaram nas últimas horas sobre o assunto foram Humberto Costa (PT-PE) e Randolfe Rodrigues (Rede-AP), seguidos por Rogério Carvalho (PT-SE) e o filho do presidente Flávio Bolsonaro (Sem partido-RJ). E entre os deputados federais, 132 se manifestaram. 80,2% de suas publicações tinham menções negativas a Bolsonaro, 14,6% foram neutras e apenas 5,2% positivas. Das publicações de deputados, a maioria foi de representantes de partidos de oposição ao presidente.

A avaliação do presidente é considerada ruim ou péssima por praticamente metade dos paulistanos. Segundo pesquisa Ibope resultante de parceria entre o instituto de pesquisas, o Estado e a Associação Comercial de São Paulo (ACSP), 40% dos moradores da capital paulista consideram a gestão de Bolsonaro péssima e apenas 8% a consideram ruim. No universo dos eleitores insatisfeitos, oito em cada dez dão ao governo a pior avaliação possível. 

São Paulo concentra parte significativa dos eleitores de Bolsonaro e o seu desgaste na cidade pode ser um indicador do que acontece em outros redutos. No primeiro turno da disputa presidencial de 2018, Bolsonaro teve 2,8 milhões de votos na capital paulista, quase 1,5 milhão a mais do que o segundo colocado, Fernando Haddad (PT). Em porcentuais, o resultado foi 45% a 20%. No segundo turno, Bolsonaro venceu com o voto de seis em cada dez paulistanos.

O Ibope ouviu 1.001 eleitores de 16 anos ou mais entre os dias 17 e 19 de março. O nível de confiança utilizado é de 95% – ou seja, há 95% de chances de os resultados ficarem dentro da margem de erro, que é de três pontos porcentuais para mais ou para menos. O levantamento foi contratado pela Associação Comercial de São Paulo.

Pesquisa Datafolha publicada no dia 23 mostrou que a avaliação da postura do presidente Jair Bolsonaro sobre a crise do novo coronavírus entre os brasileiros é pior que a de governadores e a do Ministério da Saúde. Suas ações só são aprovadas por 35% da população, enquanto 54% classificam o trabalho dos governadores como “bom ou ótimo” e 55% aprovam o trabalho do Ministério da Saúde, pasta de Luiz Henrique Mandetta. A pesquisa ouviu 1.558 pessoas de 18 a 20 de março e foi feita por telefone para evitar contato com o público, com margem de erro de três pontos para mais ou para menos.

O Instituto Paraná Pesquisa ouviu, por telefone, 2.020 entrevistados em todos os estados do país. A todos eles, fez a seguinte pergunta: “O presidente Jair Bolsonaro está dando pouca importância, muita importância ou a importância que deveria para ao problema do coronavírus?”. Para 51% dos entrevistados, Bolsonaro está dando pouca importância ao coronavírus. Não é pouca coisa. Quando metade da população forma um pensamento único de que o mandatário da República faz pouco caso de um vírus que provoca mortes diárias na casa dos milhares – e que tem força para levar bilhões a uma quarentena histórica –, algo não vai bem para o Planalto.

A pesquisa ainda mostra que só 31% consideram que Bolsonaro dedica “a importância que deveria” à crise e 11% avaliam que o presidente dá “muita importância” ao vírus.

O Paraná Pesquisas também questionou os entrevistados sobre o papel de líder do presidente na frente de batalha. “Bolsonaro está conduzindo a crise do coronavírus de maneira adequada ou está sendo negligente”, perguntou o instituto.

Para 49,9% dos entrevistados, Bolsonaro é negligente como líder da estratégia brasileira de combate à pandemia. Nessa questão, 42% consideram que o presidente conduz de maneira adequada o trabalho. Essa parcela final deve-se ao trabalho de Luiz Henrique Mandetta, o ministro da Saúde que passou a ser sabotado por Bolsonaro por causa do protagonismo na condução da crise.


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