28/03/2024 - Edição 540

Entrevista

‘Sem democracia, sem ciência, sem educação, sem renda, sem políticas sociais e sem direitos, seguiremos muito doentes’

Publicado em 23/03/2020 12:00 -

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Em meio ao medo e à emergência de conceber saídas para a crise gerada pela pandemia de coronavírus, o Sistema Único de Saúde – SUS tem sido posto como a grande arma para enfrentar o caos. “O SUS é o eixo da resposta brasileira, é nossa única e grande esperança. Trata-se de um grande sistema com acesso universal e gratuito, além de capilaridade e extensão geográfica notáveis. A injeção de recursos que foi anunciada pode torná-lo mais apto a esta resposta pontual”, aponta Deisy Ventura, pesquisadora e professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo – USP. No entanto, ela destaca que não podemos esquecer que esse mesmo SUS, nos últimos anos, vem sofrendo baques contínuos. Os investimentos e ações pontuais de agora não resolverão os problemas estruturais. “Assim que terminar a emergência, é preciso retomar seu fortalecimento de maneira contínua e prioritária. Outras emergências virão, com cada vez maior frequência”, alerta.

Na entrevista a seguir, a pesquisadora detalha que é preciso que se tenha clareza do que compõe investimentos e ações concretas que podem garantir segurança em termos sanitários e de saúde. “Não deve haver teto de gastos para a saúde pública, que deve ser uma prioridade nacional”, dispara, em alusão a medidas provisórios no Brasil que restringem os investimentos públicos no setor. E acrescenta: “é preciso lembrar sempre que a saúde tem determinantes sociais poderosos. Sem democracia, sem ciência, sem educação, sem renda, sem políticas sociais e sem direitos, seguiremos muito doentes, em diversos sentidos”.

Deisy ainda analisa o surgimento e o avanço da Covid-19 no mundo, bem como a resposta à doença e as dificuldades até mesmo de países desenvolvidos. “Há países desenvolvidos com sistemas de saúde geradores de grandes iniquidades, como é o caso dos Estados Unidos, onde doenças podem jogar rapidamente milhares de pessoas na pobreza absoluta”, observa. “Quando a detecção de uma doença depende do pagamento de uma consulta ou teste, já se vê que não há segurança sanitária para ninguém”, conclui.

E se em países desenvolvidos é grande o impacto da Covid-19, a pesquisadora diz que, por ainda se saber pouco da doença, não se tem noção de como os países mais pobres podem sofrer. “O Regulamento Sanitário Internacional da OMS, vigente em 196 países, foi acionado. Sem ele seria bem pior”, diz. No entanto, reconhece que “as capacidades de implementação requeridas pelo Regulamento estão longe de ser efetivas em dezenas de países, simplesmente porque eles não possuem um sistema de saúde à altura, tanto em capacidade de notificação de eventos como de resposta, a maioria em razão da pobreza”.

Deisy Ventura é professora titular de Ética da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo – USP, onde é chefe do Departamento de Saúde Ambiental e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Global e Sustentabilidade. Também é professora do Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais da USP. Possui doutorado em Direito Internacional e mestrado em Direito Comunitário e Europeu pela Universidade de Paris 1, Panthéon-Sorbonne, graduação em Direito e mestrado em Integração Latino-americana pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Entre seus livros publicados, destacamos Saúde de migrantes e refugiados (Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2019) e Direito e saúde global – O caso da pandemia de gripe A (H1N1) (São Paulo: Outras Expressões/Dobra Editorial, 2013).

 

O que essa pandemia de coronavírus revela sobre o nosso tempo?

Quase tudo. O efeito devastador das políticas de austeridade sobre os sistemas de saúde mundo afora. A desvalorização dos profissionais de saúde e o descrédito da ciência, repentinamente convertidos em depositários de imensas esperanças sem o devido respaldo para tanto. O potencial de destruição de vidas causado pela ascensão ao poder de líderes messiânicos cujos interesses eleitorais primam sobre a proteção da saúde pública. A cabal consagração de uma forma de desenvolvimento econômico predatória, que favorece a emergência ou a reemergência de doenças pela invasão de habitats antes preservados; pela produção massiva de alimentos derivados de animais que são criados em condições degradantes e extremamente favoráveis ao desenvolvimento e mutação de patógenos etc. Os limites do multilateralismo, a exemplo do inconveniente da maior autoridade sanitária mundial, a Organização Mundial de Saúde – OMS, ter orçamento modesto e não desfrutar da importância política devida, o que a faz dependente de financiadores cujas prioridades nem sempre coincidem com as das populações atingidas. A lista não tem fim.

O coronavírus é um mal do mundo globalizado? Por quê?

Diz-se que a epidemia é o homem e que existe uma globalização antiga e contínua dos germes. A história das epidemias deveria ser mais difundida e valorizada, pois elas foram decisivas em incontáveis processos históricos, entre eles a conquista do Novo Mundo. Porém, com cerca de um bilhão e meio de viagens internacionais no ano de 2019, segundo dados da Organização Mundial do Turismo, a rapidez da propagação internacional das doenças foi acelerada de forma inédita. Mas não podemos jamais esquecer que a circulação de pessoas e de micróbios constitui a história do ser humano. Outros fatores complexos explicam que não sejamos hoje capazes de responder aos desafios da proteção da saúde da população, embora tenhamos avançado tanto em termos tecnológicos.

Como podemos compreender o surgimento e o avanço da doença no mundo e no Brasil?

Anda sabemos pouco sobre esta doença. O Regulamento Sanitário Internacional da OMS, vigente em 196 países, foi acionado. Sem ele seria bem pior, mas não é de se estranhar sua insuficiência para controlar a propagação internacional da doença. As capacidades de implementação requeridas pelo Regulamento estão longe de ser efetivas em dezenas de países, simplesmente porque eles não possuem um sistema de saúde à altura, tanto em capacidade de notificação de eventos como de resposta, a maioria em razão da pobreza, alguns em razão de características dos respectivos sistemas.

O coronavírus atingiu em cheio países desenvolvidos, onde há possibilidade de grandes investimentos em saúde e em pesquisas científicas. Que leitura a senhora faz dessa realidade?

Há países desenvolvidos com sistemas de saúde geradores de grandes iniquidades, como é o caso dos Estados Unidos, onde doenças podem jogar rapidamente milhares de pessoas na pobreza absoluta. Quando a detecção de uma doença depende do pagamento de uma consulta ou teste, já se vê que não há segurança sanitária para ninguém, sequer para os ricos cuja segregação social voluntária raramente consegue ser completa.

De modo geral, mesmo entre os países mais ricos, os investimentos em saúde pública foram diminuídos ou ao menos não cresceram da forma necessária depois da crise econômica de 2008. O Reino Unido é um exemplo de cortes orçamentários justificados pelas políticas de austeridade, além da privatização sorrateira do seu sistema de saúde, o NHS, grande referência internacional por ser público, assim como o brasileiro Sistema Único de Saúde – SUS.

O que se sabe, ou o que se projeta, sobre o impacto do coronavírus no terceiro mundo, em países muito pobres?

Depende da forma e do tempo de chegada do vírus, e de sua evolução. Difícil fazer um prognóstico positivo considerando que as desigualdades impactam fortemente a capacidade de resposta dos países e a ajuda internacional costuma ser lenta e limitada.

As informações que chegavam da China e atualmente chegam de países da Europa, especialmente a Itália, são impressionantes. O Brasil pode viver situações semelhantes? Por quê?

As cidades brasileiras mais atingidas adotaram medidas de saúde pública, inclusive restritivas de direitos, que podem atenuar a evolução do número de casos. Não sabemos o quanto essas medidas serão eficazes.

O Brasil é o país da América Latina com o maior número de casos. Como compreender esse dado?

O número absoluto de casos diz pouco. Lidar com um vírus cuja infecção pode ser assintomática também dificulta avaliações deste tipo, assim como o reconhecimento de que a notificação pode ter sido deficiente no início do surto. De qualquer maneira, sendo um país continental com capitais altamente conectadas com o mundo, como São Paulo e Rio de Janeiro, não é surpreendente que tenhamos um grande número de casos.

Quais devem ser os maiores impactos do coronavírus no Brasil?

Difícil responder. Ele chega em momento de grande dificuldade para a democracia brasileira e também para nossa economia. Encontra um grande sistema que deveria ser o orgulho de todos os brasileiros, referência internacional em numerosos programas de prevenção e atenção primária à saúde, além de ter alcançado excelência em diversos ramos de assistência. No entanto, é também um sistema que foi sucateado ao longo dos anos, gerando filas, disfunções, sofrimento e mortes evitáveis, representando o recurso último para a ampla maioria dos brasileiros. Também abriga profissionais mal remunerados, impotentes diante da escassez de meios materiais e de valorização social, assomados pela enorme demanda social e por críticas inclementes.

Qual é sua avaliação sobre as ações que vêm sendo tomadas pelas autoridades sanitárias e de saúde no Brasil?

No plano federal, creio que a maior fragilidade é a concorrência entre o Ministério da Saúde e os interesses eleitorais dos demais órgãos de governo. Extremistas fanáticos tendem a ser nefastos para a saúde pública e não se sabe o quanto setores racionais do governo serão capazes de controlá-los. Não é demais destacar algo que parece banalizado, mas é profundamente chocante: membros do próprio governo que foram expostos ao vírus não respeitam as recomendações da autoridade sanitária inclusive em eventos públicos.

Felizmente há governos municipais e estaduais que estão dando primazia à pasta da saúde na elaboração e na implementação da resposta. No entanto, o descrédito das autoridades sanitárias pode gerar uma crise sem precedentes no campo da ordem pública. A revolta da vacina, do início do século XX, não deveria ser esquecida.

Como compreender o papel do SUS nas ações de tratamento e contenção da doença?

O SUS é o eixo da resposta brasileira, é nossa única e grande esperança. Trata-se de um grande sistema com acesso universal e gratuito, além de capilaridade e extensão geográfica notáveis. A injeção de recursos que foi anunciada pode torná-lo mais apto a esta resposta pontual, mas não resolverão problemas estruturais evidentes. Assim que terminar a emergência, é preciso retomar seu fortalecimento de maneira contínua e prioritária. Outras emergências virão, com cada vez maior frequência.

Ainda antes do coronavírus, o Brasil sofreu com dengue, zika, chikungunya e se viu às voltas com doenças que pareciam erradicadas, como o sarampo. Em que medida o reaparecimento dessas doenças revela erros na condução de políticas públicas em saúde?

Um dos maiores erros tem sido o enfraquecimento dos programas de prevenção, por desvalorização de seu escopo e cortes de financiamento. A estratégia de saúde da família, os agentes comunitários de saúde e de endemias, os programas de imunização, os equipamentos de saúde em regiões periféricas etc. foram desprestigiados nos últimos anos, e estão ameaçados em diversos lugares do país. O programa Mais Médicos transformou-se em poderosa plataforma eleitoral sem que suas causas e efeitos fossem discutidos com a merecida seriedade.

A senhora acredita que a experiência dessa pandemia de coronavírus possa alterar o cenário de investimento em saúde pública no Brasil?

Não deve haver teto de gastos para a saúde pública, que deve ser uma prioridade nacional. Mas é preciso lembrar sempre que a saúde tem determinantes sociais poderosos. Sem democracia, sem ciência, sem educação, sem renda, sem políticas sociais e sem direitos, seguiremos muito doentes, em diversos sentidos.


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