23/04/2024 - Edição 540

Poder

Mandetta vive delicado equilíbrio entre discurso técnico e dizer o que agrada Bolsonaro

Publicado em 20/03/2020 12:00 -

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Médico de formação, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, vive hoje um delicado equilíbrio entre manter o discurso pragmático no momento de crise com a pandemia de coronavírus, e não desagradar o presidente Jair Bolsonaro, que já demonstrou internamente ciúme com o protagonismo que o subordinado assumiu nos últimos dias. 

O mal-estar vem desde a semana passada, quando Mandetta apareceu ao lado do governador de São Paulo, João Doria, opositor político de Bolsonaro, e se intensificou no fim de semana, quando o ministro falou a alguns órgãos de imprensa que a orientação sobre evitar aglomerações era “não” para todo mundo. 

Não à toa, na última quarta (18), quando se sentou ao lado do chefe na coletiva de imprensa no Palácio do Planalto e falou sobre o vírus, Mandetta adotou um tom mais político do que o tecnicismo que vinha imprimindo em suas falas nos pronunciamentos no Ministério da Saúde e chegou a dizer que o mandatário é o “grande timoneiro desse barco”. 

O primeiro escalado por Bolsonaro para falar na ocasião foi o presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), Antonio Barra Torres, e Mandetta foi deixado por último. Isso, por si só, já foi considerado por auxiliares um sinal do descontentamento do presidente com o ministro da Saúde. 

A fala de Mandetta foi recheada de gestos ao chefe, em que ele evitou mencionar diretamente a postura de Bolsonaro de três dias antes, quando o mandatário rompeu o isolamento e cumprimentou apoiadores que se manifestavam em frente ao Palácio do Planalto. 

O ministro afirmou inclusive que, “naquele domingo, a gente viu as praias do Rio lotadas, o Leblon lotado, São Paulo lotado”, destacando que as pessoas que compareceram aos protestos não foram as únicas a se reunirem, apesar das recomendações de evitar aglomerações. 

“Todo mundo começa a enxergar coletivamente. É típico de epidemias que as coisas se deem assim. É típico que, na sociedade como um todo, a gente vá gradativamente vendo a sinalização dos casos. O Brasil é um continente, não estamos falando de um País pequenininho”, disse o ministro. 

Minutos antes, Bolsonaro havia afirmado que não hesitaria em entrar em um “metrô lotado em São Paulo, numa barca em Niterói”. “Não se surpreenda se me vir entrando num metrô lotado, numa barca em Niterói. Longe de demagogia ou populismo, estou do lado do povo. (…) Tenho muito orgulho disso”, afirmou ao ser questionado se havia se arrependido de ter ido ao encontro de seus apoiadores do último dia 15. 

O Mandetta técnico

Embora se tenha visto na quarta um Mandetta tentando agradar o chefe, no dia seguinte, já se notou um ministro de volta às suas funções, na coletiva de imprensa remota, com perguntas feitas por um grupo de WhatsApp e transmitida pelas redes do ministério. Ele endossou mais uma vez, nesta quinta (19), a importância do isolamento, e destacou que o trabalho de sua equipe, como técnica e à frente da crise, é seguir trabalhando. 

“Se eu ficar doente, sairei em quarentena, trabalhando via web. Caso não possa trabalhar, tem três pessoas atrás de cada um de nós”, apontando para cada um de seus secretários.

Além disso, o ministro anunciou a intensificação de medidas de isolamento no caso da doença. Questões como essas vinham sendo minimizadas por Bolsonaro, para quem o coronavírus é “superdimensionado”. 

Interlocutores no Planalto acreditam que, embora Bolsonaro tenha afirmado que não há nenhum problema com o ministro, à medida que os elogios a Mandetta aumentam, o desgosto do chefe com ele também. Uma fonte palaciana destacou que esses dois quesitos “andam juntos”, quando se trata da personalidade do presidente. 

Foi neste contexto, inclusive, que se criou o comitê de crise interministerial, sob o comando da Casa Civil, do general Walter Braga Netto, na segunda (16). Até então, tudo sobre coronavírus estava nas mãos do Ministério da Saúde. 

Do outro lado, aliados do ministro defenderam que ele saísse do governo no domingo mesmo, assim que Bolsonaro cumprimentou e abraçou apoiadores, num claro desrespeito não apenas às orientações do Ministério da Saúde, de órgãos internacionais, mas do próprio Mandetta. 

Análise

Adepto da teoria da palmeira única, Jair Bolsonaro não convive pacificamente com ministros que brotam no gramado do governo como autoridades capazes de fazer sombra ao chefe. Emitiu sinais de incômodo com a desenvoltura de Mandetta na administração da crise do coronavírus. O ministro da Saúde cuidou de ajustar o seu discurso às obsessões e conveniências do chefe.

Mandetta vinha colecionando elogios por encostar na ciência e na boa técnica a estratégia do seu ministério para enfrentar o tsunami sanitário. Na entrevista conjunta comandada por Bolsonaro, o ministro adicionou à sua pregação médica os "impactos econômicos".

"É muito fácil falar 'fecha tudo', não deixe ninguém sair, quando as pessoas tem ainda muita informalidade, pouco recurso, precisa ser criado plano de alternativa econômica", afirmou Mandetta. "Eu preciso muito da equipe do ministro Paulo Guedes."

Na véspera, Bolsonaro lamentara que o esvaziamento de eventos como jogos de futebol prejudique os ambulantes que faturam ao redor dos estádios. Sem citar nomes, o presidente criticara governadores por adotarem providências de recolhimento social que potencializam a anestesia da economia.

Ecoando o chefe, Mandetta criticou "esses fechamentos de estrada que alguns governadores insinuam." Absteve-se de citar nomes. "Não adianta fechar tudo e faltar o frango que está pronto para chegar", disse o ministro. "Você segura uma coisa e desabastece a outra. Se eu não chegar com o cloro, para por na água de todo Brasil, que é servida para 200 milhões de brasileiros, a gente sai do vírus e cai em problema da qualidade da água."

No dia 16, um dia depois de Bolsonaro ter participado de manifestação anti-Congresso e anti-STF, Mandetta reuniu-se com os chefes do Legislativo e do Judiciário. O presidente deplorou o noticiário sobre esse encontro. Abespinhou-se especialmente com as reportagens que associavam sua ausência a um plano urdido pelos presidentes das Casas legislativas e do Supremo para desgastá-lo.

Sem que ninguém perguntasse, Mandetta apressou-se em explicar durante a entrevista o porquê do encontro. Foi "para pedir que eles tragam sugestões de ritos sumários" de compras, flexibilizando a lei das licitações. Nessa versão, a legislação seria um estorvo incompatível com a necessidade de adquirir rapidamente materiais e equipamentos para combater o coronavírus.

O ministro teve o cuidado de realçar que Bolsonaro receberia à noite, no Planalto, os chefes dos outros poderes. O encontro aconteceu. Mas os presidentes do Senado e da Câmara não deram as caras.

O senador Davi Alcolumbre, infectado pelo coronavírus, mandou dizer que estava de molho em casa. Rodrigo Maia presidia sessão noturna na Câmara. Antes, Maia avisou que não iria ao Planalto apenas para tirar uma foto ao lado de Bolsonaro. Escaldato, condicionou o encontro à existência de uma pauta previamente definida.

Após cruzar os últimos dias desaconselhando aglomerações e contatos interpessoais, Mandetta flexibilizou sua cartilha para tentar atenuar as pauladas que Bolsonaro vem recebendo por ter participado da manifestação pró-governo do último domingo.

O ministro lembrou que, naquele dia, os devotos de Bolsonaro não foram os únicos a levar os sapatos ao meio-fio. Como se isso liberasse o presidente da República de dar o exemplo. "Naquele domingo, a gente viu as praias do Rio lotadas, o Leblon lotado, São Paulo lotado…"

De repente, Mandetta passou a achar natural que o brasileiro demore a assimilar as recomendações da pasta que dirige. "Todo mundo começa a enxergar coletivamente. É típico de epidemias que as coisas se deem assim. É típico que, na sociedade como um todo, a gente vá gradativamente vendo a sinalização dos casos" de confirmação de contágio. "Não existe uma receita de bolo. O Brasil é um continente, não estamos falando de um país pequenininho."

De resto, o ministro passou a encarar com naturalidade o fato de Bolsonaro ter confraternizado com apoiadores na frente do Planalto, a despeito de estar sob monitoramento médico. "O presidente testou negativo", disse Mandetta, ecoando o chefe.

O ministro deu de ombros para o fato de que Bolsonaro, embora dispusesse de exame atestando que não fora contaminado pelo coronavírus, ainda aguardava o resultado de uma contraprova.

Mandetta equiparou o monitoramento do presidente ao de um brasileiro qualquer: "O que a gente diria se fosse um cidadão comum? Caso você tenha sinais, sintomas, procure uma unidade de saúde."

Comparado àquele ministro tecnicamente cioso das entrevistas anteriores, o Mandetta da coletiva conjunta coordenada por Bolsonaro soou em determinados momentos como uma espécie de sub-Mandetta.


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