25/04/2024 - Edição 540

Brasil

ONU inclui Brasil em lista de países com ‘retrocessos significativos’ nos direitos humanos

Publicado em 27/02/2020 12:00 -

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Em seu discurso anual que faz um balanço sobre a situação dos direitos humanos no mundo, a alta comissária das Nações Unidos para Direitos Humanos, a ex-presidente chilena Michelle Bachelet, listou o Brasil entre os aproximadamente 30 locais em que o assunto levanta preocupações mais urgentes. Segundo Bachelet, ataques contra defensores dos direitos humanos no país indicam retrocessos "significativos" em políticas públicas de proteção do meio ambiente e dos indígenas e esforços para deslegitimar o trabalho da sociedade civil e de movimentos sociais.

“No Brasil, ataques contra defensores dos direitos humanos, incluindo assassinatos — muitos dos quais de líderes indígenas  — estão ocorrendo em um contexto de retrocessos significativos em políticas de proteção do meio ambiente e dos direitos de pessoas indígenas. Há ainda um aumento da tomada de terras de afrodescendentes e indígenas, além de esforços para deslegitimar o trabalho da sociedade civil e de movimentos sociais", disse Bachelet.

As preocupações, segundo o jornalista do Uol, Jamir Chade, já teriam sido expostas à ministra Damares Alves, responsável pela pasta da Família, Mulher e Direitos Humanos, que esteve em Genebra nesta semana. Consultado sobre o teor do discurso de Bachelet, o Itamaraty ainda não respondeu.

Segundo Camila Asano, coordenadora de programas da ONG Conectas Diretos Humanos, a inclusão do Brasil na lista de preocupações prioritárias da ONU "só deteriora" a imagem do país:

“O governo brasileiro, desde o ano passado, vem se alinhando a países que usam seu assento na ONU para minar resoluções do Conselho de Direitos Humanos que visavam a proteção de minorias. Não é à toa que Bachelet chama atenção para o desmonte das políticas de proteção do meio ambiente e dos povos indígenas”, disse Asano, citando o projeto de lei que autoriza mineração e garimpo em terras indígenas. “Como a alta comissária disse hoje em Genebra, é preciso atentar aos esforços em curso para deslegitimar o trabalho da sociedade civil e dos movimentos sociais”.

Críticas anteriores

Em setembro, Bachelet — presa e torturada sob a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) — já havia comentando a situação dos direitos humanos no Brasil. Na ocasião, ela disse que havia um "encolhimento do espaço cívico e democrático" no país, criticando a atitude do governo de Jair Bolsonaro de celebrar o golpe militar de 1964. Segundo a alta comissária, a "negação dos crimes do Estado" poderia gerar um "enraizamento da impunidade e reforçar a mensagem de que agentes do Estado estão acima da lei e na prática podem matar sem prestar contas". 

Em resposta, Bolsonaro atacou Bachelet, afirmando que ela estava se “intrometendo nos assuntos internos e na soberania brasileira”. O presidente também insultou o pai da alta comissária, o general de brigada da Força Aérea chilena Alberto Bachelet Martínez, oficial legalista que se opôs ao golpe chileno de 1973. Alberto Bachelet foi preso, torturado e morreu na prisão — segundo Bolsonaro, o Chile "só não é uma Cuba graças aos que tiveram a coragem de dar um basta à esquerda em 1973, entre esses comunistas o seu pai brigadeiro à época".

No ano passado, quase 200 organizações sociais e movimentos de defesa dos direitos humanos lançaram um manifesto para que o Brasil não fosse reeleito para o Conselho de Direitos Humanos, acusando o governo de ser "antiuniversalista" e "glorificar atrocidades". Ainda assim, o Brasil foi reeleito para o organismo, conseguindo 153 votos entre os 193 países-membros das Nações Unidas.

Anistia Internacional aponta retrocessos sob Bolsonaro

O Brasil viu o discurso abertamente contrário aos direitos humanos adotado por autoridades no país se traduzir em medidas administrativas e legislativas, com impactos concretos na limitação e na perda de direitos fundamentais da população. É o que aponta o relatório "Direitos Humanos nas Américas: Retrospectiva 2019", da Anistia Internacional, uma das mais importantes organizações de direitos humanos em todo mundo, lançado no último dia 27.

No capítulo sobre o Brasil, a entidade destaca a crise na Amazônia, a violência policial, a perseguição de ativistas, a pressão contra povos indígenas e a impunidade do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, que completa dois anos no próximo dia 14 de março.

"Vimos a emergência de líderes autoritários e intolerantes em toda a região em 2019. Aqueles que deveriam garantir direitos humanos de seus cidadãos foram, na verdade, os violadores desses direitos", afirmou à coluna Jurema Werneck, diretora-executiva do escritório brasileiro da Anistia Internacional.

"Assim também no Brasil: a retórica anti-direitos humanos assumiu altos cargos na República e tenta a todo o instante enfraquecer o que temos como garantia para uma sociedade justa – a Constituição Federal de 1988", completa.

Questionada se, diante dessas condições a democracia está em risco, Werneck diz que, por outro lado, houve muitas pessoas dispostas a lutar pelos seus direitos e com reivindicações justas. "Quando uma pessoa luta e consegue alcançar seu objetivo, toda sociedade é beneficiada. A Anistia Internacional é um movimento que acredita que enquanto houver luta, haverá democracia."

O relatório afirma que autoridades federais brasileiras promoveram decretos, medidas provisórias e projetos de lei que ameaçavam os direitos humanos. Cita, como exemplo, o pacote anticrime, proposto pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, por conta da "definição muito geral e imprecisa" do excludente de ilicitude no caso da legítima defesa, que "poderia ser usada para justificar o uso excessivo de força letal por agentes do Estado". Critica também das ações tomadas pelo governo federal para flexibilizar o acesso a armas de fogo.

Amazônia

O balanço sobre 2019 traz números demonstrando o salto no desmatamento e nas queimadas e afirma que, no final de 2019, não havia políticas públicas efetivas para a sua prevenção, nem para a proteção das populações afetadas – como indígenas e quilombolas. Aponta também que não foram iniciadas investigações independentes ou tomadas medidas abrangentes para responsabilizar os envolvidos nos incêndios.

"Havia indícios de que os incêndios estavam ligados aos interesses do agronegócio e que eles eram usados principalmente para transformar a floresta em pastagem para gado, em alguns casos com o conluio das autoridades. A legislação brasileira continha dispositivos firmes para a proteção dos territórios dos povos indígenas e reservas ambientais. No entanto, o presidente Bolsonaro tentou ativamente minar esses mecanismos de proteção", diz a Anistia.

"Em novembro, o presidente Bolsonaro declarou que esperava que a destruição da maior floresta do mundo continuasse, em referência à promessa de sua campanha presidencial de abrir a Amazônia para mais agricultura e mineração. Embora o ministro do Meio Ambiente tenha dito que o governo esperava reduzir o desmatamento ilegal em 2020, ele não estabeleceu nenhum objetivo específico."

Povos Indígenas

O governo Jair Bolsonaro não cumpriu sua obrigação de proteger os povos indígenas e adotou medidas que aumentaram os riscos que eles enfrentavam na avaliação da Anistia Internacional. Cita, como exemplos, a retirada de poderes da Funai e declarações do próprio mandatário para desacreditar o Ibama.

"Os povos indígenas e comunidades afrodescendentes estavam sob crescente pressão pela ocupação ilegal de terras perpetradas por madeireiros e outros interesses comerciais. A supervisão do governo dessas comunidades isoladas foi reduzida e, em alguns casos, nula. Além disso, líderes comunitários e defensores de direitos humanos receberam ameaças e ataques", diz o relatório.

Usa como exemplo, os povos indígenas Karipuna e Uru-eu-wau-wau, em Rondônia, e o povo Arara no Pará, que denunciaram confiscos ilegais de suas terras ancestrais, mas não receberam resposta apropriada do governo federal.

O relatório também cita o caso do líder indígena Paulino Guajajara, um dos membros dos Guardiões da Floresta, que lutam contra a extração ilegal de madeira, morto em novembro, no Maranhão.

"O governo brasileiro não adotou medidas eficazes para garantir a justiça por esses assassinatos e continuou a criminalizar os defensores dos direitos humanos (especialmente aqueles que trabalhavam em questões relacionadas ao meio ambiente, terra e território), o que gerou uma clima de medo e fez do Brasil um lugar ainda mais perigoso para defender esses direitos."

Polícia e Forças de Segurança

Para a Anistia, as autoridades federais e estaduais adotaram um discurso que alimentou uma crescente violência contra a população, em geral, e aos defensores dos direitos humanos, em particular.

Destaca que o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, fez declarações e realizou ações relativas à chamada "guerra às drogas" como pretexto para conduzir intervenções policiais militarizadas caracterizadas por altos níveis de violência policial, crimes de direito internacional e violações de direitos humanos.

E traz dados que demonstram o aumento da letalidade policial no Estado, lembrando também as mortes dos agentes públicos de segurança.

Defensores e defensoras de Direitos Humanos

O relatório afirma que Bolsonaro, desde a campanha eleitoral critica repetidamente o trabalho de organizações não-governamentais, buscando dificultar suas atividades.

Destaca a acusação feita por ele, de que brigadistas que atuam em Alter do Chão, no Pará, seriam os responsáveis por incendiar a floresta. E uma postagem do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugerindo que o Greenpeace poderia ser responsável pelo derramamento de óleo que afetou o litoral do brasileiro, um dos maiores desastres ambientais de nossa história.

Impunidade

O capítulo brasileiro trata da investigação sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, ressaltando a prisão dos ex-policiais Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, acusados de serem os executores. Cita demanda de relatores da ONU e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para que sejam apontados os mandantes e o motivo das mortes e que todos sejam levados à Justiça, em julgamentos justos.

"Marielle Franco havia apoiado abertamente os direitos de jovens negros, mulheres, pessoas que vivem na pobreza, lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais e vítimas de violência policial no Rio de Janeiro", diz o relatório. "As autoridades rejeitaram as alegações de que a família do presidente Bolsonaro tinha laços com os responsáveis

Também cita o caso de Davi Fiuza, 16 anos, vítima de desaparecimento forçado em Salvador, em 2014, e a falta de solução para o caso.

América Latina

A Anistia afirma que ataques aos defensores de direitos humanos não são exclusividade do Brasil e que a América Latina voltou a ser a região mais perigosa do mundo para essas pessoas atuarem. Destaca os movimentos de protesto que ocorreram em vários países da região e como governos responderam com menos diálogo e mais repressão. Trata de, ao menos, 210 mortes de forma violenta em manifestações em 2019: 83 no Haiti, 47 na Venezuela, 35 na Bolívia, 31 no Chile, oito no Equador e seis em Honduras.

Para a organização, a repressão foi especialmente dura na Venezuela, de Nicolás Maduro. Em sua avaliação, as forças de segurança do país cometeram crimes internacionais e violações graves dos direitos humanos – o que inclui execuções extrajudiciais, detenções arbitrárias e uso de força excessiva, que podem constituir crimes contra a humanidade.

E, no Chile, o governo de Sebastián Piñera feriu manifestantes intencionalmente para desencorajar protestos.

Também lembra como é difícil ser jornalista por aqui, citando os – pelo menos – dez profissionais de imprensa mortos no México.

Migrantes e refugiados

O relatório fala de quase 4,8 milhões de homens, mulheres e crianças que fugiram da crise na Venezuela nos últimos anos – e das restrições impostas pelo Peru, Equador e Chile para esses refugiados.

E critica os Estados Unidos por usarem indevidamente o sistema de Justiça a fim de assediar defensores de direitos dos migrantes, além da detenção ilegal de crianças e de novas políticas para dificultar o direito de asilo. Culpa nominalmente a administração Donald Trump por colocar pessoas em perigo, obrigando a voltarem a lugares dos quais fugiram por risco de morte.

E lista programas sigilosos de deportação rápida nos EUA, a retirada de assistência jurídica a migrantes de refugiados e a pressão para que países da América Central assinem acordos para devolver pessoas que solicitam asilo para o local de onde saíram para não morrer.

Bolsonaro cumpre promessa de campanha e devolve Brasil a 1968

Chocado com o comportamento inapropriado, grotesco, violento e inconstitucional do presidente da República? Pois não deveria. Ele está apenas cumprindo suas promessas de campanha. Primeiro, Bolsonaro – surpreendentemente – não mentiu. Não neste caso.

O ocupante do Palácio do Planalto pode ser acusado de muitas coisas, de passar pano para miliciano até empregar funcionária fantasma em seu gabinete quando deputado, menos ter escondido suas reais intenções desde o início. Na campanha eleitoral, deixou claro que seu objetivo é fazer "o Brasil semelhante àquele que tínhamos há 40, 50 anos". Ou seja, na época da liberdade cerceada, dos direitos subtraídos, do Estado (mais) autoritário.

Segundo, porque muita gente, da direita à esquerda, cansou de avisar que ele não estava sendo apenas fanfarrão ao homenagear um dos maiores carniceiros da ditadura militar, o lamentável Brilhante Ustra, no plenário da Câmara dos Deputados. Não estava apenas fazendo piadas do tipo "Tio do Pavê" com seus comportamentos racistas contra indígenas e quilombolas. Não estava sendo mal compreendido quando disse que uma deputada era "muito feia" e por isso não merecia ser estuprada. Não estava tendo suas palavras adulteradas ao pregar, dia após dia, a violência como solução.

Pouco antes do segundo turno, anunciou "uma limpeza nunca vista na história desse Brasil" após eleito, prometendo banimento no melhor estilo "Brasil: ame-o ou deixe-o". E não podia estar sendo mais sincero. Como escrevi aqui naquele 21 de outubro, sua vitória iria abrir a temporada de caça a adversários políticos e ideológicos e ao jornalismo crítico e investigativo no país – o que, de fato, ocorreu.

As declarações sobre a "limpeza" dos adversários foram dadas logo após a repercussão de um vídeo em que Eduardo Bolsonaro, o deputado federal mais votado nas últimas eleições e filho do presidente, afirmou que "para fechar o STF basta um cabo e um soldado". Um ano depois, o mesmo Eduardo voltaria a chocar pela defesa de um novo AI-5 (o ato da ditadura que autorizou o Palácio do Planalto a fechar o Congresso, cassar mandatos, descer o cacete geral). Foi copiado, inclusive, por Paulo Guedes, o tal ministro da Economia que, segundo os ufanistas, iria trazer o presidente à razão. Na prática, se mostrou muito parecido com o chefe.

Poderíamos passar dias discutindo como ações e declarações de Bolsonaro têm sido usadas, há décadas, para atacar instituições, não sendo, portanto, novidade. E como uma parte da elite econômica do país, mesmo fazendo cara de nojinho, segue ao seu lado devido à promessa das tais reformas. Se a taxa de retorno for de 20%, pouco se importam se, ao final, a democracia for para o buraco.

Toda essa discussão, contudo, seria inútil. Melhor será se, independentemente do nosso posicionamento ideológico, buscarmos formas de garantir o marco civilizatório conquistado após a redemocratização. E protegermos, a todo custo, as instituições que garantem – ainda que de forma falha, imperfeita e insuficiente – os direitos previstos na Constituição Federal de 1988.

Há muito tempo este não é mais um debate entre esquerda e direita, mas entre civilização e barbárie. E a barbárie está avançando, comendo aos poucos as instituições de monitoramento e controle – Coaf, Receita Federal, Polícia Federal, Incra, Funai, Ibama, Procuradoria-geral da República.

No lance mais recente, Bolsonaro enviou para amigos vídeos chamando às manifestações contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional, marcadas para o dia 15 de março. Descoberto, negou o que fez, como sempre, provando toda sua coragem e maturidade. E atacou a jornalista Vera Magalhães, que revelou o conteúdo. Agiu de forma obscena, mas cumpriu sua promessa de campanha, dando à nação ares de dezembro de 1968, quando foi decretado o AI-5.

O presidente vem, através de aproximações sucessivas, testando seus limites e a capacidade de reação das instituições e da sociedade. A maioria das respostas vem na forma de insuficientes notas indignadas ou tuítes de reprovação de outros poderes – que são praticamente uma prova de que Bolsonaro está correto em achar que as instituições são fracas, frágeis, covardes.

Diante dessas respostas, ele culpa terceiros por publicarem em seu nome ou diz que jornalistas mentiram, apesar de todos os fatos provarem o contrário. E nada acontece com ele. Com isso, segue atacando. E atacando. E atacando. E, a cada ataque, sente-se mais à vontade para fazer o que bem entender, tratando a República como o seu playground.

O Brasil merece mais do que um governo que não está nem aí para a Constituição que prometeu defender. Espero que o país perceba isso antes que o presidente, finalmente, termine o serviço para o qual acredita ter sido eleito.


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