19/04/2024 - Edição 540

Poder

Coronavírus esvazia atos antidemocráticos marcados para o dia 15

Publicado em 13/03/2020 12:00 -

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Movimentos de direita que convocaram as manifestações a favor do governo do presidente Jair Bolsonaro e contra instituições democráticas – previstas para domingo, 15 de março – anunciaram o cancelamento dos atos devido à propagação do novo coronavírus.

O cancelamento veio na esteira do pronunciamento feito por Bolsonaro na quinta (12). Durante a breve fala, de menos de 2 minutos, aconselhou o adiamento das manifestações, porém, defendeu os protestos aos quais se referiu como “espontâneos e legítimos” e de interesse do país. “Os movimentos espontâneos e legítimos, marcados para o dia 15 de março, atendem aos interesses da nação, balizados pela lei e pela ordem. Demonstram o amadurecimento da nossa democracia presidencialista e são expressões evidentes de nossa liberdade”, afirmou o presidente. Bolsonaro ainda aproveitou o pronunciamento para reforçar que o país é regido por um regime presidencialista. Segundo ele, as manifestações programadas “demonstram o amadurecimento da nossa democracia presidencialista e são expressões evidentes de nossa liberdade”.

Jair Bolsonaro promoveu um ajuste na sua estratégia política. Havia planejado colocar o asfalto no encalço do Congresso. Diante do risco de esvaziamento da manifestação, o presidente substituiu a incerteza do ronco do povo pela manipulação do medo que a elite política sente da rua.

No pronunciamento de rede nacional, Bolsonaro soou a certa altura como se estivesse fora de si: "O momento é de união, serenidade e bom senso." Mas voltou ao normal na frase seguinte: "Não podemos esquecer, no entanto, que o Brasil mudou. O povo está atento e exige de nós respeito à Constituição e zelo pelo dinheiro público. Por isso, as motivações da vontade popular continuam vivas e inabaláveis."

A maioria da população discorda do apoio que o presidente deu aos protestos que ocorreriam dia 15. De acordo com pesquisa feita pelo instituto Paraná Pesquisa, 52,2% das pessoas consideram errada essa posição de apoiar o embate contra o Legislativo, enquanto 40% acreditam que ele age de forma correta ao dar suporte aos protestos. Quando questionados sobre os reflexos da postura presidencial para o País, 57,1% acreditam que o apoio do presidente é ruim para o Brasil, contra 35% que acham bom. A pesquisa foi realizada por telefone entre os dias 4 e 6 de março, com 2.002 pessoas de todas as Regiões do Brasil e margem de erro de aproximadamente 2% para os resultados gerais.

Ponto de encontro de saudosistas do regime militar e generais de pijama, o Clube Militar do Exército, sediado no Rio de Janeiro, foi na contramão do bom senso: encaminhou para seus associados um comunicado que anunciava o apoio da instituição ao ato. A alegação é de que o Congresso pratica um “parlamentarismo branco” e não deixa o presidente governar. Formado por militares da reserva, o clube já foi presidido pelo hoje vice-presidente Hamilton Mourão e funciona como centro de articulação política de parte do Exército. Diz o comunicado: "Chegamos a um momento em que não podemos mais aceitar a velha política que se traduz em verdadeira barganha espúria (…)". "Não se pode mais assistir à impunidade pairar sobre a nossa pátria, estimulando a corrupção que destrói nossas instituições", completa o texto, encerrado com o lema bolsonarista “Brasil acima de tudo”. O clube convocou apoiadores de Bolsonaro a se concentrarem no próximo domingo, na Avenida Atlântica. “O Executivo não consegue governar porque o Congresso não deixa. Quando chamamos de ‘parlamentarismo branco’, é porque o Congresso quer fazer o papel do Executivo. Por exemplo, o Congresso aprova um Orçamento e tem que acompanhar a execução feita pelo Executivo”, disse o presidente do clube, general Eduardo José Barbosa.

Comportamento errático

A decisão de pedir a suspensão dos atos foi o ato final de um comportamento errático do presidente, que, desde o início da polêmica, agiu como uma biruta de aeroporto, cada hora apontando em uma direção.

As manifestações começaram a ser convocadas por grupos de direita como Brasil Conservador, Nas Ruas e Avança Brasil na esteira do episódio em que o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, foi flagrado em áudio vazado criticando o Congresso, em cerimônia no dia 18 de fevereiro. Segundo ele, deputados e senadores faziam “chantagem” com Bolsonaro na questão do Orçamento e instigou o chefe a “convocar o povo às ruas”.

Uma semana depois, no dia 25 de fevereiro, o presidente atendeu ao apelo de seu general: compartilhou em grupos de WhatsApp vídeos com convocações para os atos. A pauta era um suposto “parlamentarismo branco” que o Legislativo estaria tramando e uma imaginária má vontade do Congresso com as propostas de Bolsonaro, acusação que bate de frente com o fato de que o governo nem consegue enviar as reformas administrativa e tributária aos parlamentares.

Não ajudou em nada o governo e ainda atrapalhou. A participação direta do presidente na convocação irritou os congressistas, o Supremo Tribunal Federal – também alvo dos manifestantes – e obrigou o presidente a, pela primeira vez, dizer que não havia convocado ninguém. Admitiu apenas ter repassado mensagens de “cunho pessoal” a “algumas dezenas de amigos”.

Bolsonaro, no entanto, contrariou a si próprio no dia 7 de março, quando fez uma escala em Boa Vista (RR), durante viagem aos Estados Unidos. Ali foi direto. “Dia 15 agora, tem um movimento de rua espontâneo (…) E o político que tem medo de movimento de rua não serve para ser político. Então participem, não é um movimento contra o Congresso, contra o Judiciário, é um movimento pró-Brasil”, disse.

Na terça-feira, 10, a Secretaria de Comunicação da Presidência também foi usada para incentivar as pessoas a irem à manifestação. A pretexto de falar da visita de Bolsonaro aos EUA, a Secom reproduziu uma frase do presidente dita ao público americano. “As manifestações do dia 15 de março não são contra o Congresso, nem contra o Judiciário. São a favor do Brasil”. No mesmo dia, minimizou a pandemia de coronavírus. “Temos no momento uma crise, uma pequena crise. No meu entender, muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo todo”, disse.

Na quarta-feira, 11, ao voltar dos EUA, questionado novamente sobre o risco de grandes aglomerações de rua em época de pandemia de coronavírus, voltou a desdizer o que havia dito, em rápida declaração em frente ao Palácio do Alvorada. “Eu não convoquei ninguém. Pergunta para quem convocou. Você pergunta para quem convocou”.

Agora, acuado pelo avanço da doença e diante do fosso que separava suas atitudes das medidas que estão sendo adotadas em todo o mundo, decidiu pedir a sua tropa de rua que baixasse as armas e esperasse o mau tempo passar.

Apesar do comportamento tortuoso e da demora para reconhecer que os atos de rua eram uma má ideia, menos mal que o presidente tenha, enfim, dado o sinal para cancelar uma manifestação que, independente da questão do coronavírus, nunca deveria ter sido convocada.

Desde que começou a mobilizar os bolsonaristas nas redes sociais, a manifestação desagradou aos generais (usados em cartazes da convocação), aos líderes da Câmara e do Senado, aos ministros do STF e só criou atrito e tensão em um ambiente que já não era muito favorável ao governo. Mesmo com problemas dos mais variados pela frente, o presidente decidiu encampar o desvario. Menos mal que o coronavírus o fez recuar.

Análise: caráter totalitário

A tomada de coragem de Bolsonaro em conclamar seus apoiadores às manifestações em defesa de si mesmo e contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal – antes de ser convencido da irresponsabilidade da decisão diante da crise do coronavírus – é um sinal de seu caráter totalitário. Até então, o presidente apenas vociferava contra os que afirmavam que ele estava ajudando nas convocações dos atos de 15 de março. Não deixa de ser um sinal de maturidade: se ele quer espancar a democracia e deixá-la para morrer no asfalto, é bom não ser covarde e assumir isso publicamente.

"Quem diz que é um movimento popular contra a democracia está mentindo e tem medo de encarar o povo brasileiro", disse ele, em um evento em Boa Vista (RR), na escala de sua viagem aos Estados Unidos, no último dia 7.

Bolsonaro tentou ressignificar os convites que circulavam nas redes sociais, vinculando essas manifestações a pautas como o fechamento dos Poderes Legislativo e Judiciário, a prisão de deputados federais, senadores e ministros do STF e até um golpe militar. Para ele, esses convites devem ser apenas "espírito de humor, esportivo" – como chamou o uso de um humorista para representá-lo em uma coletiva de imprensa no dia em que o IBGE divulgou que a economia do país cresceu, em 2019, só 1,1%. Mas a tentativa carece de sinceridade.

A validade de um movimento é o respeito que ele presta à democracia. E apesar das palavras de Bolsonaro no último dia 7 – "Participem, não é um movimento contra o Congresso, contra o Judiciário. É um movimento pró-Brasil" – não é isso que tem sido visto nas convocações e nos ânimos dos envolvidos. Que se embriagaram, diga-se de passagem, no "foda-se" ao Congresso, sugerido por Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, que chamou parlamentares de chantagistas no dia 18 de fevereiro. Com atraso, o presidente finalmente atendeu a um pedido do general e convocou o povo às ruas.

Além disso, Bolsonaro chama de "povo brasileiro" apenas o naco que concorda com seu governo a ponto de aceitar ir às ruas defendê-lo. Ou seja, ele só reconhece como válida a opinião daqueles que repetem o que ele diz. O que faz parecer que segue a vontade popular, quando segue só sua própria vontade.

"Não somos nós políticos que dizemos para onde o Brasil deve ir. Nós apenas conduzimos. Vocês, povo, que dizem para onde ele deve ir. Então, o movimento de rua é muito bem-vindo", afirmou. "É um movimento que quer mostrar para todos nós, para o presidente, Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, que quem dá o norte para o Brasil é a população."

Mas qual população?

Os participantes dos protestos programados para o dia 18 de março, com o lema de "Ditadura Nunca Mais", com teor claramente contrário ao seu governo? Os dos atos do dia 14 de março, segundo aniversário da execução da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, também críticos ao seu governo e às relações de sua família com milicianos? Os das manifestações deste domingo, 8 de março, Dia Internacional da Mulher, que denunciam o machismo sobre o qual fez sua carreira? Eles não são tão brasileiros quanto àqueles que iriam às ruas no dia 15?

Bolsonaro, com o discurso do último dia 7, se tornou sommelier de "povo". Os que concordam com ele e sairiam em sua defesa no dia 15 são seu "povo escolhido", para quem governa e presta contas. E quem se manifestaria em 8, 14 e 18 não é povo, mas estorvo.

Ele certamente diria que os eventos nesses outros dias não seriam "espontâneos", mas organizados com o objetivo de criticá-lo – o que é verdade, até porque não existe protesto de massa sem organização. Mas tampouco o evento do dia 15 seria um reflexo natural, pelo contrário, vinha sendo bombado de dentro do Palácio do Planalto. Bolsonaro, aliás, foi traído por si mesmo ao ter que frisar, inconscientemente, no discurso que o ato que defende seu governo é um "movimento de rua espontâneo", repetindo a expressão duas vezes. Como se quisesse convencer os interlocutores de algo que ele sabe que não se sustenta.

Uma imagem pedindo o emparedamento do Congresso passa pelos olhos da maioria de nós, em grupos de WhatsApp, sem a mesma indignação que há alguns anos. Acabamos nos acostumando a esse tipo de comportamento, muitas vezes sem repudiá-lo ou limitando-nos a fazer beicinho de reprovação. Talvez pelo cansaço diante da insanidade contínua. Talvez pela não percepção de que é uma falácia a afirmação de que a democracia deve aceitar passivamente tudo, inclusive a defesa do fim da democracia.

Com isso, banalizamos a reação diante do ataque às instituições e, portanto, às estruturas que garantem minimamente nossos direitos e liberdades, a ponto dele ter se tornado parte do cotidiano – como um spam ou um daqueles "bom dia" com memes de gatinhos que os tios mandam no grupo da família. Dessa forma, algo que deveria ser encarado com extremo desgosto transforma-se em piada por "comediantes", entra nos cultos de "homens de Deus", torna-se "análise" de influenciadores em redes sociais.

Ao negar o teor autoritário presente nas convocações do 15 de março, o presidente demonstrou todo seu oportunismo e hipocrisia. Mas ao convidar, publicamente, para elas, também mostrou que percebeu que sua incompetência em fazer o país crescer e gerar empregos decentes já foi sentida por uma parte de seus apoiadores, sejam empresários, seja da classe trabalhadora. E precisa distrair a insatisfação.

Vale lembrar que a imensa maioria do povão não iria às ruas nos dias 15 ou 18, bem como não foi às ruas nos atos a favor e contra o impeachment anos atrás, porque estava ocupada demais pensando em um jeito de sobreviver ao dia seguinte em um país com 11,9 milhões de desempregados, quase 41% da população na informalidade (ou seja, sem direitos básicos) e um governo perdido, que teve a brilhante ideia de financiar a contratação de jovens taxando o seguro-desemprego de quem foi mandado embora.

As declarações de Bolsonaro são também um ato de desespero. Diante de uma popularidade baixa, uma economia que derrapa e um rosário de denúncias de corrupção envolvendo sua família e aliados, precisa demonstrar que tem apoio. Foi para os Estados Unidos colher uma foto para o Instagram com Donald Trump e aposta as fichas em algum ruído vindo das ruas, com a ajuda – por exemplo – de uma minoria desmiolada dos caminhoneiros que ama a ideia de golpe. A dúvida é o que acontecerá se ele perceber que não tem tanto apoio como pensava? Irá parar de atrapalhar e deixar o país se reeguer ou partirá para o tudo ou nada?


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