25/04/2024 - Edição 540

Poder

O que a imprensa ainda faz no picadeiro do Palácio da Alvorada

Publicado em 06/03/2020 12:00 -

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Jair Bolsonaro demora a aprender a diferença entre jornalismo e entretenimento. Na sua penúltima encenação com a imprensa, o presidente converteu a área defronte da entrada do Alvorada num picadeiro.

Ele se apresentou aos repórteres ao lado de um humorista fantasiado de presidente. Terceirizou ao comediante a tarefa de responder às indagações sobre o resultado pífio do PIB.

Depois, irritou-se com as notícias que informaram que o chefe da nação tratou um flagelo econômico como piada. Eis o que disse Bolsonaro aos repórteres:

"Quando vocês aprenderem a fazer jornalismo, eu converso com vocês. Se vocês sofrem ataque todo dia, o que vocês estão fazendo aqui? O espaço é público, mas o que vocês estão fazendo aqui? O dia que vocês se conscientizarem de que vocês são importantes fazendo matérias verdadeiras, o Brasil muda".

Alguém poderia ter respondido: "Os repórteres comparecem aos portões do Alvorada porque há no trono um presidente sui generis. Quando esse presidente aprender a presidir, os jornalistas não precisarão mais dar as caras no picadeiro. Comparecerão a entrevistas organizadas, no auditório do Planalto. No dia em que um Bolsonaro improvável se conscientizar da importância de prestar contas educadamente das ações do seu governo, o Brasil muda."

Hoje, o que há no Planalto é um presidente que trata repórteres na base do pontapé sem se dar conta de que ofende não a imprensa, mas a liturgia do cargo que ocupa. Um presidente não é apenas uma pose. É preciso que por trás da faixa presidencial exista uma noção qualquer de responsabilidade.

Como não consegue presidir adequadamente, Bolsonaro parece tentar a sorte em outra carreira, a de humorista. O problema é que, quando um presidente piadista faz troça com um 1,1%, pibinho de piada sobre coisa séria, o humor adquire vida própria, escapa do controle dos profissionais, e se torna negro.

Picadeiro

Se a mídia dá conta de tudo o que diz e faz o presidente Jair Bolsonaro, por que não aproveitar sua mais recente provocação e refletir um pouco a respeito? A provocação está quentinha. Foi feita 24 horas depois do picadeiro montado à saída do Palácio da Alvorada na companhia de um palhaço à sua imagem e semelhança.

Acostumado a insultar, debochar, ameaçar e dar banana para os jornalistas, Bolsonaro desta vez preferiu zombar deles, irritado com o que fora publicado sobre sua performance da véspera:

“Parabéns à imprensa. Fiz piada com o PIB. Parabéns aí! Se vocês sofrem ataque todo dia, o que vocês estão fazendo aqui? O espaço é público, mas o que vocês estão fazendo aqui?”

Deu as costas e foi embora. Mal cumprimentou o grupo de devotos que costuma reunir-se ali, chova ou faça sol, para aclamá-lo com gritos de “Mito” e referendar tudo o que ele faça ou diga.

Originalmente, aquele foi o lugar escolhido por Bolsonaro para tomar seu banho diário de povo antes de ir trabalhar no Palácio da Alvorada, a poucos quilômetros de distância.

Mas logo ele descobriu que como a mídia segue todos os seus passos, aquele poderia ser também o lugar para falar o que quisesse e pautar o noticiário do dia via redes sociais. Espertinho…

Entrevistas formais são um inconveniente para ele. Não só porque o obriga a pensar como a oferecer respostas inteligentes às perguntas, o que não é lá muito o seu forte, convenhamos.

Durou pouco a moda dos cafés da manhã com grupos de jornalistas. Pela mesma razão. E também porque no ambiente formal de um palácio, ele sentia-se inibido em se exibir como é.

O espaço do cercadinho próximo ao portão do Palácio da Alvorada seria o ideal para que ele soltasse seus demônios sem receio. E a depender dele, continuará sendo. A não ser…

A não ser que a mídia, de tão desqualificada por ele como já foi, tome vergonha, encha-se de brios e se recuse a servir de saco de pancada e a jogar um jogo que só Bolsonaro ganha.

Menos pancadaria sem revide. Menos espetáculos circenses. Menos Voz do Brasil em edição exclusiva, reservada unicamente ao Poder Executivo. Menos promiscuidade.

Se na ausência da mídia, Bolsonaro anunciar aos devotos algo que preste, seus assessores se apressarão em divulgar nas redes. E todos serão informados em tempo real. Não faltarão imagens.

Dá-se por certo entre nós que tudo o que o presidente diz ou faz é notícia. E, portanto, de interesse público.  Não é assim. Interesse público é coisa bem distinta de interesse do público.

Uma coisa é jornalismo. Outra, diversão. Vai longe o tempo em que se dizia que o jornalismo não foi inventado para divertir, mas para informar e fazer pensar. Não precisava ser mal humorado.

As redes sociais misturam tudo – e o jornalismo, atropelado por crises de toda ordem, a mais grave delas a de confiança, segue a reboque na tentativa de sobreviver.

É preciso privatizar o noticiário, cada vez mais dependente de fontes oficiais. Em nome de “ouvir o outro lado”, muitas vezes apenas transferimos nossas dúvidas para o leitor.

O outro lado deve ser ouvido, não só porque tem esse direito como porque ajuda a firmar convicções, mas isso não nos dispensa de dizer o que aconteceu, e por quê, da maneira mais clara possível.

Presidente da República não pode agredir a mídia impunemente como faz “o mal militar” que Bolsonaro foi um dia, segundo o testemunho do general-presidente Ernesto Geisel.

Mídia que não seja de República de bananas não pode deixar-se agredir para reclamar depois por meio de editoriais indignados. Pode até parecer heroico. No mais das vezes é inútil.

Quando candidato a presidente, Trump mereceu uma atenção especial da mídia americana por que o que ele dizia era polêmico, ajudava a aumentar a audiência dos veículos.

Ela permitiu-se ser usada por ele, e ele por ela. Uma vez, quando Trump mandou um jornalista calar a boca na Casa Branca, o jornalista não calou. Seus colegas foram solidários a ele.

Parte dos jornalistas abandonou a entrevista. Trump pelo menos aprendeu a não insultar jornalistas ao vivo. Continua insultando-os, e às suas empresas, nas redes sociais. E processando-as.

Trump não é o melhor exemplo, a não ser para Bolsonaro. Melhor exemplo para a mídia brasileira é o que ela mesma produziu no passado quando então só se chamava imprensa.

Em 1984, os fotógrafos credenciados no Palácio do Planalto, diante da proibição de fotografarem o general-presidente João Figueiredo em seu gabinete, reagiram sem meio termo.

Depuseram suas máquinas e recusaram-se a fotografá-lo na cerimônia de descida da rampa do Palácio do Planalto. Um deles registrou o protesto. A proibição foi revogada no dia seguinte.

Confrontados, anteontem, com a aparição do palhaço-presidente, os jornalistas escalados para a cobertura do picadeiro do Alvorada não lhe dirigiram um só pergunta. Não teria cabimento.

Instigados pelo presidente-palhaço a perguntar sobre o PIB ao seu novo companheiro de espetáculos, os jornalistas calaram e parte deles foi embora. É um bom começo, embora com atraso.

Cartilha

Sabe o que significa a reedição pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos da cartilha com normas internacionais para a condução das relações entre autoridades, a imprensa e a sociedade? Nada. Ou pouca coisa.

Imagine se um presidente da República que ataca a imprensa, que dá banana para jornalistas, que faz insinuações sexuais contra repórteres, que ameaça sufocar veículos de comunicação, imagine só se ele mudará de comportamento de uma hora para outra…

Bolsonaro deveria ser obrigado a decorar cada parágrafo da cartilha, embora confesse que não gosta de ler, que sequer leu o livro que mantém na cabeceira de sua cama com as memórias do coronel torturador Brilhante Ulstra, a quem tanto exalta.

Livro contém muitas páginas. E as páginas, muitas letrinhas. Bolsonaro queixou-se disso. Sugeriu que os livros fossem mais ilustrados. Como os destinados às crianças, por exemplo. Mas a leitura da cartilha talvez não exigisse tanto esforço dele.

A cartilha ensina que autoridades precisam realizar discursos públicos “que contribuam para prevenir a violência contra jornalistas” e têm “a obrigação de condenar veementemente agressões contra jornalistas”.

Orienta servidores do Estado a não adotarem “discursos públicos que exponham jornalistas a maior risco de violência ou aumentem sua vulnerabilidade”. E destaca a necessidade de atualização de estatísticas sobre crimes contra a imprensa.

Considera “essencial” que autoridades façam reconhecimentos públicos e explícitos sobre “o valor do jornalismo e da comunicação, mesmo em situações em que a informação divulgada possa ser crítica ou inconveniente aos interesses do governo”.

Onde a ministra Damares Alves estava com a cabeça quando decidiu reeditar uma cartilha da época do governo do presidente Michel Temer e que jazia esquecida no fundo de uma gaveta? Foi descuido, distração ou ela quis mandar um recado a Bolsonaro?

No primeiro ano de governo dele, os ataques contra comunicadores cresceram 54% no país. E sabe quem foi responsável por 58% desses ataques? Sim, foi ele, segundo levantamento da Fundação Nacional dos Jornalistas.

No penúltimo deles, Bolsonaro atacou a honra da jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo. No mais recente, disse que se reunirá com empresários para convencê-los a não anunciarem em jornais e revistas que desagradem ao governo.

Na melhor das hipóteses, Damares arrisca-se a ser desautorizada por seu chefe. A cartilha pode ser vista por ele como um desacato. Na pior… Nunca se sabe. Toda a força à ministra. Que Jesus, do alto de uma goiabeira ou de onde estiver, que a proteja. Amém.

O presidente Jair Bolsonaro será denunciado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA por violar a liberdade de expressão e atacar jornalistas

Denúncia

Nesta sexta-feira (6) – três dias depois de publicar a “cartilha” – o presidente Jair Bolsonaro foi denunciado por casos de censura, ataques a jornalistas e a veículos de comunicação em audiência ordinária da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH-OEA).

Coincidência?! Claro que não. O governo Bolsonaro tenta limpar sua barra. Mas não vai colar. A prática é o critério da verdade. Seria irônico, se não fosse trágico. Na verdade, é mais que trágico. É desrespeito à sociedade, particularmente aos jornalistas. A cartilha, publicada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, cumpre recomendação da própria CIDH, de abril de 2016. Ela é resultado do processo que correu por ocasião do assassinato do jornalista Aristeu Guida da Silva, em 1995. Ou seja, desde abril de 2016 o Estado brasileiro deveria ter publicado a cartilha, mas não o fez.

Por que agora? Porque o governo precisa dar alguma resposta, ainda que vazia e mentirosa, que reduza os danos à sua imagem pelos ataques sistemáticos a jornalistas e veículos de comunicação.

Porque o relatório divulgado recentemente pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) revelou o tamanho da violência contra comunicadores, praticada pelo presidente da República. Só em 2019, a Fenaj compilou 121 agressões de Bolsonaro contra jornalistas.

A cartilha, como o próprio Ministério divulgou em release, foi elaborada pela Assessoria Especial de Assuntos Internacionais do Ministério. Não é de se estranhar. Por se tratar de audiência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o órgão do Estado brasileiro notificado é exatamente o responsável pelo tema. Damares e sua equipe, provavelmente, foram notificados no último dia de janeiro, ou no início de fevereiro, de que a audiência ocorreria.

O objetivo da cartilha é publicar algo que “limpe a barra” do governo perante a CIDH-OEA na audiência. Além disso, pautar a mídia hegemônica para reduzir os dados da violência contra jornalistas e mostrar que o governo está preocupado com a liberdade de imprensa – como, aliás, noticiou o Jornal Nacional do último dia 3.

O JN comeu a isca. O alívio com que Willian Bonner abriu a matéria parecia até que, em nome da Globo, quisesse dizer: obrigado presidente, por nos ajudar a dar uma notícia positiva sobre o seu governo.

Ou seja, enquanto o presidente:

– manda bananas aos jornalistas e ataca a imprensa;

– mostra seu machismo ao escolher a dedo mulheres que atuam na profissão – como Patrícia Campos Mello e Vera Magalhães – para serem alvo do ódio e de achincalhe público, que levam até a ameaças de morte;

– maneja recursos publicitários do governo para abonar a mídia bolsonarista amiga e estancar recursos de veículos mais críticos, um ministério publica uma cartilha, parecendo estar tudo bem.

Não está nada bem.

A cartilha publicada pelo ministério da Damares compila várias passagens de convenções e declarações do sistema internacional de direitos humanos sobre liberdade de expressão, defesa dos direitos humanos de jornalistas e comunicadores e lista recomendações e padrões de conduta para que estados democráticos desenvolvam um ambiente de pluralidade, diversidade e proteção da imprensa livre.

Só que nenhuma linha do que está na tal cartilha é considerada, de fato, pelo presidente e seus apoiadores. O conteúdo dela é letra morta.

Além disso, os dados sobre violência contra jornalistas e comunicadores no Brasil estão desatualizados. O levantamento mais recente é de 2019, da Fenaj, e dados da cartilha são de 2014.

Não há qualquer referência à explosão dos casos de censura e de ataques contra jornalistas e veículos de comunicação promovidos pelo atual presidente da República – que assina em letras garrafais o expediente da cartilha.

Tampouco fala dos inúmeros casos de processos judiciais movidos pelo presidente, seus filhos e ministros para tentar calar jornalistas e jornais.

Muito menos aborda a total ausência de compromisso do governo Bolsonaro com a informação factualmente correta, com o respeito à imprensa livre, com a transparência das ações do governo para garantir o pleno direito à informação da sociedade.

A cartilha do governo Bolsonaro é uma cortina de fumaça. Mas como já disse um pensador odiado pelo bolsonarismo, a prática é o critério da verdade.

Não basta publicar numa cartilha. É preciso “realizar discursos públicos que contribuam para prevenir a violência contra jornalistas e outros comunicadores e comunicadoras”.

A prática do presidente e do governo é radicalmente oposta: insuflar a violência.

Basta ler uma linha da cartilha para se perceber o abismo entre o que está escrito e o que infelizmente estamos vivendo no Brasil.

Não tem cartilha que mude este terrível cenário que o Brasil vive.


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