23/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Gestão da crise do coronavírus por Bolsonaro é ‘insana’, diz ex-ministro do STJ

Publicado em 27/03/2020 12:00 -

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“Insanidade.” Essa foi a palavra mais usada pelo ex-ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) Gilson Dipp ao comentar a atuação do presidente Jair Bolsonaro frente à crise do coronavírus

“A conduta do presidente da República em uma crise de pandemia, talvez a maior do último século, é insana. Não tem outra palavra. Absolutamente insana”, afirmou o magistrado, que atuou por 16 anos no tribunal. 

Enquanto ministro, Dipp desempenhou várias funções, como de corregedor nacional da Justiça, quando colaborou com a OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) para a implementar medidas de combate à corrupção e lavagem de dinheiro, como a especialização de varas na Justiça Federal.

Primeiro coordenador da Comissão da Verdade, cujos trabalhos são desqualificados por Bolsonaro, Gilson Dipp afirmou que “todos os atos [do presidente] caminham no sentido de um autoritarismo” e que só não se chega a mais porque, “por enquanto, há limites para a insanidade do presidente”. “Ele não tem o menor compromisso de conviver com os poderes Legislativo e Judiciário”, acrescentou o ministro. 

Embora tenha afirmado não ter convocado nenhuma manifestação, Jair Bolsonaro incitou, em 7 de março, seus apoiadores a compareceram em um protesto marcado para o último dia 15 de março no qual, entre as bandeiras, havia pedidos de fechamento do Congresso e do STF. 

Em uma breve conversa por telefone com o HuffPost nesta quinta-feira (25), Dipp fez avaliações pessimistas sobre a gestão e, especialmente, sobre o chefe do Executivo. “Não vejo absolutamente condições de uma pessoa dessa qualificação intelectual, de conhecimento, de postura, de ética e transparência estar no posto máximo do governo”, enfatizou. 

O magistrado, contudo, não defende um processo de impeachment por quebra de decoro. “Motivos há. Mas estamos numa crise, uma pandemia. Criar mais uma crise em meio a uma pandemia seria evidentemente uma medida desnecessária e incabível”, justificou. 

Veja os principais trechos da conversa: 

 

Qual a avaliação do senhor sobre a condução do País pelo presidente Jair Bolsonaro em meio à crise do coronavírus? 

A conduta do presidente, eu não preciso repetir o que milhares de pessoas, cientistas políticos, médicos [dizem]… A conduta do presidente da República em uma crise de pandemia, talvez a maior do último século, é insana. Não tem outra palavra. Absolutamente insana. Não vejo absolutamente condições de uma pessoa dessa qualificação intelectual, de conhecimento, de postura, de ética e transparência estar no posto máximo do governo. Alguma coisa deve ter de bom, porque todos os ministérios estão ao lado dele, inclusive os ministérios militares de tanta credibilidade nos dias de hoje. 

Acho que ele não tem a menor condição e nem sei se hoje ele decide por si próprio. Talvez sim, algumas medidas destas disparatadas, sejam dele. Mas ele por si só não tem condição nenhuma… E não sou eu que estou dizendo. Estou apenas ratificando o que milhares de pessoas, desde cientistas, políticos, associações, mundo jurídico têm dito. 

Diante dessa análise, o senhor acha que existe algum caminho para o afastamento do presidente — o que tem sido reverberado por algumas alas- da oposição —, ou isso não deve ser discutido? 

O afastamento conhecido é o impeachment. Motivos há. Mas estamos numa crise, uma pandemia. O Congresso está trabalhando restritivamente. Criar mais uma crise em meio a uma pandemia seria evidentemente uma medida desnecessária e incabível. Agora, um afastamento que se dê por consenso de inúmeras pessoas dentro do próprio Executivo seria possível. Temporário que seja. Para que tenha alguém que, em um momento desse, não tenha tanto desgaste perante a população como temos visto. 

O senhor fala em desgaste. O que a gente acompanha por pesquisas e avaliações internas do próprio governo é de fato uma queda de popularidade do presidente e da influência dele, sobretudo nas redes sociais, o meio que o ajudou a se eleger. Mas apesar do discurso dele no pronunciamento de terça (25), contrário ao que o mundo vem adotando no caso da pandemia, muita gente o apoia nesse sentido…

A eleição dele se deu em função de tudo o que acontecia antes: corrupção, PT, Lula. A maioria ali se formou como apreciadores do presidente já como candidato. Claro que isso já vem arrefecendo. Mas vem uma onda ultradireitista em todo o mundo. E está dando apoio a certos governantes que agem de maneira semelhante a ele. Esse grupo de apoiadores, para mim, hoje se restringe a uma camada de seguidores fanáticos muito restrita. Não é o que muita gente pensa que tem e não é o que se evidencia pelas redes sociais. A gente sabe que em rede social se dissemina [informação] de uma forma absolutamente insegura. Tem sim um segmento de fanatismo que fará o que o presidente quiser, mas eu não sei se chega a 10% dos que votaram nele. E ainda tem os outros tantos que não votaram e os que nem apareceram para votar. 

Sobre a atuação dos governadores, o presidente e eles têm travado embates nos últimos dias. Parte dos gestores estaduais também vem adotando um tom político sobre a questão do coronavírus. Como o senhor tem visto a atuação deles? 

Não há nada quando se fala em cargos do Executivo dissociável do que se possa falar em política no sentido geral. Todos estão fazendo política. Mas fazer política é diferente de fazer politicagem. 

Mas me parece que governadores estão indo numa direção coerente e o único com passo errado é o presidente. Então não há nenhum mérito nos governadores estarem marchando com passo certo. Não são heróis. Estão agindo dentro dos moldes. Estão tendo destaque, exatamente porque o chefe do Executivo federal é o único que está dando passo errado, porque o chefe do Executivo apresenta sinais de insanidade. Nada especial. 

O que o senhor acha da participação da família Bolsonaro no governo? O Carlos, por exemplo, esteve em três teleconferências com governadores e o Flávio, em uma delas nesta semana. 

É completamente incompreensível. Nenhum exerce qualquer cargo dentro do Executivo federal. A “filhocracia” é uma característica do governo e, antes ainda, durante as campanhas. 

Colocar pessoas inadequadas, que não dizem respeito a qualquer das atividades [do governo] é mais um abuso intolerável por parte do presidente e uma omissão absoluta daqueles que estão ao seu lado. 

O senhor vê que essa “filhocracia” possa abalar a democracia no País?

Todos os atos evidentemente caminham no sentido de um autoritarismo que só não podem chegar a mais porque, por enquanto, há limites para a insanidade do presidente. Não tenho a menor dúvida. Isso, inclusive, já está demonstrado em apoios nas redes sociais, em manifestações presidenciais. O presidente é absolutamente indócil… Ele não tem o menor compromisso de conviver com os poderes Legislativo e Judiciário. Não tem possibilidade de conviver, e aí não é por política, com ministros do seu governo que obtenham destaque. Veja o caso do Moro, Mandetta. Não que eles estivessem fazendo grandes coisas. Talvez o Mandetta tivesse, no início, se colocado bem. Mas o presidente é inacessível a qualquer diálogo, inclusive democrático. Ou acha que o presidente tem prazer em conviver com Legislativo ou com o Judiciário? Evidentemente que não. É visível pelos atos e pela interpretação que todos fazem. 

E como combater esse possível autoritarismo? 

Primeiro que o Judiciário e o Congresso têm que estar absolutamente, mais do que nunca, alertas para coibir qualquer ato de força. É preciso, sim, e sou até, digamos, suspeito de falar que as Forças Armadas, às quais o presidente tanto se dedica e coloca no seu governo, estejam alerta e acho que estão junto com Supremo e o Congresso Nacional. O que não pode é haver qualquer método de enfraquecimento dessas posições. Essa é a maneira que se tem de coibir, ainda que precariamente, as atitudes do presidente. É uma pessoa só com 3 filhos. Os outros são só vassalos. Um presidente, 3 filhos, e os vassalos. O resto, ninguém está fazendo por prazer ou convicções aparentemente.  

Ministro, o senhor que já esteve no centro do poder, o que acha que se pode dizer para a população neste momento de crise, de medo e insegurança?  

Não há nada de novo, em termos de recomendação, até porque todo mundo já emitiu seu alerta. Acho que tem que haver um momento de tranquilidade, de resposta às autoridades, tanto no âmbito judiciário, legislativo e executivo que sejam coerentes e isentas e que visem ao bem-estar da população. Sem qualquer discurso de índole política, partidária e ideológica como está havendo. Principalmente por ele [Bolsonaro], não só por ele, mas principalmente por ele. Se cada um fizer o que está dentro de suas atribuições com diálogo, é essencial. Tem que transmitir à população a sensação de que as coisas são seríssimas, mas exigem responsabilidade e vão passar.  


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