28/03/2024 - Edição 540

Poder

A incontinência verbal de Guedes

Publicado em 14/02/2020 12:00 -

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Muita gente que ouviu o penúltimo desastre verbal de Paulo Guedes ficou tentada a viver no país que ele descreveu, seja lá onde for. Com dólar a R$ 1,80 ou acima de R$ 4,30, o Brasil descrito pelo ministro não existe. Esse país em que, dependendo da cotação do câmbio, as empregadas domésticas são compelidas a optar entre uma visita ao Mickey Mouse na Disneylândia ou um final de semana numa praia nordestina é ficção.

No Brasil real, empregadas domésticas flertam com o desemprego. A maioria das que conseguem arranjar trabalho não tem registro em carteira. E recebe rendimento médio de R$ 897, segundo o IBGE. Isso é menos do que o salário mínimo. Quer dizer: não sobra dinheiro para a viagem. O que sobra é mês no fim do salário. Com suas declarações preconceituosas, o ministro da Economia não leva pobre ao exterior, mas empurra o Banco Central para o mercado, forçando-o a atuar quando a cotação do dólar bateu em R$ 4,38.

Paulo Guedes não é um neófito. Egresso do mercado, ele sabe que os especuladores estão sempre a postos para transformar arroubos ministeriais em lucro fácil. Deveria parar de fornecer material. Falou sobre câmbio, que no Brasil é flutuante e está sob a responsabilidade do Banco Central. Liberal, deu palpites preconceituosos e desnecessários sobre o modo como trabalhadoras pobres devem aplicar um dinheiro que não possuem.

O ministro da Economia exagera nos tropeços verbais. Já ecoou Jair Bolsonaro para chamar de feia Brigitte Macron, a mulher do presidente da França. Levou aos lábios uma sigla tóxica: AI-5. "Não se assustem se alguém pedir o AI-5", ele disse. Forneceu munição aos inimigos da reforma administrativa ao chamar servidores de "parasitas" em timbre genérico. Agora, se aventura no campo social.

A reiteração vai transformando o que parecia ser uma sequência de deslizes verbais num caso de incompetência. Se Paulo Guedes fosse uma empregada doméstica seria do tipo que coloca sal numa lata de açúcar onde está escrito café.

Falta bom senso

Chamado de Posto Ipiranga, Guedes ainda não conseguiu abastecer Bolsonaro de conhecimentos básicos sobre economia. Mas assimilou rapidamente um hábito deplorável do chefe. A exemplo do presidente, o ministro da Economia passou a falar dez vezes antes de pensar. Quando a pessoa não pensa no que diz, acaba dizendo o que realmente pensa.

Ao celebrar a mistura de juros baixos com dólar alto como o novo normal da economia brasileira, o ministro soou adequado enquanto se manteve na seara técnica. Realçou, por exemplo, que o câmbio valorizado impulsiona as exportações brasileiras. Tropeçou na língua, porém, ao tentar trocar seu pensamento em miúdos.

"Não tem negócio de câmbio a R$ 1,80. Todo mundo indo para a Disneylândia, empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada", ralhou Paulo Guedes. "Pera aí. Vai passear ali em Foz do Iguaçu, vai passear ali no Nordeste, está cheio de praia bonita."

O ministro oscilou entre a logorreia, que é a compulsão para falar demais, e a demofobia, que é a aversão ao povo. Coisa decepcionante e inútil. Decepciona porque esperava-se de Paulo Guedes que funcionasse como contraponto sensato aos arroubos de Bolsonaro. É inútil porque as empregadas domésticas que conseguem salvar o emprego ralam duro para encher a geladeira, não para visitar o Mickey Mouse.

Na semana passada, o ministro havia comparado, em timbre genérico, servidores públicos a "parasitas". A péssima repercussão levou-o a pedir desculpas. Alegou que o comentário fora retirado de contexto pelos jornalistas. Lorota. Nas pegadas do sincericídio, subiu no telhado a reforma administrativa. Bolsonaro resiste em enviar uma proposta do governo ao Congresso.

A essa, somam-se outras declarações discriminatórias proferidas por ele no últimos meses: como dizer que pobres são responsáveis pela destruição do meio ambiente, afirmar que pobre não sabe economizar e insinuar um AI-5 diante do risco de manifestações contra suas reformas.

Na sequência, enfiou as domésticas em sua prosa ao discursar num seminário, em Brasília. A certa altura, declarou: "Não estou ligando muito para os maus modos do presidente, eu tenho maus modos também, vivo falando besteira. A forma a gente erra, mas o importante é o conteúdo."

Pode-se até tolerar a besteira. O difícil é aceitar quem se orgulha dela. É uma pena. Mas o Posto Ipiranga já não consegue abastecer nem a si mesmo de meio litro de bom senso.

Dunker explica

"Paulo Guedes diz coisas inapropriadas, mas elas são dirigidas para um determinado setor da elite econômica, um grupo que compreende da mesma maneira que ele a subnarrativa do lugar de ricos e pobres. Deixa claro que eles precisam se aliar contra os pobres, que usam demais os serviços públicos, que andam demais de avião, que vão a lugares que não deviam ir."

A avaliação é de Christian Dunker, psicanalista e professor titular do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Ele é um dos coordenadores do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP e ganhador do prêmio Jabuti pelo livro "Estrutura e Constituição da Clinica Psicanalítica".

"Ele fala sobre 'parasita' no momento da entrega do Oscar, quando o filme sul-coreano 'Parasita' estava na cabeça de todo mundo, filme que jogava com a ideia de usurpação do poder. Parasita, filme sobre pobre e ricos, emerge como metáfora. Ele joga com um público que se identifica com a elite, aquele público que tem uma equação na cabeça, de que o Estado está roubando a gente. Isso fica claro no caso das empregadas domésticas viajando à Disney. Pois tem 'parasita' em nosso lugar", analisa Dunker.

Para Guedes, segundo o professor, "economia é economia, moral à parte". E, como a moral dupla de Freud, uma coisa é a corrupção dos outros, outra é a que a gente faz. Uma coisa é os outros levando vantagem, a outra é a vantagem que nós levamos.

"Com o emprego que não cresce e seus projetos polêmicos no Congresso, Guedes tem que desviar a atenção para alguma coisa. Caso contrário, começam a aparecer suas anáguas."

Leia trechos da entrevista:

Por que o ministro Paulo Guedes ataca pobres em suas palestras e declarações?

Depois que expõe suas teses, ele precisa dizer algo para "ganhar" o interlocutor e acaba soltando essas ideias. Com Lula, eram as metáforas de futebol, que faziam com que a ideia, que já tinha sido entendida cognitivamente, fosse compreendida relacionalmente. É o momento do "tá entendendo ou quer que explique melhor?" É a irrupção do nível metafórico, uma vez que o pacto da comunicação requer, de quando em quando, um momento fático.

Aí se denuncia mais claramente com quem a pessoa está falando, qual o destinatário, o público-alvo com o qual ele quer fechar o "contrato". Ele diz coisas inapropriadas, mas elas são dirigidas para um determinado setor da elite econômica, um grupo que compreende da mesma maneira que ele a subnarrativa do lugar de ricos e pobres. Deixa claro, com isso, que precisam se aliar contra os pobres, que usam demais os serviços públicos, que andam demais de avião, que vão a lugares que não deviam ir.

Isso vale para a questão dos funcionários públicos, que ele chamou de "parasitas"?

É interessante notar que ele fala sobre "parasita" no momento da entrega do Oscar, quando o filme sul-coreano Parasita, que era candidato e acabou ganhando, estava na cabeça de todo mundo, filme que jogava com a ideia de usurpação do poder – da mesma forma que o documentário brasileiro Democracia em Vertigem. Parasita, filme sobre pobre e ricos, emerge como metáfora. Ele joga com um público que se identifica com a elite, aquele público que tem uma equação na cabeça, de que o Estado está roubando a gente. É o interlocutor neoliberal por excelência. Isso fica claro no caso das empregadas domésticas viajando à Disney. Pois tem "parasita" em nosso lugar.

Uma metáfora de doença?

Qual a origem do mal? A trabalhadora empregada doméstica, os funcionários públicos, os pobres. Guedes tenta mostrar ao interlocutor que esse é o problema. E a solução passaria por excluirmos e deixarmos de fora esses grupos, o que – óbvio – é segregativo e excludente. É importante ler a emergência dessas declarações de Paulo Guedes sempre olhando para o que Jair Bolsonaro disse um pouco antes. Pois o que o presidente fala no plano moral, Guedes replica no plano econômico. E aparece, aí, o segundo contrato que ele tem, não com o seu grupo social, mas com o seu próprio chefe.

A quantidade de trabalhadoras empregadas domésticas com recursos para ir à Disney é microscópica. Mesmo assim, a categoria foi lembrada pelo ministro como exemplo. Por quê?

Porque, para ele, a origem dos problemas do país é que tem gente fora do lugar. É metafórico. Imagine se todas elas começassem a fazer isso, o que iria acontecer? Ele não está pensando como economista, pois, se isso acontecesse de verdade, seria uma alavanca para a economia. Teríamos uma categoria gastando mais dentro e fora do país, garantindo mais fluxo e mantendo a economia aquecida. Mas ele está satisfeito com a circulação reduzida. Acredita que a democracia e o progresso é coisa para poucos.

Se a gente pegar o que Guedes está dizendo e colocar na boca de um economista qualquer, isso seria satirizado e a pessoa considerada por todos como alguém anacrônico. Mas, nesse tipo de discurso voltado a esse público, essa narrativa funciona. Porque está produzindo continuamente inimigos que não querem que o Brasil cresça. É parte de um discurso paranoico.

Então não é um lapso?

É uma emergência do inconsciente. No momento em que o discurso dele dá uma "fraquejada" – para usar uma expressão de Bolsonaro – é que essas coisas aparecem, que ele as deixa entrar. Claro que isso tem que vir com uma enunciação. E, daí, aparece o desejo censurado, emergindo na estrutura de algo que, para ele, é uma piada. Para contar a piada e ela dar certo, tem que acertar a mensagem ao público-alvo e fazer uma remoção provisória da censura, uma suspensão rápida do recalcamento. Ele associa isso aos discursos do Bolsonaro, porque há um ganho de autenticidade.

Como isso é percebido junto a outros públicos, uma vez que Bolsonaro tem suporte considerável na classe média baixa, muitos dos quais sonham levar os filhos à Disney?

Não sei se você vai lembrar a propaganda do jogador de futebol Gerson [dos cigarros Vila Rica, de 1976, que levou à criação da "Lei de Gerson"]. Ele diz uma frase que ficou célebre: "gosta de levar vantagem em tudo, certo?" Esse "certo" é o vacilo narrativo do Guedes, que sela um pacto com o outro.

O que ele está dizendo é que "economia é economia, moral à parte". E, portanto, vamos fazer o que for preciso para continuar a ganhar e faturar. Com isso, vai haver uma espécie de distinção entre o que acontece e o que vamos falar a respeito. A identificação que ele causa não é com o conteúdo, mas com a dissociação. É como Freud descreveu a moral dupla: os homens podem trair, as mulheres, não. Isso acaba sendo sempre a resposta do governo na área econômica, para que uma coisa não seja ligada à outra. Uma coisa é a corrupção dos outros, outra é a que a gente faz. Uma coisa é os outros levando vantagem, a outra é a vantagem que nós levamos. Nós e eles.

Mas o discurso dele está começando a fazer água, ficando entrópico. No começo do governo, estava preservada a ideia de que ele cuidava da economia, e ficava de longe das loucuras. Quando foi ao Congresso defender suas pautas, descobriu-se que não conseguia falar com as pessoas usando a linguagem dele. Agora, a pressão por resultados está aumentando, e, com ela, a fervura. Consequentemente, vai se aproximando da retórica do Bolsonaro para sobreviver.

Mas Bolsonaro foi eleito, ele não.

Com o emprego que não cresce e seus projetos polêmicos no Congresso, Guedes tem que desviar a atenção para alguma coisa. Caso contrário, começam a aparecer suas anáguas.


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