24/04/2024 - Edição 540

Brasil

Brasil tem 710 mil presos em cadeias que comportam 423 mil; 31% não foram julgados

Publicado em 20/02/2020 12:00 -

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O ministro da Justiça, Sérgio Moro, foi o primeiro convidado do novo programa do Youtube do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL). Quando questionado pelo filho do presidente sobre a situação do direito penal brasileiro, Moro disse que no Brasil não há um encarceramento excessivo.

“Isso é um pouco questionável. Em número absolutos a população carcerária do Brasil é elevada. Mas somos um dos países mais populosos do mundo. Se for considerar taxa de cada 100 mil habitantes, o Brasil não fica em uma posição ruim”, justificou o ministro.

Segundo dados divulgados no último dia 14 pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), órgão ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Brasil tem 777.3151 encarcerados no sistema penitenciário e nas carceragens das delegacias. O número total de presos não consegue ser atendido pelos presídios brasileiros que possui um déficit total de 312.125 vagas.

O ministro citou esse problema, mas não apresentou uma proposta que vise a melhoria desse déficit. “Não vejo isso como uma grande problema. Temos que tratar sobre a superlotação dos presídios, mas não pode se resolver isso abrindo a porta das cadeias”, justificou.

Números alarmantes

O número de pessoas presas sem julgamento no Brasil atingiu o menor patamar dos últimos anos. Dos 710 mil presos do país, 31% são provisórios. No mesmo período do ano passado, o percentual era de 35,9%. As informações são do levantamento feito pelo Monitor da Violência, divulgado no último dia 19.

Apesar da diminuição, o número ainda é alto e a proporção de presos provisórios em grande parte dos estados é maior do que a média nacional. No Ceará, por exemplo, 54,3%, dos presos estão privados de liberdade antes mesmo do julgamento. No Piauí e na Bahia, o índice é de 49,3%. Mato Grosso, Minas Gerais e Alagoas também apresentam percentuais maiores do que 40%.

Produzido pelo G1 em parceria com o Núcleo de Estudos de Violência (NEV), da Universidade de São Paulo (USP), e com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o monitoramento também revela como as prisões brasileiras seguem abarrotadas: São 423.389 vagas para 710 mil presos, uma superlotação de 67,8%. O índice apresenta redução em relação a 2019, quando o percentual era de 69,3%. Por outro lado, ano passado o número de presos era de 704 mil.  

Segundo Thandara Santos, socióloga e membra do FBSP, o levantamento endossa uma realidade já conhecida de superpopulação prisional. “Se formos considerar em números absolutos, o Brasil está na terceira posição mundial em número de pessoas privadas de liberdade. Sabemos que é um sistema grande e ineficiente para combater a criminalidade”, avalia. 

Prisão provisória não é exceção

Em relação à diminuição de presos provisórios, a especialista pondera. “Ainda que tenhamos visto uma pequena melhora nesse percentual, ainda estamos falando de um em cada três pessoas presas que são presas provisórias. Isso não é exceção. Claramente, a prisão provisória não é uma exceção no Brasil”, critica.

A realização das audiências de custódia em todo Brasil, feitas a partir de articulação do Conselho Nacional de Justiça com o Ministério da Justiça, seriam parte responsável nessa diminuição. De acordo com o CNJ, mais de 220 mil audiências aconteceram em 2019. Os presos receberam liberdade provisória em 88,4 mil delas. 

“Esse seria um impacto a longo prazo das audiências de custódia que tem como possibilidade oferecer para o juiz uma opção a prisão no momento do flagrante. A pessoa é apresentada e ele pode manter ou deixar essa pessoa para responder em liberdade”, explica Thandara. Ela acrescenta que, para que mais pessoas entrem a liberdade, é preciso uma articulação de outras esferas do Estado. 

“A manutenção dessas audiências depende muito de um trabalho de articulação diário com dos tribunais de Justiça com os poderes executivos estaduais, para garantir que isso continue acontecendo, que tenha contingente policial para acompanhar as audiências e espaços nos tribunais de Justiça e que isso entre nas agendas dos tribunais”, diz a integrante do Fórum. 

Encarceramento como regra

Thiago De Luna Cury, coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária de São Paulo (NESC), corrobora a análise de que a redução é pontual perto da estrutura que ainda se mantém no sistema prisional. 

“Ainda que em números absolutos tenha havido uma queda de presos provisórios, não dá para dizer, como [Sérgio] Moro disse há um tempo atrás, que o Brasil não prende muito, que não há excesso de presos provisórios no Brasil. Desses presos provisórios, 40%, ao final, recebem o regime aberto, uma pena restritiva de direito ou são absolvidas”, aponta o defensor, reforçando a injustiça cometida com parte relevante das pessoas detidas sem julgamento. 

Estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) também alertou que 4 entre 10 pessoas que respondem a processos presas no Brasil não são condenadas a penas privativas de liberdade, ou seja, ficam presas sem necessidade.

Apesar do mecanismo das audiências de custódia, o relatório “O Fim da Liberdade”, do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), publicado ano passado, registra como a lógica punitivas se perpetua no país. No município de São Paulo, por exemplo, 65% de pessoas detidas em flagrante são mantidas presas após audiência de custódia. 

“O estado de São Paulo continua prendendo muito mesmo com a audiência de custódia. E o mais assustador é que, na capital, a taxa de liberdade provisória irrestrita é 0%. Ou seja, daqueles que tem a liberdade provisória, todas elas são condicionadas a comparecimento mensal ou outra medida cautelar. Ninguém tem liberdade aqui em SP”, reprova Cury.

Sistema saturado

Conforme divulgado pelo Monitoramento da Violência, atualmente existem 48.587 vagas no sistema prisional em construção no Brasil. Mesmo se as vagas existissem, não seriam suficientes para cobrir nem 1/5 do déficit atual em nível nacional. 

A situação é ainda pior em alguns estados. Roraima lidera o ranking, com 315,3% de superlotação em seus presídios. São 706 vagas para 2.932 presos. Amazonas e Pernambuco aparecem em seguida, com 171.4% e 143%, respectivamente.  

Para Monique Cruz, pesquisadora da Justiça Global, organização não-governamental que atua na área da segurança pública e em defesa dos direitos humanos, a construção de mais prisões não é a solução.

“A construção de vagas em qualquer lugar do mundo nunca foi a saída para os problemas de superlotação e superpopulação nas unidades prisionais. Quando aumentamos o número de vagas e constrói-se presídios, o que se tende a fazer é prender mais pessoas”, analisa Cruz. “O que temos hoje no Brasil é a privação de liberdade como a primeira saída para os conflitos sociais, para questões que poderiam ser resolvidas por outras formas, inclusive já oferecidas pela legislação”, acrescenta. 

Ela reforça que a diminuição de números é importante frente a um “cenário de barbárie”, mas, defende que não é suficiente. “A discussão é estrutural. Diz respeito a uma lógica e uma cultura do encarceramento. Temos um processo de escolha da privação de liberdade que vai reverberar nesses números”. 

Segundo Cruz, há relatos de pessoas que passaram por audiências de custódia no Rio de Janeiro e foram mantidas em cárcere até mesmo por crimes menores como furto de legumes ou porte de drogas em pequena quantidade.

Os dados do Monitor da Violência foram elaborados com base em informações oficiais de 25 estados do país e do Distrito Federal. Apenas o estado de Goiás, pela segunda vez, negou-se a disponibilizar as informações.

Por que, ao contrário do que diz Moro, a prisão provisória é um problema no Brasil

O excesso de prisões provisórias (realizadas sem julgamento) no Brasil é apontado há anos como um dos problemas na segurança pública do país, mas no último dia 15 o ministro Sergio Moro contestou esse diagnóstico ao divulgar os dados mais recentes do Infopen, sistema de estatísticas dos presídios brasileiros.

"São cerca de 33% de presos provisórios, ou seja, presos sem julgamento. O Brasil possui menos presos provisórios do que Mônaco (56,3%), Suíça (42,2%), Canadá (38,7%), Bélgica (35,6%) e Dinamarca (35,5%), por exemplo. Não há qualquer excesso de prisão preventiva no Brasil", escreveu em sua conta no Twitter.

A premissa do argumento é de que se um grupo de países ricos tem uma proporção de presos provisórios maior do que a do Brasil, provavelmente está tudo certo por aqui. Para especialistas, porém, a comparação é inadequada e esconde os excessos cometidos no país.

"Ele está comparando sistemas prisionais de naturezas muito diferentes. O Canadá tem um taxa de encarceramento de 100 presos a cada 100 mil habitantes; no Brasil são 368. A Bélgica tem 36 estabelecimentos prisionais, o Brasil tem mais de 1.000", diz Thandara Santos, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

A diferença de escala entre os países é de fato grande. Mônaco, um dos citados por Moro, tinha apenas 32 presos em 2019, enquanto os outros exemplos têm poucos milhares, segundo o World Prison Brief, que compila dados sobre o assunto. Já o Brasil tem 773.151 detentos, terceiro maior número do mundo.

Se a mesma comparação que o ministro propôs fosse feita apenas entre os quinze maiores sistemas prisionais, o Brasil teria a quinta maior porcentagem de presos provisórios, perdendo apenas para Filipinas, Índia, Argentina e México, respectivamente.

Mas a proporção de presos provisórios não deve ser usada como a única medida para avaliar se há ou não excesso de prisões porque esconde as nuances de cada país, alerta Catherine Heard, diretora do World Prison Research Programme, da Universidade de Birkbeck, no Reino Unido.

Os países citados por Moro, por exemplo, têm uma porcentagem alta de presos estrangeiros (de 28% na Dinamarca a 100% em Mônaco; não há dados sobre o Canadá). Isso contribui para um aumento na proporção de encarcerados em prisão provisória porque juízes costumam avaliar que esses detentos têm um risco maior de fugir antes do julgamento. Não é o caso do Brasil, onde apenas 0,3% dos presos são de outras nacionalidades.

A porcentagem de presos provisórios é um indicador padrão, mas não é o melhor e, usado isoladamente, pode ser enganoso. Por exemplo, esse número pode cair porque há menos presos provisórios, mas também pode cair simplesmente porque há mais presos condenados", diz Heard.

Para a pesquisadora, uma medida mais adequada é a taxa de presos provisórios a cada 100 mil habitantes. Nesse caso, a comparação do Brasil com os mesmos países citados por Moro é desfavorável — o país tem uma taxa quase três vezes maior que a do Canadá, segundo essa lista.

Há ainda pelo menos outros três indicadores importantes que mostram que a situação das prisões provisórias no Brasil é, sim, preocupante:

1. A tendência histórica. O número de prisões provisórias caiu desde 2014, fenômeno atribuído pelas especialistas ouvidos por Aos Fatos à implementação de audiências de custódia em 2015. Essa política determina que todos os presos em flagrante devem ter sua detenção avaliada por um juiz em até 24 horas após sua detenção.

Ainda assim, o volume de presos segue muito alto na comparação com a própria história brasileira. Desde 2000, a taxa de presos provisórios por 100 mil habitantes mais do que dobrou, saltando de 46 para 115 em 2019.

Já o número absoluto de presos provisórios no país cresceu 643% desde 1994, de acordo com relatório do World Prison Brief, da Universidade de Birkbeck, no Reino Unido. É o maior aumento registrado nos dez países acompanhados pelo grupo, que incluem Estados Unidos, Índia, Austrália, Reino Unido e outros.

2. O tempo médio da prisão provisória. Presos provisórios no Brasil ficam na cadeia, esperando um julgamento, por longos períodos. Um levantamento do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) mostrou que o tempo médio nos estados brasileiros varia de 172 (em Rondônia) a 974 dias (em Pernambuco) — média não ponderada de 367 dias — e que 29% dos presos provisórios do país passam mais de 180 dias na cadeia antes de receber uma sentença. Na União Europeia, a média é de 165 dias e, nos EUA, de 68 dias.

3. A proporção de absolvidos. Outro indício de que a prisão provisória é mal utilizada no Brasil é que 37% dos presos provisórios não são condenados à penas privativas de liberdade ao fim de seu processo, segundo mostrou levantamento do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) publicado em 2015. Os pesquisadores que conduziram o estudo concluíram que há evidências de “sistemático, abusivo e desproporcional uso da prisão provisória pelo sistema de justiça no país”. Não há estudos internacionais comparativos sobre o assunto.

Causa e consequência

Especialistas apontam múltiplos fatores como causadores do excesso de prisões provisórias no Brasil e alertam para os problemas que o fenômeno causa. Para Giane Silvestre, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Violência da USP, os números refletem uma "baixa capacidade do judiciário em processar os casos que chegam" e deficiências no trabalho das polícias.

"O que impulsiona o crescimento da população prisional é o foco da polícias na prisão em flagrante, que afeta principalmente pequenos criminosos e usuários de drogas. Isso acontece em parte porque há pouca capacidade de investigação e inteligência para chegar aos grandes criminosos", diz

Já Thandara Santos, do FBSP, aponta para a falta de articulação entre Judiciário e Executivo. "No Brasil o que a gente tem é um uso da prisão como resposta pra tudo na segurança pública. Isso faz com que a gente tenha esse sistema prisional super inchado. E há uma dificuldade do Judiciário de compreender quais são os impactos práticos dessas decisões. O juiz decide sem considerar o custo que isso [o excesso de prisões provisórias] vai ter pro Executivo e para as próprias pessoas que são presas.

Elas também apontam que, além da violação dos direitos dos presos e da piora na superlotação das cadeias, o excesso de prisões provisórias pode ter consequências negativas para o conjunto da sociedade.

"Quando o excesso de prisão provisória afeta desproporcionalmente comunidades mais pobres e indivíduos marginalizados, como é o caso do Brasil e de vários outros países que estudamos, há um dano no tecido social que se torna difícil de reparar, diz Heard, da Universidade de Birkbeck.

Por fim, o fluxo de pessoas num sistema carcerário dominado por facções criminosas pode ter o efeito contrário do pretendido sobre os índices de crime. "O sistema prisional virou uma escola do crime. Você pega um criminoso de pouco potencial, que não tem uma trajetória criminal, e põe ele num ambiente sujeito ao controle das facções criminosas. Ele vai acabar se tornando um agente dessas facções para sobreviver", diz Thandara Santos. "Se a gente pensar nos presos como um recurso das organizações criminosas, o mais racional, para sufocá-las, é prender menos, fechar essa porta de entrada."


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