25/04/2024 - Edição 540

Campo Grande

Pandemia pode levar fome a quem depende da merenda escolar: Câmara aprovou envio de merenda a alunos sem aulas

Publicado em 25/03/2020 12:00 -

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A Câmara dos Deputados aprovou, no último dia 25, uma proposta que estabelece a distribuição de alimentos da merenda escolar para famílias de estudantes matriculados na rede pública que foram dispensados das aulas por causa da pandemia do coronavírus Sars-Cov-2, causador da doença respiratória covid-19. 

O texto, aprovado em sessão virtual, foi encaminhado para apreciação no Senado. Apenas o presidente da Casa, Rodrigo Maia, e os líderes partidários estavam presentes. 

A comida da merenda seria enviada diretamente aos pais dos alunos que tiveram as aulas suspensas como medida para conter o avanço da covid-19 no Brasil. O projeto contempla esse envio em situações de emergência ou calamidade pública, como no caso do coronavírus. 

A distribuição deverá ser acompanhada pelo Conselho de Administração Escolar (CAE), e as regras para o envio deverão ser determinadas pelos secretários locais de educação.

O texto aprovado prevê que o recurso do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) continuará a ser repassado pela União a estados e municípios para a compra de merenda escolar, que beneficia principalmente as crianças mais pobres das escolas públicas. O texto aprovado incluiu outra proposta com o mesmo conteúdo, da deputada Dorinha (DEM-TO). 

Para a parlamentar, a medida é necessária e extraordinária após a suspensão das aulas, o que tem impedido o acesso dos alunos mais pobres à merenda escolar. A deputada ressaltou ainda que, em muitos casos, a alimentação na escola é essencial para subsistência dessas crianças.

Também em votação simbólica, os deputados aprovaram uma proposta que permite o uso de telemedicina em caráter emergencial, igualmente enquanto durar a crise provocada pela pandemia de coronavírus. A atividade online pode ser praticada no país após liberação pelo Conselho Federal de Medicina. 

Preocupação

Em determinada noite de 2019, faltou energia elétrica em uma escola pública de Campinas, no interior de São Paulo. A diretora determinou que, se a luz não voltasse em meia hora, os alunos do período podiam ser dispensados. No entanto, passado o tempo, os estudantes se recusaram a ir embora. "Eles aguardavam a merenda, que estava quase pronta — a cozinheira esperava o retorno da energia elétrica para preparar o arroz", conta o professor Eduardo Scrich, há sete anos na rede pública de ensino. "Mais da metade dos alunos decidiu permanecer na escola, no escuro, para aguardar a merenda. Enquanto a energia não retornava, mobilizaram-se para discutir se a refeição deveria ser oferecida incompleta, sem arroz, já que carne e salada estavam prontas."

Scrich conta que eles levantaram a possibilidade de "fazer uma vaquinha para comprar pão na padaria ao lado, mas a maioria não tinha dinheiro". "Mais de uma hora depois, a energia voltou, a cozinheira finalizou a janta e serviu a alimentação", recorda-se. "Em qualquer outra situação teriam todos ido embora para casa, sem exceção. No entanto, permaneceram na escola porque, de outro modo, certamente dormiriam com fome."

O episódio ilustra a importância que a merenda escolar tem na vida de muitos estudantes brasileiros. Em meio à suspensão do calendário escolar para combater a pandemia de covid-19, muitos profissionais da educação se perguntam como fica a alimentação daqueles que dependem da comida da escola.

De acordo com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia do Ministério da Educação (MEC) responsável por repassar os recursos para alimentação escolar, a merenda beneficia 41 milhões de estudantes, da creche até a educação de jovens e adultos — o orçamento anual é de R$ 4 bilhões.

Milhões de alunos na extrema pobreza

É difícil saber quantos desses alunos dependem da merenda como principal refeição do dia. Há indicativos, entretanto, de quantos vivem em famílias mais pobres. Dados do ano passado mostram que cerca de 14 milhões de alunos são beneficiados pelo programa Bolsa Família. De acordo com levantamento da Fundação Abrinq, o Brasil tem 9 milhões de crianças e adolescentes em situação de extrema pobreza.

Há 24 anos na rede pública de São Paulo, a professora Anedi Costa de Oliveira observa que cerca de 15% dos alunos "só comem na escola". "Acompanho meus alunos nas refeições. Há os que repetem três vezes o almoço", afirma. Ela está preocupada com a demora das autoridades em encontrar uma solução em meio à crise do novo coronavírus.

"Muitos falam que a covid-19 veio para todos, iguala pobre e ricos. Não, definitivamente não. Alunos de colégios chiques estão bem guardados em casa, com família, com alimentos, brinquedos e trabalhos em educação à distância sendo feitos em seus computadores", observa. "Ser pobre e ter pela frente uma pandemia deixa tudo é mais difícil. Nossas periferias estão à espera de um milagre."

Pediatra e consultor da Fundação Abrinq, Yechiel Moises Chencinski disse à DW Brasil que há uma preocupação com a manutenção da alimentação das crianças nestes tempos sem aulas. "Este é um momento de especial cuidado, pois a alimentação infantil é fundamental para o desenvolvimento adequado das crianças", enfatiza. "Toda a rotina de nutrientes e preparo deve ser mantida."

Ministério da Educação busca solução

Questionado pela reportagem, o FNDE afirma que "mesmo com a suspensão das aulas na maior parte do país, a alimentação escolar continuará a ser disponibilizada aos estudantes". Mas ainda não há um consenso sobre como será a logística disso. "Neste momento, o FNDE e o Ministério da Educação, no âmbito do Comitê Operativo de Emergência, discutem a melhor alternativa para que isso ocorra", informa a instituição, em nota.

A Abrinq está monitorando a situação. "Alguns municípios, como Recife, já se anteciparam e, como medida preventiva para conter a disseminação do novo coronavírus, iniciaram a distribuição de kits alimentares para os pais", aponta Chencinski. "Em Brasília, os alunos da rede pública de educação, cadastrados e beneficiados no Bolsa Família, no período de suspensão das aulas continuarão tendo direito à alimentação escolar por meio de decreto. O recurso será disponibilizado por meio do Cartão Material Escolar. O MEC continua em discussão, dentro do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, sobre a distribuição de merenda escolar para alunos em situação de vulnerabilidade social que estão com aulas suspensas."

O Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) informou, por meio de sua assessoria, que os secretários defendem que os recursos da merenda sejam repassados às famílias dos estudantes que mais precisam por meio do cartão do Bolsa Família. "Neste momento, se tornou inviável distribuir qualquer tipo de kit nas escolas, pois isso colocaria em risco pais, estudantes e servidores", aponta a assessoria.

Em Campo Grande

Com o marido afastado do trabalho devido a pandemia causada pelo Covid-19, a dona de casa Idalina Ribeiro da Silva já estava preocupada, pois não sabia como garantir a alimentação básica de seus quatro filhos. O alívio veio com a entrega dos kits merenda pela Prefeitura de Campo Grande, por meio da Secretaria Municipal de Educação, que começaram a ser distribuídos no último dia 23, aos alunos beneficiários do Programa Bolsa Família, que estudam na Rede Municipal de Ensino (Reme).

Acompanhada por três filhos que estudam na Escola Municipal Professora Ione Catarina Gianotti Igydio, no Jardim Noroeste, ela esteve na unidade, na manhã desta terça-feira (24), para buscar os quatro kits a que tem direito. Caso tivesse que comprar os sete itens que compõem o kit, a dona de casa afirmou que os R$ 300,00 pagos pelo Governo Federal não seriam suficientes para adquirir os produtos básicos do mês. “Achei muito bom esse kit e o mais importante é que se continuar sem aulas no próximo mês, vamos receber outro”, disse.

Também satisfeita estava Geni Martinez, que recebe R$ 80,00 de benefício por ter um filho cadastrado no Bolsa Família. Ela elogiou a iniciativa da gestão. “Ia gastar mais de 100 reais em compra de mercado e iria faltar dinheiro”, desabafou a dona de casa, que tem três filhos, mas apenas um se enquadra nas regras do Programa. “O feijão é o mais caro e é o que mais utilizamos. Foi uma ideia muito boa essa do prefeito porque vai ajudar muito a gente nesse momento”, frisou.

O afastamento do marido do trabalho devido a pandemia é motivo de preocupação também para a dona de casa Claudia Roseli dos Santos, que está com dificuldades para garantir a refeição básica para as onze pessoas da família. Mãe de Raiana, do 7º ano da Escola Municipal Ione Catarina, ela comemorou a entrega do kit. “Provavelmente iria gastar uns R$ 100,00 se fosse comprar. Foi uma atitude responsável da prefeitura em entregar esse kit, até porque os supermercados também estão fechando devido ao vírus”, pontuou.

Só na escola “Ione Catarina”, 512 kits serão entregues.

Referência

A decisão de entregar um total de 20 mil kits merenda aos alunos beneficiários do Programa Bolsa Família levou a Prefeitura de Campo Grande a se tornar referência nacional e exemplo de agilidade na tomada de decisões quanto a garantia da alimentação dos alunos em situação de vulnerabilidade social durante o período de suspensão de aulas na Rede Municipal de Ensino (Reme).

Um dos exemplos de estado que estão entrando em contato com a Semed é São Paulo, que por meio da Secretaria de Educação enviou um e-mail oficial solicitando informações sobre a entrega dos kits. A principal dúvida dos gestores do governo de João Dória, segundo o superintendente de Gestão Administrativa Financeira e de Convênios da Semed, Walter Pereira, é de como realizar o processo seguindo as diretrizes legais do MEC.

“Nós estamos orientando essas prefeituras para que utilizem seus recursos próprios, mas estamos em conversa com o FNDE para que possamos ter autorização para utilizar os recursos que ainda temos disponíveis e atender estas situações de vulnerabilidade social”, ressaltou Walter.

Além de pedir orientações técnicas sobre o processo de distribuição dos kits, o e-mail, assinado pela diretora do Centro de Supervisão do Departamento de Alimentação Escolar do Governo de São Paulo, Gleice Carvalho, também elogiou a iniciativa da gestão. “Gostaria de parabenizá-los pela atitude e agradecer pelo auxílio”, destacou a diretora no texto.

Cada kit contém um pacote de arroz de cinco quilos, um pacote de feijão de um quilo, um pacote de um quilo de leite em pó, um pacote de 400 gramas de biscoito água e sal, um pacote de macarrão de 500 gramas, uma lata de extrato de tomate e uma lata grande de sardinha. A entrega ocorre nas 98 escolas de Ensino Fundamental da Reme, de forma programada.

As aulas na Reme foram suspensas por 20 dias, podendo ser prorrogadas por igual período, conforme decreto municipal nº 14.189, de 15 de março de 2020, como forma de combate ao Coronavírus.


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