25/04/2024 - Edição 540

Brasil

O poder do traço

Publicado em 19/02/2020 12:00 -

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“Uma imagem vale mais que mil palavras”, disse o filósofo chinês Confúcio. Dois milênios e meio depois, sua reflexão sobre o poder da comunicação através das imagens é cada vez mais poderosa. Em tempos de bombardeio informacional, no qual parte dos consumidores de notícias não passa do título e da foto das reportagens, zapeando pelas redes sociais e navegando águas rasas, a imagem confirma-se uma ferramenta essencial. Por isso, as charges têm mantido um papel importante no Jornalismo, especialmente o de viés político.

De origem francesa, a palavra charge significa carga ou ataque. No Brasil, ela surgiu em 1837, quando o pintor e poeta Manuel de Araújo de Porto Alegre publicou, no Rio de Janeiro, a sátira “A campanha e o cujo”, que denunciava o pagamento de propina a um funcionário do governo ligado ao Correio Oficial. Em 1844, é lançada a primeira revista com publicação de charges no país, a “Lanterna Mágica”.

As décadas passaram e o caráter pouco republicano de nossa República ofereceu campo fértil para o gênero. Na última ditadura brasileira (o regime militar), a censura à imprensa reforçou o sentido satírico da charge. Dado o golpe em abril de 1964, este já era "saudado" em setembro do mesmo ano com a publicação do livro “Hay Gobierno?”, reunindo charges de Claudius, Jaguar e Fortuna. Ao lado desses três, a ditadura encontrou importantes e experientes nomes da charge em plena atividade, como Millôr Fernandes, Ziraldo, Lan, Alvarus, Nássara, Loredano, Henfil, entre outros.

A ditadura, com seu autoritarismo, sua violência, seus escândalos, sua situação trágica e ridícula compôs o caldo de cultura necessário ao surgimento de novas gerações de chargistas, que durante os 21 anos de regime militar, somados aos veteranos, consolidaram a posição do desenho de humor como meio de comunicação. “Tal foi a importância do humor político na resistência democrática que, em 1969-70, na arrancada do fascismo, ‘O Pasquim’ representou a mais eficiente trincheira existente na imprensa legal de então, chegando à histórica marca de 300 mil exemplares vendidos semanalmente em todo o país”, lembra o chargista e jornalista Ênio Lins.

A charge política, opinativa, denunciativa, desempenhou importante papel na resistência democrática, particularmente nos últimos anos da ditadura. Hoje, em plena “democracia autoritária” promovida pelo bolsonarismo, não tem sido diferente. Uma nova geração de artistas tem feito o leitor rir das próprias desventuras e, ao mesmo tempo, refletir sobre temas como democracia, cidadania, autoritarismo, preconceito etc.

O papel da charge política hoje

Oriundo de uma família de artistas e músicos – caminho que seguiu – Renato Aroeira é um destes comunicadores. Dono de um traço refinado e de charges que traduzem com maestria a tragicomicidade do momento político do país, possui longa trajetória no jornalismo mineiro e carioca. Hoje, publica diariamente no site Brasil 247, ao lado de outras feras como Carlos Latuff, Miguel Paiva e Nando Motta.

Para Aroeira, o gênero desempenha um papel fundamental na atualidade. “Castigat ridendo mores, ‘rindo se castiga melhor’ (frase em latim que significa ‘alguém corrige costumes rindo deles’ ou ‘ele corrige costumes ridicularizando’). É verdade, e a charge se baseia nisso. É uma catarse, uma denúncia e a ridicularização do poder. Ela (a charge) lembra ao poderoso que ele é apenas um ser humano como outro qualquer”, afirma.

Outra fera do traço é Gilmar. Instalado no Grande ABC paulista, berço do sindicalismo, começou sua vida profissional na imprensa sindical nos anos 80, onde ficou por 10 anos. Passou pela Folha de SP, Diário Popular, Jornal Do Brasil, Tribuna de Vitoria, diário do Grande ABC entre outros. “Acho fundamental a charge livre, crítica, que provoca o debate e a reflexão sobre os assuntos que envolvem a sociedade”, afirma

Jota Camelo se auto-intitula um “chargista de esquerda”. Nada mais claro. Parafraseando Confúcio, Camelo considera que a charge tem um impacto mais forte do que “mil discursos e análises”. Ele explica: “O impacto visual de uma boa charge, ou uma boa fotografia, ou um bom quadro, atinge diretamente o sentimento humano. A arte em geral, seja a música, as artes visuais, o teatro, o cinema, o humor, tem uma força de convencimento e elucidação muito maior do que mil análises. Talvez seja por isso que a imprensa em geral tem muito cuidado em publicar charges políticas. Muitos jornais as evitam completamente, pois sabem do impacto que elas têm. E quando publicam, são coisas muito amenas e bem comportadas”, reflete.

A acidez da crítica social e de costumes, promovida por Ricardo Coimbra em sua trajetória na Folha de SP, não encontra eco em sua opinião sobre o papel do gênero diante da política. Para ele, a charge não substitui a leitura em seu aprofundamento sobre um determinado tema.

Um pouco mais “doce” na produção diária que seus companheiros de lida – seu repertório tem grande ênfase em temas comportamentais – Benett possui, também, sua veia crítica bastante realçada. Ele iniciou sua carreira nos anos 90 e, em 2007, cobriu férias de Angeli e Glauco na Folha, onde acabou ficando. “Hoje em dia, ela (a charge) tem vários papeis. Resistência, denúncia, sátira com objetivo de desconstruir um ‘mito’, aí vale para aquele que se intitula o ‘mito’. Ela é uma das muitas vozes que se erguem contra a opressão”, dispara.

Benett, ressalta, no entanto, que o impacto da charge depende de fatores que estão além do poder do chargista: “A charge depende de um contexto de notícias. Se o leitor não está a par do tema, vai ficar sem entender. Ele não apenas não irá refletir, como fará interpretações mais rasas do que o desenho permite. No entanto, o contrário também pode acontecer. Uma charge rasa, feita por um cartunista que também não está familiarizado com os assuntos, vai deixar o leitor mais esclarecido com vontade de rasgar o jornal”.

Marcus Ravelli, o Quinho, começou a desenhar cedo, já aos 6 anos protagonizou um cartum que foi destaque na escolinha onde estudava. “Tenho até hoje, preservado numa moldura no meu estúdio”. Em 94 venceu o Salão Nacional de Humor Henfil e, apadrinhado por Ziraldo, se enredou na profissão. Há 25 anos atua no Jornal Estado de Minas.

Quinho sustenta que o chargista deve ter cuidado para não cair no maniqueísmo barato, em ideias rasas e preconceituosas. “Esta deve ser uma preocupação constante no momento da criação. O que não quer dizer que o chargista, como qualquer ser humano ordinário, não possa cometer um deslize de vez em quando. Mas o cuidado e o respeito às diferenças, nesse caso, convergem para um senso de justiça comum e, consequentemente, em prol de uma sociedade pluralista”.

O mito da imparcialidade

É possível ser “imparcial” diante do fascismo, do totalitarismo, do preconceito, por exemplo? Fizemos esta pergunta a alguns dos principais chargistas brasileiros na atualidade, e a resposta é unanime: não.

Uma das mais importantes e premiadas cartunistas brasileiras (que em 2009 se assumiu como trans), Laerte iniciou seu engajamento político na década de 1970 e colaborou em publicações como O Pasquim, Correio Braziliense e Zero Hora. Na década de 80 e 90 atuou ao lado de outras duas feras dos cartoons nacionais, Angeli e Glauco. Voz crítica ao governo de Jair Bolsonaro, ela disse, em recente entrevista à jornalista Géssica Brandino, do Nexo, que a charge tem feito um “contraponto à piração do discurso” do presidente.

“Ele é uma pessoa grossa, estúpida e mal-encarada, faz questão de cultivar esse tipo de coisa e falar as imbecilidades que ele tem falado… Os chargistas têm feito o que podem. O papel da charge é reforçar determinadas posições. Que os chargistas tenham posições políticas é mais ou menos reconhecido. Acho difícil você encontrar um chargista ou uma chargista que tenha posição de neutralidade e equidistância. Não tem isso”, afirmou.

“Não existe imparcialidade. É um mito. O chargista é um moralista, ele tem sua concepção de mundo e levanta o pano da realidade para mostrar o que está por trás dele, mas sob seu ponto de vista. A charge, como qualquer constructo da sociedade, depende do ponto de vista a partir de onde o chargista está sentado. Mesmo a ciência, tão absoluta nas suas verdades compreende isso muito bem”, reforça Renato Aroeira. Para ele não é possível fazer charge com neutralidade “diante do fascismo, do preconceito, do racismo, da perseguição as mulheres e aos homossexuais, do autoritarismo, da raiva ao diferente”.

Gilmar concorda. “Não existe charge sem posicionamento. É justamente esse o sentido desse trabalho. Protesto, reflexão, humor, debate… Se não fizer esse tipo de ação não é uma charge e sim uma ilustração editorial”, diz. Em sua opinião, é papel do chargista apontar os deslizes do poder e, especialmente, os ataques à pluralidade. “Não tem como ser imparcial. Essa linguagem gráfica tem por obrigação se posicionar contra qualquer tipo de ação totalitária, preconceituosa, racista e tantos ‘istas’ por aí”.

"Um autor que se pretende relevante não pode se omitir quando vê a República sendo demolida. Ele tem que ser o primeiro a pegar os ancinhos e tochas e ir até a casa do monstro para ver o que está acontecendo", diz Benett. Para ele, há uma falsa ideia de que o chargista seja como um bobo da corte, que brinca com assuntos de adulto e depois se esconde por trás da imagem de ‘palhaço’. "O chargista tem que ter convicções claras das bandeiras civilizatórias que ele defende. A saber: democracia, liberdade de imprensa, defesa de minorias, liberdade de expressão, e por aí vai", diz.

A ideia da charge como uma ferramenta carregada de "posicionamentos" que levam o leitor a refletir sobre determinado tema também encontra ressonância na forma como Jota Camelo entende a atividade. “Não existe neutralidade, ou imparcialidade, principalmente no jornalismo, pois ideologia é como sotaque: todos acham que não têm, mas têm. Por isso, não consigo imaginar um chargista sem posicionamento”, diz, e vai além: “Dizer-se imparcial diante do fascismo é o mesmo que validá-lo. Como diz um ditado alemão: se há dez pessoas numa mesa, e um nazista chega e toma assento, e ninguém se levanta em protesto, então há onze nazistas numa mesa. Acho uma bizarrice sem tamanho dizer-se chargista político imparcial. Política é luta de classes, e a luta de classes é como um jogo de futebol: seria surreal imaginar um jogador imparcial, que numa partida não se preocupa em saber de que lado deve marcar o gol. Por isso, me intitulo como ‘chargista de esquerda’ para que todos saibam de que lado estou jogando”, avisa.

Ricardo Coimbra discorda em parte. “Eu não sei se a charge tem esse papel todo no jornalismo. A charge especificamente, que é necessariamente política, acho que funciona mais como um comentário sobre a pauta jornalística, mas não a substitui. Confesso que me incomoda um pouco essa ideia de responsabilidade sobre o humor. Vejo muito cartunista que desenha achando que charge derruba governo”, diz.

Sobre a questão da “imparcialidade”, sua opinião converge com a da maioria dos colegas. “Se nem o jornalismo dito sério é imparcial, imagina a charge, que é uma elaboração artística e subjetiva sobre os temas de política. Eu acho que toda charge carrega um posicionamento, não precisa nem estar necessariamente diante de fascismo, totalitarismo e preconceito”.

Coimbra faz uma reflexão importante, especialmente diante da polarização que tem dividido boa parte do debate político. “Acho que ter posicionamento não é se render à superficialidade da conveniência político-partidária do momento. O posicionamento da charge é político mas não necessariamente partidário. Eu acho que a charge deve ser contra o poder, seja lá qual for sua linha ideológica. Porque poder é poder. Charge a favor de governo não é charge, é propaganda”.

“O objetivo da charge, além do humor e da crítica, é exatamente o de cutucar, dar uma coçadinha no pensamento do expectador. Uma boa charge é sempre um convite à reflexão”, diz Quinho. Para ele, o desenho atua como um gatilho: “Você olha e a ideia (a carga) é instantaneamente compartilhada. Não importa se você concorda ou não com ela, mas uma vez vista, vai te fazer pensar o porquê. Por isso, há uma característica curiosa nessa linguagem: ela vem se tornando cada vez mais contemporânea à medida que as urgências do nosso tempo vão se tornando mais prementes”, opina.

Quinho sustenta que o senso ético e uma compreensão lúcida da realidade social devem guiar o chargista o tanto quanto possível.  “É até clichê dizer isso, mas é verdade: uma charge nunca deveria ter sua carga voltada contra o oprimido, mas sempre contra o opressor. A ética social aponta para a empatia e não cabe ficar indiferente ao sofrimento, principalmente quando ele é impingido por uma força tirânica. Ficar em cima do muro enquanto vê a sociedade ser fustigada pela idiocracia, pelas barbaridades e preconceitos vomitados por um presidente belicoso e seus filhos, ao meu ver não é ser ‘imparcial’ – é uma baita covardia mesmo”, dispara.

O fato é que não dá pra deixar de lado todo o arcabouço de crenças e convicções que formam o artista, muito menos sua reação emocional sobre os fatos. “O caminho para se produzir algo assim está carregado de emoção e indignação, é a transpiração do que você sente e defende, digo por mim. As vezes para o autor funciona como um instrumento de desopilação necessário para continuar respirando normalmente depois da conclusão e publicação”, diz Gilmar.

Redes sociais e memes

Apesar da crise do jornalismo impresso, plataforma de surgimento da charge, o gênero não sofreu revezes. A internet e as redes sociais mostraram-se searas propícias para a sua disseminação, dando espaço generoso a sua acidez, humor e crítica político-social.

Gilmar se diz à vontade na rede. “São os canais de comunicação do momento, dinâmicos, rápidos. E o mais legal é que você é o seu próprio editor, tem autonomia para publicar a charge ou a opinião que defende sem sofrer interferência. Grande parte das charges publicadas em jornais são meramente ilustrativas por sofrerem a censura de interesses políticos e econômicos dos veículos de imprensa. Com as redes sociais, temos esse trabalho veiculado de maneira mais contundente. Tem que usar essa ferramenta com inteligência e ética”.

Jota Camelo apostou tanto nas redes sociais que resolveu publicar diariamente por elas, dando livre acesso a veículos para que publiquem seu material. “Comecei a fazer charges políticas no final de 2015, um ano antes do golpe de 2016”, explica. Desde então, decidi publicar charges diárias e permitir que qualquer veículo de comunicação as publicasse de graça. Por isso, criei uma conta no apoia.se para que eu pudesse me dedicar ao ativismo político”. Camelo sustenta que as redes sociais são uma plataforma que, apesar de “monitoradas e controladas pelo imperialismo americano”, são importantes para a democracia popular. “Hoje, as redes sociais se tornaram a grande arena onde realmente se discute os problemas políticos e econômicos do Brasil”.

“Elas têm um alcance que a mídia impressa nem pensa em alcançar. Os portais de notícias, que restringem o acesso dos leitores ao conteúdo, também atingem apenas o público do jornal. As redes sociais democratizam um pouco mais nosso trabalho. Se bem que acho que, a bem da verdade, nos usam como conteúdo gratuito. Mas nesses tempos tenebrosos isso é o de menos”, diz Benett.

Renato Aroeira diz que há anos não publica em veículos impressos, e que as redes sociais passaram a ser o canal de disseminação da charge por excelência. “Hoje, eu só publico nas redes. A única maneira de distribuição das charges, hoje, são as redes sociais. Mas, elas também já trazem o sucessor das charges, os memes”.

Ricardo Coimbra reforça: “Eu acho que a dinâmica das redes sociais, esse algoritmo que favorece a polêmica, sobretudo política, favorece muito a disseminação das charges. Acho que o espírito da charge é, em certa medida, muito próximo dos memes. Hoje noto que a estrutura de muitos memes é uma espécie de comentário político, uma espécie de charge. Outro dia vi um pessoal mais jovem se referindo a uma charge do Aroeira que estava circulando nas redes como um ‘meme interessante’.”

Na opinião de Quinho, a informação, hoje, circula em ritmo frenético. Quase ninguém dispõe de tempo para textos longos ou ficar estacionado diante de tarefas demoradas. A linguagem da charge, segundo ele, se fortalece neste ambiente. “Eu, que publico há 25 anos, peguei a fase de transição entre impresso e digital. Com a chegada da internet, os jornais foram perdendo grandes tiragens, enquanto a informação digital foi ganhando leitores, por sua praticidade e velocidade. Hoje, noto que o número de visualizações de algumas das minhas charges publicadas nas redes ultrapassa em muito o de qualquer tiragem impressa, o que eu acho muito bom”, afirma. Para ele, o próprio aparecimento dos memes, e seu sucesso, são a prova de que as pessoas buscam incessantemente a comunicação acelerada através do humor. “As charges nunca tiveram tanta possibilidade de alcance como agora e talvez estejam no seu momento mais propício. Pra nossa felicidade”, finaliza.

Em sua entrevista ao Nexo, Laerte também tocou no assunto. Disse que os memes fazem parte de um fenômeno de acesso ampliado à linguagem da agressividade e do grafismo. “São uma coisa tipicamente da internet, mas não foram criados na internet. Nos anos 70 tinha uma coisa que era muito manjada que se chamava ‘foto-fofocas’. Eram memes. As pessoas pegavam fotos de políticos ou de artistas e punham balões de falas, com pequenos textos. Era a própria filosofia do meme”.

Laerte falou também sobre o alcance que as redes sociais propiciaram ao trabalho dos chargistas, antes limitados aos assinantes ou leitores assíduos dos jornais e revistas impressos. “Quando eu vejo que uma tira que eu publiquei alcançou 10 mil likes, por exemplo, eu piro! Ou até quase 100 mil visualizações… Nem nos mais loucos sonhos dos anos 80 eu achava que ia conseguir isso”.

Leia aqui uma entrevista com Aroeira.

Leia aqui uma entrevista com Gilmar.

Leia aqui uma entrevista com Jota Camelo.

Leia aqui uma entrevista com Ricardo Coimbra.

Leia aqui uma entrevista com Benett.

Leia aqui uma entrevista com Quinho.


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