29/03/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

Eu sou a doméstica do Guedes

Publicado em 12/02/2020 12:00 - Rodrigo Amém

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Minha família nunca foi pobre. Filho de funcionária pública e jornalista, sempre viajei nas férias, sempre tive mais brinquedos do que sabia o que fazer com eles. Casa relativamente grande, própria. Escola particular. E, é claro, empregada doméstica. Mas mesmo nessa situação de considerável privilégio, em tempos de abertura política e hiperinflação, visitar os parques de Orlando era um delírio de infância. Ninguém que eu conhecia tinha ido à Disney. Muito menos nossas empregadas domésticas. 

Essa situação só mudou com o plano Real, que mudou muitas outras coisas também. A primeira vez em que fui à Disney World foi em 1994. Minha mãe me enviou num desses grupos de excursão de adolescentes. Coisa que, à época, era novidade. Levei 800 reais para gastar em 15 dias de montanhas-russas e consumismo americano desvairado. Comprei tudo que quis e sobrou um pouquinho. 

Anos depois, comecei a trabalhar como guia de turismo e levei um grupo de quase 120 adolescentes a Orlando e Miami. Uma alternativa popular às tradicionais festas de debutante que permitia aos jovens conhecer os famosos parques da Flórida por um preço acessível, boas condições de pagamento e sem, necessariamente, levar a família toda. Ir à Flórida era mais barato do que ir à Fortaleza. 

E mesmo nesses tempos de "festa danada", eu lhe asseguro que empregadas domésticas não iam à Disney. Por várias razões. A começar pelas óbvias: o salário de empregada não é essa "festa danada" toda. Em 1997, por exemplo, o salário mínimo no Brasil girava em torno de 120 reais mensais. Sustentar uma família e ainda poupar para uma viagem de férias com esse valor é um feito econômico notável até mesmo para alguém com doutorado pela Universidade de Chicago. 

Outra razão é a informalidade: não é novidade para ninguém que a maioria das empregadas domésticas no Brasil não tem carteira assinada. Você consegue imaginar uma diarista sem comprovante de vínculo empregatício passando pela entrevista de visto para turista na embaixada Americana? Eu também não.

Então, quando o Ministro da Economia Paulo Guedes fala que, quando o dólar era mais baixo, tinha empregada doméstica indo pra Disney, obviamente não está sendo literal. Guedes faz uso de hipérbole, um recurso de oratória muito frequente nos improvisos dos membros do atual governo. 

Guedes sabe que não havia empregadas domésticas embarcando para a Flórida, mas essa é a piada. Não se refere a esta categoria, mas a todas as pessoas que, em tempos dourados de hiperinflação e ditadura, não tinham condições de realizar esse sonho de consumo, resguardado aos filhos da verdadeira elite. 

O termo "empregadas domésticas" no discurso do ministro é uma metáfora para um grupo bem maior. Profissionais autônomos, jornalistas, professores, enfermeiras e micro-empresários em geral. Guedes não estava reclamando da migração turística das faxineiras, mas da diminuição do fosso social de consumo entre a classe média e a elite. 

As "empregadas domésticas" na fala do Guedes eram eu e você, amigo leitor e cliente das CVCs da vida. 

Talvez seja exagerado afirmar que Guedes ache um absurdo a classe média frequentar os destinos turísticos favoritos da sua turma. Sinceramente não acho que seja esse o ponto, muito embora a sua oratória de "tiozão do churrasco que miraculosamente concluiu um doutorado" tenha explicitado seu desprezo pelas bases da pirâmide. Mas o raciocínio dele é mais pragmático e egocêntrico do que preconceituoso. 

Para Guedes, se o câmbio favorece as exportações, favorece a indústria, a agropecuária, o rico empresariado brasileiro. Em outras palavras, seus amigos. De bolso cheio, sua galera vai continuar com os tapinhas nas costas, os jantares chiques em sua homenagem e os números da economia devem apresentar melhora, ainda que ligeiramente. 

Se, pra ficar bem na foto com seus parças, o Guedes precisa mandar 80% da população passear em Cachoeiro do Itapemirim, pode preparar as malas, amiguinho. Vamos todos trocar Mickey por Roberto Carlos.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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