18/04/2024 - Edição 540

Brasil

PM colocado por Salles no Ibama atropela norma para legalizar exportações irregulares de madeira

Publicado em 27/02/2020 12:00 -

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O superintendente do Ibama no Pará atropelou normas internas do órgão para liberar cinco cargas de madeira exportadas irregularmente para Estados Unidos, Bélgica e Dinamarca.

Walter Mendes Magalhães Junior é um policial militar paulista aposentado que até outubro passado nunca tivera nenhum contato com a área. Ele beneficiou uma empresa britânica chamada Tradelink ao emitir licenças de exportação retroativas, algo que não está previsto na lei. Dessa forma, legalizou o envio irregular de madeira da Amazônia ao exterior.

Servidores do Ibama que conhecem o assunto e pediram para não serem identificados por temerem represálias disseram ao Intercept que foram surpreendidos pelo procedimento de Magalhães, que desrespeita o regulamento que o órgão deve seguir.

O caso ocorreu no início de fevereiro. As cinco remessas de madeira haviam saído do Brasil um mês antes, mas ficaram retidas em seus destinos por falta da autorização de exportação do Ibama.

No documento que escreveu e assinou para ajudar a Tradelink, Magalhães ainda acena com a possibilidade de estender o quebra-galho a outras empresas. “Informo que esta ação emergencial pode ser adotada a quaisquer empresas que estiverem em contexto semelhante, não se restringindo à empresa em questão”, escreveu, na Informação N° 21/2020, da superintendência do Ibama no Pará.

“Há indícios de que houve a exportação com violação da legislação em vigor. Entendo que houve violação à legislação em vigor. A lei é clara: precisaria das licenças para exportar, o que não ocorreu”, avalia a jurista Melissa Pilotto, professora de Direito Ambiental na Unicuritiba, no Paraná.

Os cinco contêineres enviados ao exterior irregularmente – lâminas de jatobá e ipê, cortadas para serem usadas em pisos, assoalhos e decks – somam quase 110 metros cúbicos e podem acarretar uma multa de R$ 33 mil à empresa. É madeira suficiente para construir 20 casas pequenas de madeira.

Uma norma do Ibama veda expressamente o que o superintendente fez. O documento é claro ao dizer que a exportação dos produtos e subprodutos madeireiros de origem nativa “dependerão de autorização do Ibama no local de exportação”. Dito de outra forma: o aval teria que ter sido dado antes das cargas terem deixado o Brasil.

A legislação ambiental em vigor prevê pena de um a três anos de prisão e multa para o funcionário público que conceder “autorização ou permissão em desacordo com as normas ambientais”. Um decreto que estipula sanções administrativas em caso de desrespeito às normas ambientais prevê multa de R$ 300 para cada metro cúbico exportado “sem licença válida (…) outorgada pela autoridade competente”.

Magalhães é um coronel da reserva que faz parte de grupo de policiais militares alçado a postos de comando do Ibama por Ricardo Salles. Antes de assumir o ministério do Meio Ambiente, Salles foi secretário de Geraldo Alckmin, do PSDB, no governo paulista. Sem qualquer experiência prévia na área, Magalhães recebe salário de mais de R$ 10 mil do Ibama, que acumula com o vencimento vitalício de R$ 20 mil mensais que recebe como policial aposentado.

Presidente do Ibama pode estar envolvido

A Tradelink é uma empresa com sede numa região nobre de Londres cuja filial brasileira fica em Ananindeua, na região de Belém, no Pará. Em 3 de fevereiro, um gerente da filial enviou um ofício ao Ibama reclamando que cinco cargas estavam retidas em portos nos Estados Unidos, Bélgica e Dinamarca. Em seguida, pedia autorização de embarque para os contêineres. Àquela altura, porém, eles já haviam deixado o país mais de um mês antes, em 24 de dezembro de 2019.

No dia seguinte, Magalhães emitiu um comunicado. Nele, disse que a Tradelink havia feito os pedidos de exportação, mas que eles não foram analisados em tempo hábil devido à sobrecarga de demandas no Ibama. Por essa razão, o órgão passaria a emitir certidões atestando que a documentação estava em ordem para liberar os produtos no exterior.

A situação esdrúxula não é acidental. Há alguns meses, mostramos que Ricardo Salles agiu para paralisar Ibama e ICMBio. Uma das estratégias usadas para isso foi nomear para postos chave – como a superintendência do Pará – gente sem nenhuma experiência com meio ambiente. Servidores com quem conversamos confirmam que a paralisia continua.

Mas o caso pode ser ainda mais grave: uma associação de exportadores de madeira diz que Magalhães agiu com autorização do presidente do Ibama, Eduardo Bim. “Soubemos que o superintendente agiu com respaldo do presidente, e, ao nosso ver, de maneira acertada. Se as cargas não fossem regularizadas, seriam incineradas”, disse Murilo Araújo, coordenador jurídico da Associação da Cadeia Produtiva Florestal da Amazônia, a Unifloresta.

Perguntamos ao Ibama a respeito da afirmação dos madeireiros. Também questionamos o instituto a respeito de quais providências serão tomadas em relação a Magalhães e se haverá investigação interna para averiguar se houve irregularidade na autorização concedida à Tradelink.

Em resposta, o órgão afirmou que a emissão das certidões “é válida e está fundamentada em auditagem da documentação referente à carga”, sem indicar a que fundamentação se refere e como ela se sobrepõe ao regulamento que norteia as ações do Ibama. Sobre o possível aval da presidência, o Ibama afirmou apenas que o superintendente do Pará é “autoridade máxima do Instituto no estado”.

Por fim, o instituto alega que “a medida, que tem natureza de autorização corretiva, foi adotada de forma contingencial para sanar casos pontuais”, e que o procedimento será padronizado com uma regulação a ser publicada nas próximas semanas.

Também procuramos Magalhães diretamente para que comentasse o caso. Mas, após explicarmos à secretária dele do que se tratava, ouvimos que ele não iria falar.

Empresa foi multada em 2016

A Tradelink já foi condenada, em 2016, a pagar quase R$ 5 milhões por uma prática semelhante à cometida agora: segundo a justiça, a exportadora fraudou o sistema de controle estadual para fazer com que madeira retirada ilegalmente da floresta parecesse regular. A empresa recorreu da sentença. O juiz federal de segunda instância João Batista Moreira, do Tribunal Regional Federal da 1ª região, em Brasília, é o responsável pelo caso. Ainda não há decisão.

Procuramos a Tradelink diretamente e pedimos um posicionamento, mas a empresa informou que a Associação das Indústrias Exportadoras de Madeira do Pará, a Aimex, falaria em seu nome.

A Aimex citou uma decisão do Ibama que determina que produtos madeireiros de espécies não ameaçadas “não possuem tratamento administrativo para o Ibama (…) podendo ser exportados sem a anuência do Ibama”.

Esta nota, no entanto, foi publicada pelo Ibama só no último dia 17 de fevereiro, após as decisões de Magalhães. Questionada sobre isso, a Aimex argumentou que, do ponto de vista das empresas, essas condições já valiam na prática mesmo antes da nova decisão.

Dias após a Aimex nos responder, o diretor de compliance da Tradelink em Londres, Robbie Weich, procurou o Intercept para apresentar a versão da empresa para os fatos. Ela não é diferente da que nos foi dada pela associação, e incorre no mesmo erro ao afirmar que o Ibama não exigia a autorização de exportação. O que não é verdade: no documento em que decidiu emitir as certidões, o superintendente do Ibama diz que a Tradelink pediu as autorizações, mas o órgão não as apreciou a tempo. Se o Ibama não cobrasse o autorização, não haveria sentido para a Tradelink pedi-las.

Madeireiros culpam a gestão do Ibama e até reconhecem que o caso da Tradelink não é isolado. Segundo a Unifloresta, uma exportação de outra empresa foi retida nos Estados Unidos, semanas antes, pelo mesmo problema: falta de aval do Ibama na saída do Brasil. Após esse episódio, as empresas passaram a pressionar o Ibama, inclusive em Brasília, por mudanças que “agilizem o processo”.

Murilo Araújo, o coordenador jurídico da Unifloresta, absolve a Tradelink. “As empresas protocolam os pedidos, mas o Ibama, no Pará especificamente, deixou de cumprir sua parte a contento. A omissão do Ibama atrapalha a exportação de madeira legal”, argumentou.

No documento em que libera retroativamente as cargas da Tradelink, Magalhães afirma que não havia apreciado os pedidos da empresa em tempo hábil por “número reduzido de servidores, aliado à grande demanda processual e fiscalizatória”.

O Intercept pediu ao Ibama que comentasse a reclamação do superintendente, mas o órgão não respondeu.

Magalhães é mal visto entre servidores do Ibama com quem conversamos – e que pediram para não serem identificados por temerem represálias. Sem passagem pela área ambiental, ele fez carreira na Rota, a tropa de elite da polícia militar paulista, que chegou a comandar. Trata-se da unidade mais violenta da PM de São Paulo.

Em Brasília, o policial chegou a comentar com servidores do Ibama que, além de São Paulo, conhecia apenas o Rio de Janeiro. Ainda assim, foi mandado por Salles para o Pará para comandar umas das unidades mais complicadas do Ibama – o interior do estado é campeão de desmatamento e de assassinatos em conflitos agrários e ambientais. Chegando lá, desambientado, chegou a morar por alguns dias na sede do órgão que iria comandar.

Em pouco tempo, Magalhães ganhou fama de truculento entre os servidores – é comum vê-lo gritar com subalternos. O hábito vem desde os tempos da PM. Ele foi acusado por um subordinado de perseguição, tortura e homofobia. Um processo foi aberto contra o coronel na corregedoria da corporação, mas quem acabou expulso foi o denunciante.

Esse currículo não foi visto como um problema por Salles. Ao contrário: o ministro entregou postos-chave do Ibama e do ICMBio, o outro órgão de fiscalização ambiental do governo federal, a policiais militares como Magalhães, sob o argumento de acabar com o “arcabouço ideológico” na área. O superintendente do Ibama no Pará foi nomeado em outubro passado.


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