19/03/2024 - Edição 540

Especial

Abandono social

Publicado em 10/03/2020 12:00 -

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A renda dos 5% mais pobres no Brasil caiu 39% entre 2014 e 2018. Como consequência, o contingente da população em extrema pobreza aumentou em 71,8% nesse período, com inclusão de 3,4 milhões de novos pobres extremos. As informações são do FGV Social, da Fundação Getúlio Vargas, que atribui esses dados à crise econômica e a desajustes no programa Bolsa Família. Em 2019, houve redução no número de beneficiários e aumento na fila das famílias que buscam por assistência pelo programa.

Segundo Marcelo Neri, diretor do FGV Social, as mudanças no Bolsa Família nos últimos cinco anos significaram um ajuste fiscal nos ombros dos mais pobres que quase não contribuiu para a questão fiscal do e ainda desprotegeu os brasileiros mais vulneráveis durante um período de crise econômica.

Criado em 2003, o Bolsa Família é o maior programa de transferência de renda do mundo, com atendimento de pouco mais de 40 milhões de pessoas. Focado em crianças e famílias abaixo das linhas de extrema pobreza e pobreza estimadas pelo governo, o benefício é oferecido através de um cartão magnético em posse das mães e/ou mulheres da família em 90% dos casos. O valor de elegibilidade inicial ao benefício básico, hoje em R$ 89 reais por pessoa, é bem próximo da linha mais baixa de pobreza das metas do milênio da ONU no valor de US$ 1,25 por dia ajustado por paridade de poder de compra que serviu de inspiração na adoção da linha oficial de pobreza e dos critérios do Bolsa Família em 2011.

Os dados foram apresentados no último dia 3 em reunião da comissão especial que analisa o projeto que reformula os benefícios financeiros do Bolsa Família (PL 6072/2019), de autoria da deputada Tabata Amaral (PDT-SP) e de outros 57 deputados.

Apresentado no contexto da agenda legislativa para o desenvolvimento social, o projeto assegura a atualização monetária anual dos valores dos recursos pagos para caracterização de situação de pobreza e de extrema pobreza pelo INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor). Atualmente, o reajuste depende de decisão do Executivo. A proposta também amplia os condicionantes de frequência escolar previstos para garantir o direito à assistência.

Depois de analisada pela comissão especial, a proposta será votada pelo Plenário da Câmara.

Nenhum representante do governo esteve presente na audiência dessa terça, apesar de o requerimento prever convite de representantes dos Ministérios da Cidadania e da Economia. Além disso, nenhum parlamentar alinhado ao governo esteve presente nesse primeiro debate.

O governo federal tem dito que vai reformular o Bolsa Família, porém não precisou quando isso será feito. Em janeiro, o porta-voz da Presidência da República, Otávio Rêgo Barros, confirmou que um novo nome para o programa está em estudo e disse que ideia a é privilegiar o mérito. A gestão do programa está sob responsabilidade do Ministério da Cidadania, hoje comandado pelo ministro Onyx Lorenzoni.

Em nota, o ministério afirmou que “o Poder Legislativo tem autonomia constitucional para apresentar suas propostas para o aperfeiçoamento das políticas públicas, o que faz parte do processo democrático”.

“Foram feitos estudos técnicos para evoluir o programa e que estão sendo aperfeiçoados pela nova equipe técnica do ministro Onyx Lorenzoni. O intuito é beneficiar os cidadãos que mais precisam, mantendo o espírito de eficiência no gasto do dinheiro público”, informou a pasta.

Com 36,8% das famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza, Nordeste fica só com 3% das concessões do Bolsa Família

O governo Jair Bolsonaro priorizou Sul e Sudeste na concessão de novos benefícios do Bolsa Família em janeiro, em detrimento da Região Nordeste, que concentra 36,8% das famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza na fila de espera do programa. 

Pelos dados fornecidos pelo Ministério da Cidadania ao Congresso e obtidos pelo Estadão/Broadcast, o Nordeste recebeu 3% dos novos benefícios enquanto Sul e Sudeste responderam por 75% das novas concessões. Para se ter uma ideia, o número de novos benefícios concedidos em Santa Catarina, que tem população oito vezes menor que o Nordeste e é governada por Carlos Moisés (PSL), foi o dobro do repassado à região nordestina inteira, cujos governadores são da oposição. 

As informações foram comparadas com os dados oficiais disponíveis na internet. A série histórica mostra que houve um pico de novas concessões do Bolsa Família em janeiro que se refletiu em todas as regiões, exceto o Nordeste.

Nas eleições de 2018, a Região Nordeste foi a única que votou majoritariamente no candidato do PT, Fernando Haddad. No segundo turno, o petista teve 69,7% dos votos válidos, ante 30,3% de Bolsonaro. Nas demais regiões, o atual presidente foi o vencedor. No Sul, conseguiu a maior vantagem: 68,3% ante 31,7% de Haddad.

Após eleito, Bolsonaro se envolveu em uma série de polêmicas com o Nordeste. Na mesma época, a Caixa havia reduzido o volume de novos empréstimos para a região.

O ex ministro Ciro Gomes (PDT-CE) não poupou o presidente Jair Bolsonaro de críticas por conta da redução do atendimento do programa Bolsa Família no Nordeste. “Este Bolsonaro é o mais mesquinho dos políticos que já vi . Perseguir os pobres de uma região por vingança é uma canalhice sem par!”, escreveu Ciro nas suas redes sociais.

Fator de pressão

Agora, os dados mostram que o Nordeste tem ficado para trás nas novas concessões do Bolsa Família, num momento em que a fila de famílias que aguardam para ingressar no programa virou fator de pressão contra o governo. A gestão Bolsonaro trabalha numa reformulação do programa.

Enquanto o novo desenho não sai do papel, o alcance do Bolsa tem diminuído em todo o Brasil. Entre junho e dezembro, a concessão de novos benefícios despencou a uma média de 5,6 mil por mês. Antes, passavam de 200 mil mensais.

Mas o governo encontrou espaço em janeiro para incluir no programa famílias que estavam à espera do benefício. Foram 100 mil contempladas – 45,7 mil delas no Sudeste, 29,3 mil no Sul, 15 mil no Centro-Oeste e 6,6 mil no Norte. O Nordeste recebeu 3.035 novos benefícios e manteve a média mais magra de meses anteriores.

“Os números mostram um favorecimento no pagamento do benefício aos eleitores de regiões fiéis ao presidente Bolsonaro. Cabe aos presidentes da Câmara e do Senado pedir explicações para manter a eficácia do programa”, critica o senador Renan Calheiros (MDB-AL).

A distribuição chama a atenção porque é a Região Nordeste que concentra o maior número de famílias necessitadas e ainda desassistidas pelo programa. A região tinha, em dezembro do ano passado, 939,6 mil famílias em situação de extrema pobreza (com renda familiar per capita abaixo dos R$ 89 mensais) sem acesso ao Bolsa. Em todo o Brasil, são 2,39 milhões de famílias nessa situação.

O Sudeste, região mais atendida, também tinha volume considerável de famílias em extrema pobreza ainda sem inclusão no programa, mas em número ainda menor que no Nordeste: 868,3 mil. Já Região Sul tinha 186,7 mil famílias nessa condição de vulnerabilidade e foi a segunda maior beneficiada.

Segundo os dados de dezembro, havia ainda 1,18 milhão de famílias em condição de pobreza (com renda familiar per capita entre R$ 89 e R$ 178 mensais) que não recebem auxílio do programa social. Ao todo, 3,6 milhões de famílias no País faziam jus ao benefício e estavam cadastradas em dezembro de 2019, mas não receberam nenhum valor.

O professor Marcelo Neri afirma que a Região Nordeste está subestimada em três sentidos, uma vez que reúne 27% da população brasileira, tem taxa de pobreza mais elevada (22,2%, ante 11% na média do País) e foi uma das regiões mais afetadas pela crise econômica, com queda maior na renda das famílias.

“Tem um descasamento entre a oferta do programa e a necessidade das pessoas. Se imaginar onde os pobres estão, deveria ter 54% (de novas concessões para o Nordeste) em vez de 3%. Isso só pela fotografia de pobreza”, diz.

Segundo Neri, o encolhimento do programa nos últimos anos já vinha representando um “ajuste em cima dos pobres”. Agora, o quadro de distribuição regional torna o problema maior, diz o professor. “O que está se vendo agora é que, no período recente, a rede está regionalmente mais distante de onde os pobres estão. É um movimento que está na contramão das necessidades da população”, afirma.

Para o economista Pedro Fernando Nery, é recomendável que o governo tenha “alguma justificativa técnica plausível” para a disparidade entre as regiões. “Se não tiver, acho que passa do limite da discricionariedade política e entra numa esfera perigosa de discutir a legalidade. Não é uma discricionariedade que nenhum gestor tem a de prejudicar uma determinada região”, diz.

Em nota, o Ministério da Cidadania diz que o processo de concessão de benefícios é “impessoal e realizado por meio de sistema automatizado que obedece ao teto das verbas orçamentárias destinadas ao programa”. O órgão não explicou o porquê da disparidade das concessões entre as regiões, mas afirmou que mais 185 mil famílias em todo o País passarão a receber o benefício em março.

Os cortes para o Nordeste devem dar ainda muita dor de cabeça política para o governo. A revelação do problema causou pesada reação da bancada de parlamentares nordestinos.

Depois do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) anunciar que pretende convocar Lorenzoni, para explicar o que está acontecendo, o deputado Juscelino Filho (DEM-MA), alerta que os cortes no seu Estado, o Maranhão, podem ser até maiores do que se pensa.

“Os cortes no Bolsa Família no Maranhão podem ser mais graves do que divulgado pela imprensa. Dados da própria Senarc, do Ministério da Cidadania, apontam quase 130 mil benefícios a menos entre janeiro de 2019 e fevereiro deste ano”, afirmou o deputado na sua conta do Twitter.

“Especialistas da área social no estado dizem que toda essa redução não se justifica. Assim como, segundo eles, também não há explicação para o baixíssimo número de novos benefícios, em razão do tamanho da fila de espera que há. Os esclarecimentos do governo federal são urgentes!”, cobrou.

Fila do Bolsa Família cresce porque Estado precariza direitos, diz MPF

"O aumento na fila de espera para receber o Bolsa Família é consequência de um Estado que está precarizando direitos, furtando-se de suas obrigações constitucionais de garantir qualidade de vida a quem mais precisa. Com isso, aumenta a pobreza e a miséria e, com elas, o número de pessoas que procuram o benefício. Não é apenas uma questão orçamentária."

A avaliação foi feita à coluna pela subprocuradora-geral da República, Deborah Duprat, que está à frente da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público Federal.

Ela enviou, no último dia 12 de fevereiro, ofício ao Ministério da Cidadania demandando que o governo informe as providências que estão sendo tomadas para atender o público que está apto a acessar o Bolsa Família. No documento, cita reportagem da Folha de S.Paulo, segundo a qual um milhão de famílias aguardavam uma resposta do ministério e que mesmo cidades mais pobres não tinha liberação de novos benefícios nos últimos cinco meses. E também inclui representação do deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP), apontando haver "fortes indícios" de que o governo está obstruindo, deliberadamente, o direito ao benefício.

Reportagem de Carlos Madeiro, do UOL, mostra que o governo federal fechou a porta, nos últimos sete meses de 2019, para quem pediu reingresso no Bolsa Família. Isso representou uma queda de 74,5% no número de reingressos em comparação a 2018.

"Não vou dizer que tudo isso começou agora, porque seria uma hipocrisia. Mas desde 2018, quando a emenda constitucional que impôs um teto para os gastos públicos passou a produzir efeitos", afirma. De acordo com ela, essa limitação precarizou a atuação do Estado para garantir dignidade à população ao limitar o orçamento para atendimento.

Qualidade de vida que não vem apenas com a dimensão da transferência de renda, mas de serviços públicos de saúde, saneamento básico, educação, transporte, moradia, entre outros.

Deborah Duprat lembra que o objetivo do programa Bolsa Família é de que exista uma porta de saída, com a articulação de políticas públicas para a autonomia financeira e o fortalecimento das famílias envolvidas. "Temos que concordar que isso não aconteceu e precisa mudar", afirma.

Mas, para ela, é contra a lógica de respeito aos direitos fundamentais que você diga que o "mínimo existencial" esteja submetido ao orçamento.

"Deve haver um mecanismo que retire imediatamente recursos de outro lugar para garantir, como prioridade zero, o atendimento a pessoas em situação de miséria absoluta. Isso é um padrão do mundo, inclusive do Banco Mundial. Não é aceitável um país conviver com isso", afirmou à coluna.

"Estamos falando de famílias em que a renda de cada membro é menor que R$ 89,00 por mês. A fome captura qualquer possibilidade de cidadania", conclui.

A demanda foi enviada enquanto Osmar Terra ainda estava à frente do Ministério da Cidadania. Quem terá que responde-la é Onyx Lorenzoni.

Pobres

Privados do Bolsa Família, milhões de pobres buscam ajuda de prefeituras, em todo o País, para conseguir o mínimo indispensável à sobrevivência. Muitas dessas prefeituras também são pobres e incapazes, portanto, de suportar essa sobrecarga. O problema se acumula – para as famílias e para os municípios – porque o governo federal deixou, desde o primeiro semestre do ano passado, de dar cobertura a milhões de pessoas no principal programa de transferência de renda. O crescimento da pobreza era previsível. O desemprego tem recuado muito devagar e permanece muito mais alto que nas demais economias emergentes e no mundo avançado. Mas os programas econômicos e sociais foram conduzidos como se a população de renda mais baixa estivesse em condições muito mais confortáveis, ou talvez nem passasse de uma ficção estatística. Na fila dos pobres sem assistência já se acumulam uns 3,5 milhões de pessoas, correspondentes a cerca de 1,5 milhão de famílias. Os números são conservadores.

O quadro se agravou a partir de junho. Em maio, 264.159 famílias foram incluídas entre as beneficiárias do programa Bolsa Família. Em junho, o número caiu para 2.542. Os novos ingressos continuaram nesse patamar até outubro. Os últimos dados do cadastro de benefícios sociais do governo federal são daquele mês. Os novos problemas, segundo o Ministério da Cidadania, serão eliminados quando se concluírem os estudos de reformulação do programa Bolsa Família. 

É no mínimo chocante. Milhões de pobres foram deixados sem assistência, no meio de uma economia frágil e com alto desemprego, enquanto se estudava a mudança do mais importante programa de ajuda social? Quem pode ter tido essa ideia quase inacreditável? Mas uma segunda explicação foi apresentada por técnicos ouvidos pela reportagem – e essa também é espantosa. Segundo essas fontes, a redução dos ingressos pode ter sido manobra para se acumular o dinheiro necessário a uma 13.ª parcela prometida pelo candidato Jair Bolsonaro. Se isso for verdade, alguém terá decidido deixar milhões ao relento para dar um agrado aos já incluídos no programa.

Nenhuma dessas explicações deve satisfazer às famílias sem acesso à bolsa, nem aos prefeitos pressionados para fornecer um socorro bem superior às suas possibilidades, nem ao ministro Onyx Lorenzoni. Mais do que outras figuras da política brasileira, ele tem motivos para se queixar de uma herança maldita. Não está claro, no entanto, como se poderá normalizar o programa. Será preciso remanejar verbas do Orçamento? Nesse caso, quanto tempo será consumido?

Falando à reportagem, prefeitos de municípios pequenos mostraram as dificuldades para socorrer as pessoas privadas do Bolsa Família. Não por acaso, a procura de ajuda cresceu de forma significativa nas áreas mais pobres do País.

Em grande parte do Brasil os piores efeitos da recessão persistiram, e provavelmente se agravaram, mesmo depois da retomada do crescimento em 2017. O desemprego permaneceu muito alto, apesar de alguma redução, e as perspectivas continuaram muito ruins principalmente para os trabalhadores menos qualificados. Nada poderia justificar o abandono dessas pessoas, especialmente numa fase de atividade ainda fraca e de perspectivas modestas de crescimento.

Uma expansão econômica na faixa de 2% a 2,3%, projetada para este ano por boa parte dos economistas, será insuficiente para mudar de forma significativa as condições de emprego. Os desocupados, subempregados e ocupados precariamente por conta própria continuarão muito numerosos. Mas esses ainda serão considerados felizardos, quando comparados com as pessoas de menores qualificações. Para fazer o mínimo necessário, o governo terá de cuidar de ajustes e reformas, de buscar meios de impulsionar o crescimento e de manter o socorro aos mais pobres. As eleições poderão ser um estímulo para fazer as coisas certas.

Desemprego

No Brasil, aproximadamente 25% dos desempregados procuram emprego há dois anos ou mais. Esse contingente chega a 2,9 milhões de pessoas, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (Pnad-C), referentes ao último trimestre de 2019 e divulgados dia 14 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com o IBGE, 39,2% dos brasileiros desempregados estão procurando trabalho há um ano ou mais e 84%, há um mês ou mais.

A Pnad-C também mostrou dados sobre o mercado de trabalho no último trimestre do ano para homens e mulheres. A taxa de desemprego entre os homens (9,2%) é menor do que a observada entre as mulheres (13,1%). A disparidade pode ser observada também entre brancos, que tiveram uma taxa de desemprego de 8,7%, e pretos (13,5%) e pardos (12,6%). O mercado segue sendo machista e racista quando se observa os menores índices de desemprego nas categorias de homens e brancos.

É importante lembrar que o maior índice de desemprego foi atingido pelo governo do Golpe, de Michel Temer, no percentual de 13,7%, ou seja, mais de 13 milhões no ano de 2017. Já a mínima foi alcançada em dezembro de 2013, durante o governo Dilma, quando chegou à 6,2%.

Hoje, por mais que o índice tenha reduzido, a taxa de desemprego no Brasil ainda atinge mais de 12 milhões de brasileiros.

As “filas da miséria” e os pobres humilhados no Brasil

O recuo na cobertura do Bolsa Família nos municípios mais pobres do país e o aumento das filas de espera para receber o benefício fazem parte de uma decisão política do governo Bolsonaro para “economizar”, diz a economista Tereza Campello.

“Não se trata apenas do aumento do número de famílias na fila; o governo está diminuindo o programa para economizar. Economizar no Bolsa Família é uma opção. Por isso a opção não é diminuir a fila, mas ampliá-la, excluindo pessoas diariamente do programa”, adverte. Segundo ela, a atual fila de espera é “sensível” porque as famílias que estão aguardando para receber o benefício já estão habilitadas. “Estamos falando de pessoas que entraram com a solicitação, seus dados já foram verificados e checados, e agora elas têm que receber, porque o benefício já foi reconhecido. Ou seja, a pessoa já atende aos critérios para recebê-lo”, explica.

A ex-ministra do governo Dilma afirma que o “orçamento da União não é menor agora” em relação ao que foi no passado e lembra que o custo do programa, 0,5% do PIB, “é marginal, residual perto do que o governo gasta em outras áreas”. Na avaliação dela, o aumento das filas não tem relação com a situação fiscal do Estado, mas com uma mudança de modelo em relação aos investimentos. “Trata-se de uma visão de que pobre é gasto”, menciona.

Tereza destaca alguns dos resultados do Bolsa Família, como a redução da mortalidade infantil, do déficit de altura em mais de 50% das crianças atendidas e da tuberculose. “O programa tem um impacto na melhora da saúde das crianças beneficiadas e, consequentemente, na economia que faremos a longo prazo nesta área. Quanto custa não fazer isso?” E acrescenta: “Em 20 anos, se perde uma geração no Brasil”.

A decisão do Ministério da Cidadania que põe em risco a assistência social nas cidades brasileiras

Uma portaria do Ministério da Cidadania lançada no fim de 2019 resultou em cortes nas verbas federais repassadas para os serviços de assistência social no país. Segundo gestores dos municípios, a decisão de Brasília põe em risco a continuidade do atendimento, especialmente em localidades menores e com menos recursos — as remessas foram até 40% menores que as anteriores.

A portaria nº 2362 foi publicada no Diário Oficial em 23 de dezembro do ano passado — um dia antes da véspera de Natal. Mas os efeitos da medida só foram sentidos no começo deste mês. O impacto variou em cada município, mas oscilou de 30 a 40%.

O corte ocorre num momento de enxugamento do principal programa social do país, o Bolsa Família.

Em 2019, cerca de 500 mil famílias estavam na fila de espera do programa, segundo dados obtidos pelo jornal O Globo por meio da Lei de Acesso à Informação. O Ministério da Cidadania, no entanto, não informa o número mês a mês.

Um dos serviços atingidos pela portaria nº 2362 são os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS). Estes são responsáveis justamente por encaminhar as pessoas que têm direito a benefícios como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC).

No Brasil, o financiamento da assistência social é dividido entre a União, os Estados e os municípios — e o dinheiro do governo federal chega aos gestores dos municípios por meio do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS).

Os recursos são usados pelos municípios para manter os vários tipos de serviços que compõem o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), e que vão desde albergues para a população de rua até equipes de assistentes sociais que acompanham famílias vulneráveis, passando pelos CRAS e Centros de Referência Especializados (CREAS).

Utilizando a ferramenta Siga Brasil, do Senado Federal, a reportagem da BBC News Brasil constatou que o Ministério da Cidadania dispunha de R$ 1,8 bilhão para transferir aos Estados e municípios por meio do FNAS no Orçamento deste ano — o valor é cerca de 35% menor que os R$ 2,8 bilhões empenhados com esta finalidade ao longo de 2019.

O Siga Brasil reproduz dados do Sistema Integrado de Administração Financeira (SIAFI), o sistema que gerencia os pagamentos do governo.

Procurado pela reportagem, o Ministério da Cidadania não contradisse os dados ou apresentou números diferentes — a reportagem perguntou especificamente sobre o valor disponível para este tipo de transferência.

A pasta disse apenas que as parcelas estão sendo pagas aos municípios e Estados "de acordo com a disponibilidade orçamentária e financeira destinada" no Orçamento de 2020.

A portaria, diz o ministério, tem por objetivo adequar os repasses da União para a assistência social ao que determinam a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA).

O texto, em si, "não reduz nem aumenta os recursos disponíveis para a Assistência Social", argumenta a pasta.

A portaria busca garantir que a contribuição da União "ocorra em conformidade com as legislações de responsabilidade fiscal e orçamentária vigentes, respeitando também as orientações dos órgãos de controle", diz a nota.

'Não sei como vou manter o serviço'

José Arimatéia de Oliveira é o secretário municipal de assistência social do município de Aratuba (CE), uma pequena cidade de 13 mil habitantes localizada a duas horas de viagem de Fortaleza.

O município é considerado de pequeno porte, dentro do SUAS. A União ajuda a cidade a bancar serviços básicos, com aportes de cerca de R$ 19 mil por parcela, segundo o gestor.

No começo de março, no entanto, o novo pagamento foi de apenas R$ 11 mil, diz ele.

"Principalmente nós, dos municípios de pequeno porte, vamos ser impactados diretamente. Esse era um recurso que ajudava a pagar as equipes do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF); o material de expediente e os gêneros alimentícios que eram dados às famílias que participam (do programa)", diz o secretário.

No município de Nhamundá (AM), a parcela paga no começo de março veio com um valor 35% menor, segundo a secretária municipal da pasta, Eldilene Alves da Silva.

O município costumava receber cerca de R$ 80 mil por parcela, diz ela, mas o último pagamento foi de apenas R$ 56 mil.

Localizado ao longo da fronteira do Amazonas com o Pará, Nhamundá tem uma área de mais de 14 mil quilômetros quadrados. É quase 10 vezes a área do município de São Paulo, embora a população seja de apenas 21 mil habitantes.

Estes números significam que as equipes de assistentes sociais precisam se deslocar por longas distâncias, diz Eldilene.

"No Norte, a gente tem uma logística muito custosa, muito específica da região, onde o acesso às comunidades muitas vezes é fluvial. A gente acaba tendo um gasto com combustível muito alto. Para acompanhar os beneficiários do Bolsa Família, por exemplo, é preciso deslocar equipes, e isso encarece a nossa atividade", diz ela.

A gestora diz ainda que Nhamundá e outros municípios da região enfrentam uma dificuldade adicional nos últimos anos: a chegada de imigrantes venezuelanos, que fogem da grave crise econômica e social em seu país de origem. O primeiro atendimento aos imigrantes é feito nos CRAS, diz ela — um dos serviços atingidos pelo corte.

'Quebra do pacto federativo', diz presidente de conselho

O fato do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) iniciar o ano com um orçamento menor que o necessário não chega a ser uma novidade — as verbas poderiam ser complementadas mais tarde, com a liberação de novos créditos aprovados pelo Congresso.

A diferença é que, graças à portaria de dezembro de 2019, o Ministério da Cidadania pode pagar parcelas menores que o acordado no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), diz a gestora Andréia Lauande. Ela preside o Congemas, um grupo que congrega secretários municipais de assistência social de todo o país.

No fim de 2019, o CNAS aprovou um orçamento de cerca de R$ 2,7 bilhões para 2020. Apesar disso, a Lei Orçamentária deste ano destinava apenas R$ 1,3 bilhão para estas transferências, inicialmente.

"O que significa a 'equalização de recursos' mencionada pela portaria? Quer dizer que, se o governo só destinou R$ 1,3 bilhão (para o Fundo Nacional de Assistência Social), ele vai começar a pagar só referente ao que ele tem. Distribui os R$ 1,3 bi ao longo de um ano e começa a pagar as parcelas, 40% a menos", explica Lauande.

"Só que aí você está descumprindo o pacto federativo; está descumprindo os termos de aceite com os quais os municípios se comprometeram ao começar a oferecer o serviço. O município concordou em oferecer aquele serviço por um valor determinado", diz Lauande.

"O que nós vamos fazer? Fechar as unidades? Demitir os servidores? O impacto está sendo enorme na assistência social do Brasil", diz.

"Ontem (dia 2 de março) fomos surpreendidos (com as parcelas pagas a menor). Até então, a gente ainda acreditava que o governo fosse fazer o pagamento integral e depois tentar conseguir mais recursos", diz ela.

Lauande, que é secretária de assistência social da prefeitura de São Luís (MA), dá um exemplo do impacto em sua cidade. O município mantém um abrigo para pessoas com deficiência, chamado Residência Inclusiva. O governo federal repassava cerca de R$ 10 mil mensais para ajudar a bancar o serviço — mas a última parcela foi de pouco mais de R$ 5 mil.

"Nós estamos falando de serviços que já estão sendo executados, que já estão em funcionamento; e isso impacta diretamente a vida das pessoas. Vou abrir os abrigos e dizer às pessoas: 'vão para fora, aguardem lá a recomposição do orçamento'?", argumenta.

O Congemas e o Fórum Nacional de Secretários de Estado da Assistência Social (Fonseas) lançaram uma nota conjunta na qual cobram a revogação da portaria e a recomposição do orçamento do Fundo.

O texto diz ainda que os cortes do governo na área foram além do que exige a emenda constitucional do Teto de Gastos — uma mudança aprovada em 2016 e que proibiu o governo de aumentar seus gastos além da inflação.

"Os recursos estão sendo retirados dos demais entes federados e da população, em flagrante descumprimento do pacto federativo. Neste sentido, os gestores têm buscado esforços contínuos pela, ao menos, manutenção da atual rede de serviços na Assistência Social", diz um trecho da nota.

Na resposta enviada à reportagem, o Ministério da Cidadania disse que a portaria não "ignora" ou "desrespeita" as decisões de instâncias como o Conselho Nacional de Assistência Social — o texto apenas busca adequar os repasses à Lei Orçamentária, diz a pasta.

Como funciona o sistema

Patrícia Pinheiro é pesquisadora e professora do departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília (UnB).

Na assistência social brasileira, o atendimento começa pelos CRAS. As equipes que atuam em cada caso costumam ser formadas por um assistente social e um psicólogo, diz ela.

"A porta de entrada são os CRAS, que são os Centros de Referência de Assistência Social. Então, ali é feito o atendimento de baixa complexidade. Ali você identifica qual é a demanda, se é moradia, se teve situação de violência na família", diz.

"Se for um caso mais complexo, a pessoa vai para o CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social). Um caso de violência contra criança ou adolescente, por exemplo, é encaminhado para lá, que então aciona o Conselho Tutelar e toma as outras providências", explica ela.

"Agora, nos casos de vulnerabilidade, de extrema pobreza, quando estão na iminência de entrar em situação de rua, estas pessoas têm de ser cadastradas no CADÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais, do governo federal), para poder acessar os benefícios (como o BPC e o Bolsa Família)", diz a professora.

Embora a política do Sistema Único de Assistência Social tenha sido bem desenhada, diz Pinheiro, há relatos de pessoas que ficam sem atendimento e sem receber os benefícios a que têm direito por causa da insuficiência de trabalhadores para realizar os atendimentos.

"Tenho ex-alunas minhas que são assistentes sociais e estão hoje na gestão destes CRAS e CREAS, com fila de espera de centenas de famílias para os benefícios. São pessoas dentro dos critérios (de programas como o Bolsa Família e o BPC), em situação de risco, e que não são atendidas porque os centros não têm equipe para atender à demanda", diz ela.

Em tempo

Jair Bolsonaro sofreu uma derrota no Congresso na última quarta (11), para alívio dos idosos e pessoas pobres com deficiência. Deputados e senadores derrubaram o veto do presidente ao PL que eleva o limite da renda para a concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Com a mudança, têm direito ao benefício os idosos com mais de 65 anos e pessoas com deficiência que tenham renda familiar per capita menor que meio salário mínimo (R$ 522,50), e não mais o valor atual, que é de um quarto (R$ 261,25).

O governo está em desespero, calculando um impacto de R$ 20 bilhões este ano. “O BPC é o dobro do Bolsa Família. É o maior programa de transferência da renda que tem hoje. (…) Isso inviabiliza todo o Orçamento, inviabiliza inclusive qualquer medida de Orçamento impositivo. Termina tudo, evapora tudo” disse Osmar Terra.

O secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, afirmou que o governo vai recorrer ao TCU para que a medida só passe a valer no ano que vem. Na reunião que citamos acima, convocada de emergência por conta da derrubada do vetor, Guedes cravou: “Agora, tem uma coisa que é inescapável: a solução é política. Por exemplo, se nós conturbarmos o ambiente político por um lado, o Congresso reage por outro lado e aprova mais despesas, não são as que nós queremos, derrubamos o teto [de gastos], vamos para a Lei de Responsabilidade Fiscal, o governo trava os recursos. Onde nós vamos parar?”.

Os presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), sinalizaram a líderes governistas no Congresso Nacional que apoiarão o governo federal para impedir que o BPC seja aumentado.


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