29/03/2024 - Edição 540

Poder

Presidente achincalha a democracia

Publicado em 28/02/2020 12:00 -

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Entidades da sociedade civil, movimentos sociais e partidos políticos convocaram atos por todo o País contra as manifestações autoritárias do presidente Jair Bolsonaro e em defesa da democracia. O tema será “Ditadura Nunca Mais” e a ideia é concentrar as mobilizações no dia 18 de março. O calendário e o mote foram decididos em reuniões entre as nove centrais sindicais e as frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, que reúnem centenas de movimentos sociais. 

Os grupos vão apoiar e levar o tema da defesa da democracia às manifestações pré-agendadas dos dias 8 (Dia Internacional da Mulher) e 14 (aniversário do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes), mas o foco será no dia 18, para quando já estavam previstos atos em defesa da educação e dos serviços públicos. 

Em outra frente, a oposição aposta na inclusão de entidades representativas da sociedade civil como Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Associação Brasileira de Imprensa (ABI) que devem se reunir com representantes de partidos de esquerda (PT, PDT, PSB, PC do B e PSOL) na terça-feira, 3, em Brasília. 

Mais amplo do que as articulações de esquerda, o fórum Direitos Já, que reúne representantes de 16 partidos – vários deles de centro e centro-direita – vai se reunir um dia depois dos atos pró-Bolsonaro para avaliar a situação. Por enquanto o Direitos Já, que tem entre seus incentivadores o governador do Maranhão, Flavio Dino, tem um evento marcado para o dia 30, em São Luís

“Vamos realizar um diálogo com as entidades da sociedade e partidos para avaliar os próximos passos diante da atitude do presidente de jogar a população contra o Congresso”, disse o coordenador do Direitos Já, o sociólogo Fernando Guimarães. 

Mentiras

Que o presidente Jair Bolsonaro fala o que lhe dá na telha, sem qualquer compromisso com os fatos, com a lógica, com a língua, com a moral, com a boa educação, com os bons costumes… Bem, não há nisso grande novidade. Optar, no entanto, pela mentira mais descarada — que só pode mesmo mobilizar a súcia de idiotas que o aplaudem por princípio —, bem, aí já é de lascar e só contribui para desmoralizar o país, assustar investidores e atrair o apoio de pistoleiros disfarçados de empreendedores destes novos tempos…

Tanto na entrevista que concedeu na última quinta (27) às portas do Palácio da Alvorada como na malfadada "live" do mesmo dia, Bolsonaro voltou a atacar a jornalista Vera Magalhães, do Estadão — chegou a cobrar dela que tenha "vergonha na cara" —, e apelou a duas mentiras grotescas.

Segundo o presidente, Vera teria afirmado que ele próprio gravou vídeos convocando para os protestos do dia 15. Isso nunca aconteceu. A informação, correta e confirmada, tornada pública pela jornalista dava conta de que o presidente havia passado adiante, via WhatsApp, vídeos que faziam a convocação para os atos.

E, como ele mesmo admite, fez isso.

Mas achou que uma mentira era coisa pouca. Sabem como é esse negócio de vergonha na cara — ou da falta dela. Então veio a outra. Segundo o presidente, os vídeos se referem a 15 de março de… 2015.

Ameaça à democracia

O presidente Bolsonaro compartilhar vídeos de uma manifestação com o objetivo de atacar um dos poderes é gravíssimo. Tentar reduzir o peso do fato é uma forma de colaborar com o avanço cada vez mais perigoso do atual governo contra as bases da democracia. Um vídeo é pior do que o outro, mas as mensagens são inequívocas, a ideia é acuar o Congresso. Todo o problema da execução do Orçamento foi criado pelo próprio governo quando fechou um acordo inaplicável de que partes das despesas dos ministérios passariam pelo Congresso. E esse acordo pode ser desfeito, mas em vez disso o presidente prefere radicalizar.

A quarta-feira de cinzas já teria sido difícil no mercado financeiro, portanto, a forte queda do dia seguinte estava dentro do previsto. Como os preços das ações caíram muito nos dias em que a bolsa brasileira ficou fechada, haveria uma correção. O problema não é essa queda, que chegou a 7%. A economia é ameaçada por uma pandemia, mas internamente o risco maior que o Brasil corre é provocado pelo comportamento insano do presidente da República.

No ano passado, muitos de forma condescendente explicaram o evento de o presidente compartilhar em rede social uma cena grotesca como fruto da sua inexperiência no cargo. Ele não saberia, disseram algumas pessoas, o peso do compartilhamento feito pelo próprio presidente. Mas a essa altura não há mais autoengano possível. Ele sabe o que faz, quer acuar o Congresso, não conhece os limites impostos pelo regime democrático ao exercício do poder do Executivo, quer manipular a ideia de que está sendo impedido de governar pelos políticos e pelo Supremo.

Todo mundo sabe que existe dentro do Palácio do Planalto uma fábrica de fake news e de vídeos que ameaçam os que eles elegem como “inimigos”. As peças que Bolsonaro compartilhou nasceram da sua rede, controlada por filhos e asseclas. Todo mundo entendeu que ele traz os militares para perto dele, inclusive os da ativa, como manobra dissuasória contra qualquer reação ao seu desgoverno.

O que fica difícil de entender é o motivo de as Forças Armadas se deixarem usar dessa maneira, inclusive diante de sinais que para os próprios militares são perigosos, como a conivência com os motins de policiais. Quebra de hierarquia sempre foi considerada o maior dos riscos para os comandantes em qualquer época. Quem aceita motim na Polícia Militar, o que fará quando esse comportamento chegar às suas tropas?

Os últimos acontecimentos não deixam dúvidas: Bolsonaro está rompendo todos os limites institucionais. O presidente atacou uma jornalista de forma torpe para tentar desmoralizar a imprensa como um todo. Com a eclosão dos movimentos das polícias nos estados, os Bolsonaros deixaram claro, por suas omissões e meias palavras, que acham natural que pessoas armadas descumpram a Constituição. O ministro da Justiça, Sergio Moro, subestimou a gravidade do que ocorria no Ceará. O general Augusto Heleno soltou imprecações contra o Congresso. Isso foi transformado em vídeo apelativo que exalta o presidente, usa o hino nacional, a imagem do Exército para estimular uma manifestação contra o Congresso e os “inimigos” daquele que “quase morreu por nós”. Por fim, Bolsonaro dispara essas peças através de uma rede mais difícil de fiscalizar.

“Dias atrás eu conversava com um ministro do governo Bolsonaro e ouvi a seguinte frase: ‘mas ele nunca falou de fechar o Congresso’. E usava o argumento como quem diz: ‘viu como ele é um democrata’. Ora, ora. Os tempos mudaram, a maneira como se fala isso é diferente da última vez que o Congresso foi fechado por militares, em 1977. Agora, acua-se através das redes sociais e de manifestações”, afirma a jornalista Miruam Leitão.

Foram atos oficiais convocados pelo coronel Hugo Cháves que encurralaram as instituições na Venezuela. Ele também lembrava a todo o momento sua patente, apesar de já ter saído do Exército. O presidente lembra a todo o momento que é um capitão. Ele saiu do Exército por mau comportamento, há 32 anos. Contando o período de estudante, passou apenas 15 anos lá. Bolsonaro compensa sua frustração militar, de não ter feito uma carreira da qual se orgulhar, alimentando o delírio de que comanda as Forças Armadas em uma guerra. E quem é o inimigo? A imprensa, o Congresso, o Supremo. A democracia.

Reação é urgente

"O Congresso Nacional tem sido tímido nas reações a ataques do presidente da República, mas não é mais possível adiar uma ação enérgica do parlamento em defesa da democracia. Se o Congresso não reagir agora a Bolsonaro, será tarde demais mais para frente."

A avaliação foi feita por Alessandro Molon (PSB-RJ), líder da oposição na Câmara dos Deputados, após Jair Bolsonaro ter encaminhado a amigos vídeos que convocam a população para ir às ruas defendê-lo. A Folha de S.Paulo confirmou o envio com o ex-deputado federal Alberto Fraga, próximo ao presidente. A informação sobre esses envios foi trazida, inicialmente, por Vera Magalhães, de O Estado de S.Paulo.

A convocação para as manifestações de apoio ao governo, marcadas para 15 de março (data do quinto aniversário do primeiro grande protesto pelo impeachment de Dilma Rousseff), traz pautas como o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal e a cassação ou prisão de suas lideranças. Ambos os poderes têm servido como freios e contrapesos a ações radicais e inconstitucionais de Bolsonaro.

Militantes pró-governo agitam a bandeira do "foda-se" hasteada pelo ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno – que pediu ao presidente manifestações de rua contra o que ele chamou de tentativa do Poder Legislativo de "chantagear" o Executivo.

"É um comportamento reiterado, não é a primeira vez. O ministro do GSI disse que era necessário colocar o povo na rua contra o parlamento. Depois, isso partiu do próprio presidente", afirma Molon.

Bolsonaro vem, sucessivamente, testando seus limites e a capacidade de resposta das instituições e da sociedade. Por exemplo, no dia 28 de outubro do ano passado, um vídeo postado nas redes sociais do presidente o comparou a um leão acossado cercado de hienas (animais carniceiros e que comem cocô), causando repúdio. Elas representavam o STF, os partidos políticos, os advogados da OAB, os bispos católicos da CNBB, a imprensa, entre outros. O leão era salvo por um outro, identificado como "conservador patriota" e, depois, trocavam afagos.

Ministros do Supremo reagiram com irritação. No dia seguinte, Bolsonaro pediu desculpas, afirmando que o vídeo foi publicado por terceiros. Seu filho, Carlos Bolsonaro, retrucou – segundo ele, havia sido o próprio presidente. Como consequência, um grupo de manifestantes cercou o carro do ministro Dias Toffoli, dois dias depois, bateu na lataria e estendeu uma faixa "Hienas do STF".

Alessandro Molon disse que conversou com lideranças de partidos do centro e da direita, que também consideraram um absurdo o comportamento de Bolsonaro. Segundo ele, mesmo líderes que apoiam a pauta econômica do governo perceberam que chegou-se a um limite. "Não há clima para ignorar o que está acontecendo. Não dá mais para o Congresso passar a mão na cabeça de alguém que ocupa um cargo dessa importância, mas não age à altura", afirma.

A declaração vai ao encontro do que disse o ministro do STF Celso de Mello. À coluna de Monica Bergamo, na Folha de S.Paulo, afirmou que isso mostra "a face sombria de um presidente da República que desconhece o valor da ordem constitucional, que ignora o sentido fundamental da separação de Poderes, que demonstra uma visão indigna de quem não está à altura do altíssimo cargo".

O líder da oposição solicitou ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e ao presidente do Senado Federal, Davi Alcolumbre (DEM-AP), uma reunião dos colégios de líderes para dar uma resposta a Bolsonaro.

"É preciso avaliar com o conjunto das forças democráticas no Congresso Nacional. É algo muito grave uma denúncia de que o presidente tenha convocado para um ato cujo mote é atacar os poderes Legislativo e Judiciário", analisa. "Quem deseja um modelo sem esses dois poderes independentes quer uma ditadura."

Em resposta às críticas de que usou seu celular para encaminhar vídeos chamando para a manifestação, Bolsonaro postou, na manhã do último dia 26, uma mensagem dizendo que tem 35 milhões de seguidores em suas redes sociais, mas no WhatsApp conta com "algumas poucas dezenas de amigos onde, de forma reservada, trocamos mensagens de cunho pessoal". Afirmou que "qualquer ilação fora desse contexto são tentativas rasteiras de tumultuar a República".

Mas não negou que tenha compartilhado o material.

O artigo 85 da Constituição Federal aponta que são crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que atentem contra a Constituição e, especialmente, contra "o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da federação" (inciso II).

Desprezo pelas instituições democráticas

"Por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos… e se isso acontecer. Só vejo todo dia a roda girando em torno do próprio eixo e os que sempre nos dominaram continuam nos dominando de jeitos diferentes!" A declaração de Carlos Bolsonaro, postada em seu Twitter, em setembro do ano passado, foi prontamente rechaçada por políticos de vários matizes ideológicos e pela OAB.

Essa e tantas outras declarações do clã Bolsonaro, como a de seu outro filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, defendendo um novo AI-5, não causariam tanto arrepio se o governo de seu pai não tivesse comportamentos autoritários e manifestasse desprezo por instituições democráticas.

Para Paulo Arantes, um dos mais importantes pensadores brasileiros, que formou décadas de filósofos na Universidade de São Paulo, em conversa com este blog no final do ano passado, no limite, Bolsonaro vai tornar as instituições flexíveis às necessidades de acúmulo de seu poder. E já teria feito isso com a Receita Federal, o Coaf, a Procuradoria-geral da República, a Polícia Federal.

Questionado se o presidente odeia a democracia, Arantes cravou: "Odiar a democracia pressupõe que ele tem um conhecimento a respeito da natureza intrínseca daquilo que está enfrentando. Ele não está nem aí, isso não existe para ele. Para ele, isso é alguma idiossincrasia vocabular de jornalista, mais nada".

Entre os Bolsonaro, o desprezo pelas instituições democráticas parece ser coisa de família. "Se houvesse uma bomba H no Congresso, você realmente acha que o povo choraria?", perguntou um dos filhos do presidente, Eduardo, recentemente em seu Twitter. O mesmo Eduardo Bolsonaro já tinha declarado, em 2018, que "se quiser fechar o STF […] manda um soldado e um cabo."

Vale lembrar: faz parte do repertório dos populistas acusar as instituições democráticas de não os deixarem governar plenamente. Todos fazem isso para enfraquecer o sistema democrático que os fez ser governo. Geralmente é um pretexto para acabar com o sistema democrático de "pesos e contrapesos", criado para equilibrar os poderes e essencial para o pleno funcionamento das instituições democráticas. Coisas que os populistas não querem.

A atuação do presidente tem resultado em críticas, principalmente do próprio STF, alvo das manifestações dos bolsonaristas. Celso de Mello, decano do tribunal, afirmou: "O presidente da República, qualquer que ele seja, embora possa muito, não pode tudo, pois lhe é vedado, sob pena de incidir em crime de responsabilidade, transgredir a supremacia político-jurídica da Constituição e das leis da República."

Ele está se referindo ao artigo 85 da Constituição, que diz que "são crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: […] o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação”.

Agora soam os alarmes. O STF, como também o Congresso, perderam uma ótima oportunidade para mostrar que há linhas vermelhas que ninguém pode cruzar no sistema democrático. Foi no dia 17 de abril de 2016, na votação pela abertura do impeachment de Dilma Rousseff, que o então deputado Jair Bolsonaro declarou: "Em memória do coronel Brilhante Ustra, o meu voto é sim."

Ninguém quis punir Bolsonaro, naquela época, por ter atravessado a linha vermelha que separa a barbárie da civilização. Não punir tal ato foi o sinal claro de que tudo é permitido. Assim, abriu-se o precedente para denegrir a democracia brasileira e suas instituições. Ao mesmo tempo, a transgressão do dia 17 de abril de 2016 deu início à candidatura presidencial de Bolsonaro.

Ao não defenderem a honra da presidente Dilma Rousseff e, ao mesmo tempo, da democracia brasileira, o Congresso e o STF plantaram a semente. Desde então, estão colhendo o que plantaram. E no próximo dia 15, a colheita deverá ser grande.


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