29/03/2024 - Edição 540

Brasil

MP de Bolsonaro pode liberar fazendas para desmatar até 50% de terras na Amazônia

Publicado em 20/02/2020 12:00 -

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Três florestas da região amazônica foram incluídas pelo governo federal no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) anunciado na quinta-feira, 19, pelo Ministério da Economia. Ao todo, foi feita inclusão de 22 novas iniciativas na carteira do programa, entre elas terminais pesqueiros, arrendamentos portuários e rodovias federais. Com a inclusão, o governo concede as unidades de conservação ambiental Humaitá, Iquiri e Castanho, localizadas no Amazonas, para exploração sustentável de madeira por parte de empresas privadas. As companhias poderão apresentar planos para exploração de outros recursos naturais, mas o plano de concessão inicial é voltado à retirada de madeira.

Esta foi a mais recente intervenção do Governo Federal na região. Mas, a coisa pode piorar. O Congresso Nacional analisa uma medida provisória (MP) que pode aumentar ainda mais o desmatamento na floresta amazônica. O texto, que está pronto para ser votado no plenário da Câmara, aumenta para até 50% a área que pode ser desmatada em fazendas de Roraima e do Amapá.

Hoje, os donos de fazendas nestes dois Estados precisam manter pelo menos 80% de área de floresta em seus imóveis. Se a MP 901 for aprovada como se encontra, o percentual cairá para apenas 50% — ou seja, até metade da área das propriedades rurais poderá ser desmatada.

Este trecho da medida provisória faz uma alteração no Código Florestal, e ambientalistas temem que a mudança acabe se espalhando por outros Estados da região amazônica.

A MP 901 estava na pauta de votação da Câmara no último dia 11, mas foi adiada. A proposta tramita em regime de urgência no Congresso. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), é um dos principais defensores da medida. Se aprovado na Câmara, o texto segue para a Casa comandada pelo amapaense.

Jabuti

A medida provisória 901 foi discutida por deputados com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em uma reunião na manhã da última quarta (12). Segundo um dos participantes, Rodrigo Agostinho (PSB-SP), Maia não discutiu o mérito da proposta, mas se comprometeu a rejeitar trechos da MP que sejam considerados "contrabandos" legislativos — isto é, inserções de outros assuntos que não tenham a ver com o tema original da MP, os chamados "jabutis". Agostinho é o atual presidente da Comissão de Meio Ambiente da Câmara e tem trabalhado contra as mudanças na medida provisória.

Originalmente, a MP editada pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido) dizia respeito à transferência de terras da União para os governos dos Estados do Amapá e de Roraima — e não trazia qualquer referência a mais desmatamento em propriedades rurais.  A doação das terras aos Estados já estava aprovada em lei desde 2009, mas estava travada por causa de exigências burocráticas.

O "jabuti", para permitir mais desmatamento na Amazônia foi inserido no texto durante a fase da Comissão Mista, quando deputados e senadores sugerem alterações no texto da MP. O aumento da área desmatada em fazendas surgiu em uma emenda do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR). O texto final foi confeccionado pelo relator, o deputado Edio Lopes (PL-RR).

Procurados, o senador Mecias de Jesus e o deputado Edio Lopes negaram se tratar de "contrabando" legislativo ou jabuti. Edio Lopes disse que seu texto não traz inovações em relação ao que o Código Florestal já determina. Já Mecias de Jesus argumentou que apenas uma pequena parte do Estado de Roraima está disponível para a agricultura — e que o objetivo da medida é dar segurança aos produtores locais, e não incentivar o desmatamento.

Entrave

A ideia de diminuir (ou acabar) com a chamada "reserva legal" das propriedades rurais não é nova no Congresso. Em meados do ano passado, o senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ) apresentou um projeto de lei em parceria com o também senador Marcio Bittar (MDB-AC) para acabar com a obrigação dos proprietários de manter trechos preservados em suas fazendas.

Na justificativa do projeto, o filho mais velho do presidente da República escreveu que o objetivo era remover um "entrave" e "expandir a produção" de produtos agrícolas no país.  A obrigação de manter reservas legais nas fazendas varia de acordo com o bioma no qual a propriedade está.

Nos Estados da Amazônia Legal, 80% da área precisa ficar protegida. Este percentual cai para 35% no Cerrado e 20% em outras regiões do país, como a Mata Atlântica.

A MP 901 também está longe de ser a única medida controversa em temas ambientais em discussão em Brasília.

Em dezembro passado, o governo editou a MP 910 de 2019, apelidada por críticos de "MP da grilagem". Este segundo texto, que ainda está sendo discutido por uma comissão mista de deputados e senadores, anistia pessoas que tenham desmatado e ocupado irregularmente terras públicas.

Mais recentemente, no começo de fevereiro, o governo também enviou um projeto de lei que regulamenta a Constituição para permitir atividades como a mineração e a exploração de recursos hídricos em terras indígenas.

Como a mudança de 'e' para 'ou' pode atingir a floresta

O texto atual da MP 901 muda um trecho do Código Florestal que trata da reserva legal nas fazendas. Hoje, o Art. 12 do Código exige duas condições para que a área preservada nas fazendas de um determinado Estado possa ser diminuída.

O governo estadual precisa realizar um tipo de estudo chamado Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE); e é preciso ainda que mais de 65% do território do Estado seja ocupado por unidades de conservação e terras indígenas.

A MP 901 basicamente muda o "e" pelo "ou": o Estado pode realizar o Zoneamento Ecológico-Econômico ou ter mais de 65% de sua área ocupada por reservas. Assim, o estudo ZEE deixa de ser necessário — e a redução da área preservada nas fazendas passaria a ser possível nos Estados do Amapá e de Roraima.

Áreas militares e outros locais controlados pela União também passam a ser contabilizados para atingimento dos 65%.

A observação está em uma nota técnica do Instituto Socioambiental (ISA), uma ONG da área de meio ambiente que primeiro observou a alteração feita na medida provisória.

"Não se trata de Zoneamento Ecológico-Econômico aprovado ou 65% do território ocupado por unidades de conservação ou terras indígenas, como quer o (relatório) da MP 901 e sim a soma desses dois critérios. Nem se admite, no Código Florestal, no cômputo de 65%, as 'terras das forças armadas, perímetros das rodovias federais e outras que a União venha a instituir' como apresentado no PLC (relatório) da MP 901", diz a nota técnica.

O advogado Mauricio Guetta, consultor jurídico do ISA, diz ainda que se trata de "contrabando legislativo" ou "jabuti" discutir um tema relacionado ao Código Florestal em uma MP que não trata originalmente deste assunto. Como tal, o tema deveria ser retirado do texto, diz ele.

O relator da MP, Edio Lopes, nega que se trate de "contrabando". "O Código Florestal já assegura essa redução. Eu não estou criando nada (…). Não estou aumentando nada (em área desmatada), é uma legislação antiga", diz ele.

Edio Lopes diz ainda que as próprias ONGs ambientalistas, inclusive o ISA, atuam com os indígenas para impedir a realização do ZEE.

"Este trabalho (o ZEE) é impossível fazer por conta da não aceitação das comunidades indígenas (…). Eu estou retirando a exigência do ZEE. Nós não temos como fazer no Estado (o estudo)", diz.

"O Estado de Roraima batalha há anos, e não consegue porque as próprias organizações, inclusive o ISA, trabalham junto aos indígenas, e estes não permitem que o Estado proceda ao levantamento dentro de suas áreas", disse ele à BBC News Brasil. As terras indígenas são áreas federais, e não controladas pelos Estados, diz ele.

O autor da emenda, senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR), argumenta que apenas uma pequena parte do território do Estado de Roraima está disponível para a agricultura — apenas 8% do território. O restante está ocupado por terras indígenas homologadas (47%) e reservas ambientais (20%).

"Não estamos trazendo nenhuma inovação, nem autorizando a desmatar ou a queimar, muito pelo contrário. Nós aqui na Amazônia temos o maior interesse em preservar a floresta. Ninguém, no Brasil e no mundo tem mais interesse em preservar do que nós amazônidas", diz ele. "Tudo que nós queremos é tirar o povo de Roraima da ilegalidade, da insegurança jurídica sobre a nossa terra", defende o senador.

Além da questão envolvendo as propriedades rurais, a MP também transfere para o governo do Estado de Roraima uma área de quase 5 mil hectares que hoje é protegida — faz parte da Floresta Nacional (Flona) de Roraima.

Segundo o texto da MP, o local seria destinado ao "assentamento de pequenos agricultores". De acordo com o ISA, porém, a área abrange locais que são do interesse de garimpeiros. Uma parte do trecho que deixaria de integrar a Floresta Nacional é alvo de pedidos de mineração junto ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).

 

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Preconceito ambiental' ou 'insegurança jurídica'

Ambientalistas e deputados contrários ao texto atual da MP 901 dizem que a proposta cria insegurança jurídica — se for aprovada como se encontra, fazendeiros de outros Estados da chamada Amazônia Legal poderiam pleitear o direito de diminuir a área de reserva legal em suas próprias fazendas.

"O Código Florestal não trata da Amazônia do ponto de vista dos Estados, e sim por biomas. Então, esse ponto gera muita insegurança jurídica sobre o que acontecerá nos outros Estados da região, se o relatório passar tal como se encontra", disse à BBC News Brasil o deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP).

Para Mauricio Guetta, do ISA, o texto atual da MP representa "um retrocesso grave".

"Esta emenda permitiria que as propriedades privadas nesses dois Estados (Amapá e Roraima) preservassem apenas 50%. Trinta por cento a mais de desmatamento. E esse precedente aberto pelos Estados poderia abrir caminho para que outros Estados da Amazônia façam pressão para novas alterações. Poderia desencadear um aumento do desmatamento que já se observa hoje", diz ele.

O presidente da bancada ruralista, Alceu Moreira (MDB-RS), diz que o grupo não tem ainda uma posição fechada sobre a MP.

A princípio, diz ele, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) é contra a exigência dos mesmos 80% de reserva legal em toda a Amazônia Legal, pois a região abrange locais muito diferentes entre si.

"Em alguns lugares é necessário que a reserva seja de X, e em outros não necessariamente. A Amazônia Legal é um conceito fiscal, que abrange áreas diferentes entre si. Ela não é homogênea, envolve solos distintos. Tratar a Amazônia Legal como se fosse um só bioma é algo que acaba prejudicando o uso da terra", disse Alceu Moreira.

Os Estados da Amazônia Legal, onde a reserva é de 80%, abrangem terras que são idênticas a outras onde a reserva exigida é bem menor, defende Moreira. A exigência indiscriminada de 80% de reserva pune propriedades que poderiam ter uma área maior utilizada e é fruto de "preconceito ambiental", diz ele.

"A Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) tem condições exatas de fazer o zoneamento e dizer qual é a necessidade de reserva em cada pedaço de chão do Brasil. O que não se pode é transformar isso num cavalo de batalha, dizendo que 'tal e tal coisa não pode'. Não. A argumentação tem que ser feita de forma técnica. É isso que vai balizar a votação", diz Moreira.

Degradação da Amazônia

A destruição da floresta não é a única coisa que vem preocupando os cientistas que a estudam: a degradação do bioma amazônico representa hoje uma ameaça tão grave quanto a destruição da floresta, segundo estudiosos ouvidos pela BBC News Brasil.

Degradação é o fenômeno que se dá quando um trecho de floresta sofre várias perturbações (como caça descontrolada, garimpo, incêndios, corte de madeira) que impedem o seu funcionamento natural.

"Falar só de desmatamento quando falamos da destruição da Amazônia é o que eu chamo de a grande mentira verde", disse o climatologista Antonio Donato Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em reportagem publicada pela BBC no último dia 13.

A floresta amazônica é atualmente a maior e mais diversa floresta tropical do mundo. São mais de 6,8 milhões de quilômetros quadrados espalhados por nove países, e nos quais vivem 33 milhões de pessoas.

Falta de compromisso

Ponto de desgaste para o presidente Jair Bolsonaro, o meio ambiente pode ser entrave na realização de um desejo do governo: a inclusão do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). O ministro da Economia, Paulo Guedes, foi cobrado em Davos por investidores estrangeiros sobre a política ambiental que o governo vem adotando.

Guedes ouviu que, se o País não mostrar números e resultados, será não apenas difícil atrair investimentos, como corre-se o risco da saída deles. Além disso, o ingresso na OCDE e outras parcerias, como o acordo entre o Mercosul e a União Europeia, também poderiam ser afetados pela questão.  

Em repostas às recomendações, o governo migrou o Conselho da Amazônia do Ministério do Meio Ambiente para a Vice-Presidência, sob o comando de Hamilton Mourão. O general é tido como “mais ponderado”, que o ministro Ricardo Salles, e é conhecedor do bioma, onde foi comandante da 2ª Brigada de Infantaria de Selva na tríplice fronteira com a Colômbia e Venezuela.

Consultora de relações governamentais da BMJ Consultores, Mariana Lyrio diz que o Brasil tem argumentos que poderá usar a seu favor.

“A implantação de uma lei de Pagamentos por Serviços Ambientais, um tema que está atualmente sendo discutido no Congresso; e a criação de um sistema de informação de biodiversidade brasileira. O Brasil lançou, no ano passado, o Sistema de Informação sobre a Biodiversidade Brasileira (SiBBr). São argumentos que podem ser usados a favor da adesão do Brasil à OCDE”

 Anualmente a entidade elabora uma Revisão de Desempenho Ambiental que “fornece avaliações independentes sobre o progresso dos países em relação a seus objetivos de política de meio ambiente e traz recomendações”. A versão brasileira de 2015 trazia elogios à matriz energética limpa e redução de emissões de gases, e recomendações.

De acordo com a especialista, o foco da OCDE, no entanto, é econômico. A organização tem mais de 250 instrumentos normativos. Com base em dados da Casa Civil, o Brasil faz parte de pouco mais de 80 instrumentos legais. “Não é fundamental juntar-se aos 250 porque poucos são obrigatórios, mas é desejável aderir ao maior número possível”, diz Lyrio. “Hoje, a maioria dos instrumentos aos quais o Brasil não aderiu versa sobre meio ambiente.”

A expectativa do Brasil é receber em maio, na próxima reunião da OCDE, o aval e o início da análise pelos comitês setoriais da participação do País como um membro definitivo. Os EUA formalizaram o apoio à entrada do Brasil na entidade. Espera-se uma resistência maior da França.  

O papel do vice

Resposta às críticas, o Conselho da Amazônia foi formalizado em um decreto publicado no último dia 11, que excluiu os governadores de participação. Para o presidente Jair Bolsonaro, a inclusão deles “não resolve nada”.

“Se você quiser que eu bote governadores, secretários de grandes cidades, vai ter 200 caras. Sabe o que vai resolver? Nada. Nada. tem bastantes ministros. Nós não vamos tomar decisões sobre estados da Amazônia sem conversar com governador, com a bancada do estado. Se botar muita gente, é passagem aérea, hospedagem, uma despesa enorme, não resolve nada”, disse no dia 13. 

Mourão garantiu que irá “de estado por estado ouvir os governadores”. E deu início à sua agenda ainda na semana. No dia seguinte à assinatura do decreto, partiu para Roraima, onde ficou até quinta entre as cidades de Boa Vista e Pacaraima. 

As viagens do vice-presidente fazem parte do início do trabalho do Conselho que, por sua vez, está alinhado às causas da OCDE. Nas próximas semanas, o comitê ministerial deve concluir uma política de comunicação em que o mote será: “O Brasil não está mudando para entrar na OCDE. O Brasil vai entrar na OCDE porque está mudando”. 

O presidente da Comissão de Meio Ambiente da Câmara, Rodrigo Agostinho (PSB-SP), concorda com a estratégia de desligar o Conselho da Amazônia do Ministério do Meio Ambiente.

“O governo não está errado em levar a discussão para dentro do Planalto. Todas as vezes em que houve, em governo anteriores, redução dos índices de desmatamento, foi com a ação de vários ministérios, com coordenação da Casa Civil. Tem que ter estratégia. Tem que ter, por exemplo, o Ministério da Justiça para o combate de ocupação ilegal, grilagem, quadrilhas, tem que ter a Polícia Federal, o Exército, para compensar o Ibama que hoje não tem”, disse ao HuffPost. 

Para ele, o Brasil “tem que fazer a lição de casa”, que outros países já fizeram. “Estamos entrando em uma era econômica em que a questão de sustentabilidade passa a ser cada vez mais relevante. Os países desenvolvidos ou não já fizeram a tarefa de casa e uma delas é pôr fim ao desmatamento. Mesmo que a política continue bem atrasada, se conseguir isso, já é meio caminho andado.”

Neste ano, no entanto, já houve registro de aumento do desmatamento na Amazônia, segundo dados do Inpe (Instituto de Pesquisas Espaciais) com base em dados do Sistema de Detecção em Tempo Real (Deter-B). Foram emitidos alertas para 284,27 quilômetros quadrados de floresta, o maior índice desde o início da medição, em 2016. No mesmo período do ano passado, os alertas somaram 136,21 quilômetros quadrados, aumento de 108%.

Considerando todo o ano de 2019 na comparação com 2018, os alertas subiram 85%.


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