25/04/2024 - Edição 540

True Colors

Os desafios para as escolas garantirem os direitos dos estudantes trans

Publicado em 26/02/2020 12:00 - Ana Luiza Basilio – Carta Capital

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O estudante trans Lucas Mateus, 17 anos, conseguiu terminar o terceiro ano do Ensino Médio, em 2019, com o seu nome social incluso nos registros escolares. Na última escola estadual que frequentou em Natal, no Rio Grande do Norte, o adolescente foi acolhido pela gestão escolar e, inclusive, pode usufruir de seu direito de frequentar o banheiro masculino, conforme a sua identidade de gênero. O percurso, no entanto, nem sempre foi fluído.

Ele guarda péssimas lembranças de uma outra escola da rede que frequentou por um ano. Além de empecilhos para o uso de seu nome social – mesmo diante da autorização familiar, por ser menor de idade -, o estudante relata desrespeito da instituição com o uso do banheiro. “A direção da escola me obrigava a usar o banheiro feminino, causando constrangimento a mim e às demais meninas que frequentavam o espaço. Toda vez que eu tentei usar o banheiro masculino, fui expulso”, conta. Lucas também teve que lidar com o despreparo da escola em outras questões cotidianas. “Eles chegaram a me proibir de abraçar minhas amigas. Fomos conduzidos à diretoria pelo episódio e, na presença dos familiares, ouvi que eu era má influência para as garotas. Tudo por eu ser trans”, relata.

Também é negativa a experiência do adolescente trans Fernando, 17 anos, em uma escola particular de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. O estudante teve que ameaçar processar a escola para ter seu nome social aceito na instituição e para driblar a alternativa questionável que a instituição ofereceu para que ele usasse o banheiro. “Eu tinha que sair da escola e ir até a loja do meu pai que ficava em frente ou acessar o quarto andar da escola, onde tinha um banheiro feminino mais reservado e, mesmo assim, tinha que esperar todo mundo sair”, conta.

Nome social: a ponta do iceberg

A possibilidade de travestis e transexuais utilizarem seus nomes sociais nos registros escolares da educação básica é, sem dúvida, um ganho para a população LGBT+. A conquista, no entanto, é apenas a ponta do iceberg quando o assunto é a inclusão efetiva desses estudantes nas redes educacionais.

A permissão para efetuar matrículas na educação básica, em escolas públicas ou privadas, a partir do nome social foi chancelada em 2018 com uma resolução do Ministério da Educação. A possibilidade foi garantida aos estudantes com mais de 18 anos; os menores de idade ficam condicionados à autorização de seus representantes legais.

A medida, no entanto, foi antecedida pelos Estados que, a partir de resoluções próprias, já reconheciam o direito dos estudantes trans se matricularem nas escolas com seus nomes sociais. A Secretaria de Educação do Pará foi a primeira a assentir as matrículas com nomes sociais, em 2009. Com base em dados de 2019, a pasta contabiliza 38 alunos trans matriculados na rede estadual. Na prática, essas legislações deveriam impedir que os alunos encontrassem dificuldades no processo. Mas isso não é uma verdade absoluta.

O Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE) criou, em 2018, a plataforma T, para receber denúncias de estudantes que tivessem o nome social recusado nas matrículas escolares. Segundo o IBTE, em 2018 e 2019 houve, em média, 50 denúncias, a maioria gerada por homens trans. Ainda de acordo com o instituto, os relatos são encaminhados às ouvidorias das secretarias de educação e, geralmente, resolvidos.

A reportagem de CartaCapital levantou junto aos maiores estados do País como está o universo dos estudantes trans na educação básica. São Paulo publicou a sua resolução em 2014 e, desde então, apresenta crescimento no número de estudantes trans matriculados com seus nomes sociais. Em 2015, a rede estadual possuía 182 alunos matriculados; em 2016, 358, um aumento de 96,7%; em 2017, a rede passou a 483 alunos, em 2018, a 504 estudantes, e, em 2019, a 755, com um novo salto de 49%. O Rio Grande do Sul também assente a matrícula de alunos trans com nome social desde 2014, e possui um total de 84 alunos. Segundo a Secretaria de Educação só este ano foram 27 requerimentos. A resolução do Estado da Bahia é de 2013; a pasta, no entanto, não divulgou o número de alunos trans matriculados na rede. O Estado do Amazonas também foi procurado e não respondeu à reportagem.

Ainda assim, há desafios. Uma pesquisa aplicada pelo IBTE em 2019, chamada “As Fronteiras da Educação: A realidade dxs estudantes trans no Brasil” mostra que a transfobia escolar ainda é um ofensor para que alunos transexuais se integrem aos ambientes escolares, provocando a evasão.  O estudo aplicou questionários a 250 estudantes que se identificaram como transexuais ou pessoas não-binárias. A maior parte dos entrevistados, cerca de 160, se encontra na faixa etária dos 19 aos 29 anos; 52 estudantes, na faixa dos 14 aos 18, os mais afetados pela transfobia, segundo a pesquisa.

No dia a dia desses estudantes, a transfobia se manifesta em preconceito, assédio moral e agressão verbal praticados tanto pelos colegas de classe, como professores, gestores escolares e equipes pedagógicas. Além das violências, as vítimas enfrentam dificuldades de aprendizagem no cenário. A negativa ao uso do banheiro ainda é o principal fator de negação de direitos citados pelos estudantes.

Pela mudança de cultura escolar

Para o diretor da Escola Estadual Caetano de Campos, em São Paulo, Thiago Augusto Soares Pereira, a superação dos estigmas sobre os alunos trans passa por uma mudança de cultura escolar. “Isso passa por formar, informar e não transformar em tabu aquilo que é cotidiano aos meus olhos. Se todos os dias eu estou diante de uma pessoa transexual, eu não devo ter medo de chegar perto dela e abordar essa questão e discutir isso. Quanto mais interdições sobre o assunto, mais espaço para o preconceito e proliferação do ódio”, atesta o gestor escolar.

Ele afirma que na unidade prevalece a livre expressão – a escola possui 43 alunos trans matriculados com seus nomes sociais, 2,71% de um universo de 1581 alunos. “Aqui tínhamos professoras evangélicas que se recusavam a chamar os alunos pelo nome social. Eu não vou fazer isso enfrentando-as com a lei, obrigando-as a fazer, ainda que elas sejam, entende? Se estou falando de mudança de cultura é preciso abrir espaço para ouvir essa pessoa, a percepção que ela tem, e fazer disso uma oportunidade para que todos aprendam, não só o aluno, mas também o diretor, o professor, o cantineiro, os auxiliares da limpeza. E claro que há conflitos no meio do caminho, mas nada que uma escuta acolhedora, ativa, não seja capaz de transformar, de originar providências formativas e não punitivas”, esclarece.

A convivência escolar não se dá descolada de debates sobre gênero, identidade de gênero e sexualidade. O diretor garante que os aprendizados extrapolam os currículos escolares – os temas estão presentes na disciplina de Sociologia, no Ensino Médio, e em Ciências, no Ensino Fundamental. “Lidamos com os temas de maneira curricular, mas isso está na vida, porque o meu colega que está ao meu lado é trans, entende? Por exemplo, no grêmio estudantil que é a representação do universo da escola, garantimos proporcionalidade dessas representações. Em sua fundação tem que ter um trans, um imigrante, mulheres. E a partir disso surgem coletivos feministas, trans. Isso permite que os alunos estejam frequentemente articulados e debatendo essas questões. Além de gerar pertencimento à escola, faço com o que é estudado de maneira científica, seja vista na prática com a naturalidade que deve ser vista a vida humana”, assegura.

Para o gestor, as estratégias são fundamentais para que a escola cumpra seu papel social, para além das normas e diretrizes, e oferte práticas educacionais que permitam a inclusão desses estudantes. “Independente de ser trans, refugiado haitiano, imigrante nordestino, os direitos à educação e a garantia de permanência na escola são para todos. A questão que ainda cerca os estudantes trans é que o sistema, com sua mão invisível, cria mecanismos para tirá-los da escola, seja pelo preconceito ou pela não expectativa de futuro que se projeta nessas pessoas, estigmatizando-as, desumanizando-as”, finaliza.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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