19/03/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

Professor COVID-19

Publicado em 13/03/2020 12:00 - Rodrigo Amém

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Escrevo a vocês numa tarde quente de domingo, segundo dia de minha reclusão preventiva. Lá fora, o Rio de Janeiro fervilha de gente aproveitando promoções de supermercado, caçando água mineral, álcool gel e papel higiênico, enquanto outros poucos protestam democraticamente em favor de um projeto de desconstrução da democracia. 

Das minhas janelas, reais e digitais, acompanho com apreensão um país que faz escolhas a curto prazo apesar das consequências em longo. Vai dar ruim, penso. Mas, também, pode dar "bom".

Porque o mundo pode não ser plano, mas é cheio de facetas feito um cubo rubik, há a possibilidade de que a pandemia de COVID-19 nos traga boas novas, assim como a peste negra adubou o Iluminismo, guardadas as devidas proporções. 

Então, num exercício de otimismo enclausurado, ofereço algumas mudanças benéficas que podem surgir como consequência do eventual (para não dizer certeiro) e trágico resultado da pandemia de 2020.

Higiene básica

Brasileiro gosta de alardear o próprio asseio e o número de banhos diários. Mas a verdade é que um em cada quatro brazucas não lava a mão depois de usar o banheiro. O número aumenta se considerarmos o hábito antes das refeições. Mudanças comportamentais de foro íntimo costumam ser particularmente difíceis. Ainda estamos tentando convencer nossos conterrâneos a lavarem os próprios órgãos genitais. Historicamente, grandes momentos de convulsão social são os melhores professores para novos hábitos. O sofrimento de mocinhas de novela aumenta a doação de órgãos e sangue, por exemplo. Talvez a morte de um punhado de indivíduos de constituição fragilizada seja o bastante para promover uma mudança positiva na população e impactar positivamente futuras pandemias. 

Renda Mínima

A precarização do trabalho é a grande proposta da direita liberal no século XXI. Você trabalha "por conta", sem direitos, sem salário, sem benefícios, via aplicativo de celular. Acho seguro dizer que poderemos enterrar (junto com as primeiras vítimas da pandemia), o discurso de que o empregador converteria em salário aquilo que não gastasse com encargos trabalhistas. Pelo contrário, o salário dos "empreendedores" de si mesmos tende a ser menor, as horas de trabalho mais longas e os benefícios, inexistentes. No fundo, essa era a ideia dos idealizadores, mesmo. O problema é que a falta de salário fixo cria um problema de saúde pública, assim como uma séria questão social. Quem não tem direito a licença remunerada em caso de doença, trabalha doente. Pense nisso ao chamar um Uber nos próximos dias. 

Aqueles que estão doentes demais para trabalhar ou foram forçados à quarentena sem direitos trabalhistas estão numa situação de crise econômica pessoal.  Nos Estados Unidos, acredita-se que o grande motor da pandemia é a falta de segurança social dos trabalhadores, que não podem se dar ao luxo de não trabalhar. Alguns setores do governo começam a elaborar um plano para garantir uma "renda mínima" para estes "empreendedores", para que possam sustentar suas famílias ao invés de agirem como vetores do COVID-19. E você sabe como é: se os gringos fizerem em Nova York, o povo da Faria Lima aplaude e manda importar, também. Logo, pode ser que o vírus mate muita gente, mas pode ser que abra as portas para uma ampliação de políticas sociais em tempos de precarização e automação do trabalho.

Home Office

Já participou de uma reunião que poderia ter sido um e-mail? E já teve um emprego que poderia ser realizado de qualquer lugar com internet e telefone mas, por razões inexplicáveis, exige uma viagem de uma hora e meia até o outro lado da cidade para ficar oito horas de frente para uma tela de computador? Pois é: uma das promessas da revolução digital era o conceito do home office, que ofereceria qualidade de vida e produtividade, além de reduzir emissões de carbono e congestionamentos. Com tantas vantagens, por que a prática não é mais difundida? Porque é difícil mudar a cultura de uma organização. É preciso um estímulo irresistível. Além do mais, parte dos líderes não sabe ao certo como dirigir equipes à distância.

Mas, à medida em que a pandemia avança e faz vítimas entre os familiares dos funcionários, não haverá muita alternativa além de um regime de trabalho mais flexível em prol do bem estar dos funcionários e seus familiares. A Microsoft do Japão adotou o fim de semana de 3 dias com aumento de 40% (!!!) de produtividade. O que o seu gerente está disposto a fazer para aumentar a produtividade da sua equipe em 40%? Mais dinheiro com menos risco à saúde parece ser um estímulo irresistível até mesmo para o mais inseguro e incompetente dos chefes. 

Senso de Comunidade

Não é uma exclusividade de brasileiro, mas somos um povo particularmente hedonista e egocêntrico. A ideia de que nossas ações têm consequências para desconhecidos a quilômetros de distância e meses mais tarde parece um conceito abstrato para o cidadão de bem brasileiro típico. Importamo-nos, primeiramente, com nós mesmos. Em distante segundo lugar, com nossos familiares. Estão aí milhares de casos de abandono parental que atestam essa realidade. O vizinho? É um estranho. O morador de outro CEP é um figurante insignificante na festa que é a nossa vida. Quando viajamos a um outro país, nos encanta a limpeza e a ordem que parecem mágica. No Brasil, joga-se lixo no chão, urina-se na rua, rouba-se o erário público. No Brasil, não se perde um dia de praia sequer, uma festa, uma promoção de supermercado. Mesmo que seja para conter um vírus que deixou um rastro de morte em seu caminho. Pensamos: sou jovem, aguento uma gripe. Não pensamos que podemos ser vetores e infectar gente sem tanta sorte e privilégios. Aparentemente, a noção de responsabilidade pelos nossos atos na comunidade só é compreendida através do choque da realidade, infelizmente. Teremos que matar gente, para entender nosso papel em uma sociedade, sejam quais forem suas dimensões. Pode ser que o novo coronavírus nos ensine. Caso contrário, uma próxima pandemia ainda mais letal se encarregará de, tragicamente, nos ensinar.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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