29/03/2024 - Edição 540

Poder

Não podendo elevar sua estatura, Bolsonaro rebaixa o teto da Presidência

Publicado em 21/02/2020 12:00 -

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Agindo na posição em que se sente mais confortável, a de meme de grupo de WhatsApp, Jair Bolsonaro repetiu a grotesca violência de cunho sexual contra a repórter Patrícia Campos Mello, do jornal Folha de S.Paulo, no último dia 18, em frente ao Palácio do Alvorada. A agressão já havia sido feita por um depoente na CPMI das Fake News e por seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro.

"Ela queria um furo. Ela queria dar o furo a qualquer preço contra mim", afirmou Bolsonaro.

Ao afirmar – de forma inconcebível para o líder de uma democracia – que uma jornalista ofereceu sexo em troca de informações, ele reforça a percepção de que é incapaz de ocupar a Presidência da República. Apesar de seu comportamento agressivo, egocêntrico, pouco empático e sem remorso demonstrar psicopatia, ele mostrou mais uma vez que usa, compulsivamente, o cargo de forma racional e consciente para cometer crimes contra aqueles que enxerga como adversários e no intuito de defender sua família.

Caso as instituições que exercem freios e contrapesos ao Poder Executivo estivessem funcionando normalmente, a Câmara dos Deputados autorizaria a abertura de um processo criminal apresentado pela Procuradoria-geral da República contra ele no Supremo Tribunal Federal. Ou começaria um impeachment, nem que fosse apenas para mostrar à sociedade que há limites. Mas não há. E, em nome das "reformas", tudo é perdoado.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define violência sexual como "todo ato sexual, tentativa de consumar um ato sexual ou insinuações sexuais indesejadas; ou ações para comercializar ou usar de qualquer outro modo a sexualidade de uma pessoa por meio da coerção por outra pessoa, independentemente da relação desta com a vítima, em qualquer âmbito, incluindo o lar e o local de trabalho".

O presidente da República reverberava a declaração de Hans River Nascimento, ex-empregado de uma agência de disparo de mensagens digitais, que depôs na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito das Fake News. Ele, que havia sido fonte do jornal, mentiu à CPMI sobre o que havia dito anteriormente e atacou de forma abjeta a repórter, dizendo que ela ofereceu sexo por informação.

Horas depois, a Folha de S.Paulo publicou as trocas de mensagens dela com o depoente, bem como documentos por ele fornecidos. Verificou-se que era ele quem havia dado em cima dela, ação que a repórter, educadamente, ignorou.

Com isso, Bolsonaro entreteve a claque que vai beijar sua mão diariamente na frente do palácio, rindo com a ignorância de seus próprios fãs, que a tudo aplaudem. Mas também animou os milhares de seguidores que compartilharam, nos últimos dias, memes com a acusação de que uma das mais premiadas jornalistas brasileiras trocou informação por sexo. Mantém, com isso, os soldados excitados e prontos para a "guerra cultural".

Com esse teatro, o presidente dá apoio à estratégia adotada por seu filho, Eduardo Bolsonaro. Logo após o depoimento de Hans River, ele declarou, no Congresso Nacional e em suas redes sociais, que Patrícia Campos Mello pode ter "se insinuado sexualmente em troca de informações para tentar prejudicar a campanha de Jair Bolsonaro". Exércitos de contas falsas e perfis reais passaram a atacá-la em uma das campanha de linchamento. Isso, claro, ajuda a nublar a capacidade da CPMI de investigar a tentativa de manipular o resultado da eleição de 2018.

Ao mesmo tempo, Bolsonaro criou mais um factoide para desviar a atenção sobre a investigação a respeito da morte de Adriano da Nóbrega, o líder do grupo de matadores de aluguel "Escritório do Crime", ligado ao antigo gabinete de seu filho, o senador Flávio. Preocupado com o que podem vir a descobrir sobre sua família nos celulares encontrados com miliciano, o presidente tentou se vacinar nesta terça: "Quem fará a perícia nos telefones do Adriano? Poderiam forjar trocas de mensagens e áudios recebidos? Inocentes seriam acusados do crime?".

E, sobretudo, todo esse ruído ajuda a desviar o foco da economia: apesar do otimismo de parte do empresariado, ela segue derrapando e a geração de postos formais de trabalho continua em ritmo lento demais para um povo que está passando necessidade. O presidente já demonstrou que não sabe como fazer o país crescer mais rapidamente e seu ministro da Economia gasta tempo chamando funcionários públicos de "parasitas" e criticando o diminuto grupo de empregadas domésticas que conseguiu ir à Disney.

Sem contar os assessores que batem de frente com a bandeira de ética – do frondoso laranjal do ministro do Turismo, Álvaro Marcelo Antônio, ao conflito de interesses do chefe da Comunicação Social do Palácio do Planalto, Fábio Wajngarten – que continuam defendidos por Jair.

Bolsonaro precisa que ninguém perceba nada isso. O ataque de hoje não é mais uma golden shower, para citar uma tentativa de desviar o foco da opinião pública no Carnaval passado. O linchamento público promovido contra uma jornalista por um presidente, seu filho e seus aliados é um passo além: um teste que Bolsonaro faz com as instituições brasileiras. Aposta que os outros poderes são tão frágeis que vão se dobrar, como já se dobraram o Coaf, a Receita Federal, a Polícia Federal, a Procuradoria-Geral da República…

Se o ressentimento bolsonarista contra uma das principais repórteres investigativas do país – responsável por uma série que revelou como empresários gastaram milhões de reais em disparos em massa de mensagens de WhatsApp para beneficiar o então candidato Bolsonaro – segue mostrando seus dentes afiados, o governo prova que está entrando em uma nova fase. Em breve, vai se sentir mais livre. E despejar as aberrações que desejar.

A questão é que se o presidente continuar usando o mandato para praticar violência explícita contra aqueles que considera adversários e para defender a si mesmo e seus filhos sem que a sociedade dê um basta, um dos dois não chega a 2022: seu governo ou a democracia.

Falta estatura ao presidente

O tratamento dispensado por Jair Bolsonaro à imprensa evolui aceleradamente do desrespeito para a indignidade. O presidente já não compromete apenas o que resta da sua reputação. Incapaz de elevar a sua estatura, Bolsonaro rebaixa o teto da Presidência. Ao insultar a jornalista Patricia Campos Mello, difundindo em tom jocoso insinuações sexuais, Bolsonaro associou à figura da autoridade máxima da República um comportamento asqueroso.

Bolsonaro se consolida como um presidente sui generis num regime supostamente democrático, do tipo que jamais nega à imprensa o direito inalienável de concordar inteiramente com ele. Para Bolsonaro, as entrevistas são sempre bem-vindas. E elas se tornam melhores quando o presidente consegue dialogar com os repórteres à sua maneira. Para ele, o melhor diálogo é aquele em que o presidente obriga o interlocutor a calar a boca. Se o repórter insiste na pergunta, Bolsonaro interrompe a entrevista.

Bolsonaro sempre perde a linha quando não acha resposta para uma pergunta incômoda. Antes de dar as costas, ele questiona a sexualidade de um repórter, ofende a mãe de outro, faz gracejos sexistas em relação a uma jornalista que fez reportagem que não saiu ao seu gosto. Isso não é normal. É absurdo. Como os males sob Bolsonaro sempre vêm para pior, o absurdo tem método. É ensaiado. É executado de forma teatral, de modo a saciar a fome de controvérsia dos seus súditos nas redes sociais.

Bolsonaro acha que desmerece a imprensa com seus ataques. É um engano. Na verdade, o presidente oferece aos repórteres que agride diariamente a oportunidade de se engrandecer. O único engajamento político que um jornalista que acompanha o poder deve ter é o seu compromisso de expor os desvios e a estupidez dos que exercem o poder em nome da sociedade. Se não fosse pelos jornalistas, a indignidade não deixaria vestígios. Bolsonaro vai deixando para a posteridade um rastro de incivilidade.

As instituições assistem passivas ao show de horrores de Bolsonaro

Na falta da competência para gerir a economia, a educação ou a política ambiental de um país, compostura é o mínimo que se pode exigir de qualquer presidente. Ninguém nasce sabendo governar, com o tempo é possível aprender. Já urbanidade, polidez e equilíbrio muitas vezes não se pode assimilar. O presidente Jair Bolsonaro provou isso mais uma vez.

Um presidente pode muito, mas não pode tudo. Não pode ser desrespeitoso, machista, misógino, vulgar. Há nos comentários absurdos de Bolsonaro um conteúdo que passa da irresponsabilidade e deve ser examinado sob a possibilidade da responsabilização penal. Afinal, não se diz que as instituições democráticas estão funcionando? Onde estão elas, essas tais instituições, que assistem ao show de horrores no cercadinho do Palácio da Alvorada passivamente?

Assim como o fã clube, que solta urros de apoio a cada ofensa que Bolsonaro dirige a seus desafetos, as redes sociais devem estar a essa altura entupidas de apoiadores de carne e osso e também robôs que aplaudem as baixarias presidenciais. Tudo o que o capitão fizer terá o incentivo desses fanáticos. Contra a horda de zumbis, é preciso que a democracia brasileira prove que está viva.

A matéria feita pela competente jornalista, sobre os disparos em massa de mensagens de WhatsApp pelo grupo da campanha eleitoral de Bolsonaro, foi tão bem fundamentada que deixou transtornado o presidente e sua turma. Nada, porém, justifica comportamento tão baixo. Seus antecessores, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma e Temer, apanharam muito mais da imprensa e tiveram comportamento digno. O atual mandatário do país poderia mirar-se neles.

Mais constrangedor é assistir a essa escalada de cenas de baixo calão sabendo que ao lado do presidente estão militares de alta patente. Por definição, a carreira militar pede educação, ponderação, discrição, equilíbrio. Nada mais distante do atual ocupante do Palácio do Planalto.

Com a economia revendo suas metas para baixo, o desemprego teimando em triturar ainda mais de 11 milhões de pessoas, a educação sob gestão catastrófica e a destruição ambiental avançando tragicamente, o Brasil precisa de um presidente sério, que trabalhe duro e faça mais que se orgulhar de dar "bananas" aos jornalistas e atiçar abutres nas redes sociais, como um adolescente malcriado.

O Brasil, assim, descerá mais alguns degraus na escala de respeitabilidade. Os gringos deverão estranhar como, em meio a um cenário econômico desolador, a principal autoridade nacional não se preocupa em destacar algum plano de desenvolvimento ou medidas animadoras. Prefere mostrar-se machista, misógino e desrespeitoso, ao estilo de um frequentador de boteco de vinte anos atrás.

Já que não se pode exigir muito mais desse governo, é preciso cobrar ao menos respeito, não só a Patrícia Campos Mello, mas a todos os brasileiros.

A nação “apatifada”

“Apatifar”, nos diz o Aurélio, significa tornar desprezível, aviltar, envilecer. Pessoas se apatifam, nações inteiras podem se apatifar, ou serem apatifadas. O mundo hoje vive uma assustadora onda de contágio viral que, espera-se, acabará controlada ou, eventualmente, desaparecerá. Já patifaria não mata, mas também contagia, com a diferença de que não tem nem perspectiva de cura. 

É impossível observar o Brasil de hoje sem a sensação de estar assistindo a uma pantomima tragicômica, à decomposição de um Estado que, dissessem o que dissessem de governos anteriores – inclusive os lamentáveis -, mantinha, pelo menos, a linha, o que é mais do que se pode dizer da atuação de Bolsonaro & Filhos no palco do poder. 

Agora se entende por que Bolsonaro insistia em dizer que não houve um golpe em 64 nem uma ditadura militar nos 20 anos seguintes: ele queria montar o seu próprio regime militar, enchendo o Planalto de generais de fatiota que deixam seus tanques no estacionamento e entram pela rampa principal, rindo da gente. Implícita nessa original tomada do poder está a ideia imorredoura de que só uma casta iluminada, os militares, sabe governar um país. 

O apatifamento de uma nação começa pela degradação do discurso público e pela baixaria como linguagem corriqueira, adotadas nos mais altos níveis de uma sociedade embrutecida. Apatifam-nos pelo exemplo. Milícias armadas impõem sua lei do mais forte e mais assassinos com licença tácita para matar. Há uma guerra aberta com a área de cultura e a ameaça de um retrocesso obscurantista nas prioridades de um governo que ainda não aceitou Copérnico, o que dirá Darwin. Aumentam os cortes de gastos sociais, além de cortes em direitos históricos dos trabalhadores. Aumenta a defloração da Amazônia. Aumentam as ameaças à imprensa. 

E aumenta a suspeita de que, na Universidade de Chicago, o Paulo Guedes só assistiu às aulas de bobagens para dizer, caso a economia não deslanche.


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