24/04/2024 - Edição 540

Saúde

Os desafios para a venda e o uso da maconha medicinal no Brasil

Publicado em 11/02/2020 12:00 -

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A primeira crise de epilepsia do paulista Guilherme Barreto, 21 anos, foi aos 2 meses de vida. Desde então, as convulsões — que chegaram a 300 em único dia — e um coquetel de remédios passaram a acompanhá-lo: do mais básico tratamento com fenobarbital ao custoso topiramato, cuja caixa chega a custar R$ 600, nada surtia efeito. O estrago em seu cérebro por causa das crises e da quantidade de remédios prejudicou seu desenvolvimento. Guilherme nunca aprendeu a falar.

“Era difícil lidar com a sensação de morte [de que Guilherme poderia morrer] o tempo todo”, diz Daniela de Oliveira Costa, mãe dele. “Eu já tinha perdido o que ninguém pode perder, que é a esperança.” Foi quando, em 2014, ela viu uma reportagem na TV sobre o caso da menina Anny Fischer, de Brasília, que tinha crises de epilepsia parecidas com as de Guilherme. Sua família brigava na Justiça pelo direito de importar o óleo de canabidiol (CBD), um produto derivado da cannabis, que ajuda a controlar as crises.

A ciência ainda não tem uma explicação definitiva para como exatamente o CBD atua no cérebro — uma teoria aceita é que ele se conecta a receptores nos neurônios que provocam a crise epiléptica, impedindo que entrem em atividade. Mas já há diversos estudos e experimentos que apontam a eficácia da substância para o tratamento de algumas doenças, entre elas a epilepsia.

Um caso em 50 milhões
Com a esperança de tratamento recuperada, mesmo sem saber direito do que se tratava, Daniela tomou para si a batalha de conseguir trazer o CBD para o Brasil, nem que fosse para ao menos experimentar. No processo, conheceu outras milhares de mães que tinham o mesmo objetivo.

“Foi estranho, porque até então achava que o Gui tinha algo muito raro, e de repente vi pessoas que contavam histórias de filhos, sobrinhos, irmãos com as mesmas condições”, diz Daniela. Cerca de 50 milhões de pessoas sofrem com epilepsia no mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Foram necessários quatro meses e um calote em uma tentativa de importar o CBD ilegalmente do Uruguai até que Daniela finalmente vencesse na Justiça o direito de importar o óleo, que custa US$ 445 por tubo de 10 gramas (Guilherme precisa de dois por semana), mais os custos de importação.

Ela foi a primeira pessoa do estado de São Paulo a obter a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para importar o medicamento. No dia 6 de agosto de 2014, deu ao filho a primeira dose de óleo de canabidiol, e com o novo tratamento ele passou os quatro meses seguintes sem nenhuma crise.

Agora vai?
A história de Guilherme e Daniela é uma entre milhares que contribuíram para a aprovação, em dezembro de 2019, de uma nova regulamentação da Anvisa que permitirá a venda de produtos derivados de cannabis em farmácias. A medida começa a valer a partir de março de 2020.

A resolução, que vale por três anos, criou uma categoria especial para os chamados “produtos derivados de cannabis”, que fica entre os suplementos alimentares e os medicamentos. Diferentemente dos remédios convencionais, esses produtos não vão precisar passar por ensaios clínicos padronizados, já que ainda são considerados em fase de pesquisa. Atualmente, só há um medicamento à base de cannabis registrado no país, o Mevatyl ou Sativex (nome comercial), que custa cerca de R$ 2.500.

As empresas que quiserem importar os produtos prontos, ou a matéria-prima para fabricação em território nacional, deverão solicitar uma autorização sanitária. Caso aprovados, eles seguirão a mesma cadeia mercadológica de medicamentos de controle especial, com a comercialização restrita à retenção de receita, que deve ser renovada a cada 60 dias.

As farmácias interessadas em vendê-los não precisam pedir qualquer autorização específica mas, diferentemente dos medicamentos, os produtos derivados de cannabis não estão sujeitos a controle de preço. O plantio da matéria-prima em território nacional continua proibido.

“A medida é um aceno às possibilidades terapêuticas dos produtos da cannabis, mas não tem relação com o uso recreativo da maconha”, ressalta Meiruze Sousa Freitas, da Anvisa. “Ela veio como resposta a um interesse do próprio cidadão de ter acesso a possibilidades terapêuticas e de um apelo dos pacientes junto aos médicos.”

Desde 2014, quando começou a liberar pedidos excepcionais de importação de produtos com canabidiol para uso pessoal, até janeiro de 2020, a agência recebeu cerca de 9 mil solicitações. São pedidos de autorização para o uso dos produtos no tratamento não só da epilepsia, mas também de dor crônica, Parkinson, esclerose múltipla, entre outras doenças.

No entanto, o grande volume de pedidos, somados ao tempo de tramitação do processo — que exigia apresentação da prescrição médica, laudo médico completo, declaração de responsabilidade e esclarecimento assinada tanto pelo médico quanto pelo paciente ou responsável legal, além da comprovação de que os produtos importados eram regularizados em seus países de origem — passaram a provocar uma espera de cerca de três meses até os pacientes terem acesso ao tratamento.

“Com a regulamentação, esse tempo pode cair para 30 minutos: o paciente sai da consulta com a documentação e vai para a farmácia”, é a expectativa do biotecnólogo Gabriel H. Barbosa, analista de projetos científicos e desenvolvimento da HempMeds Brasil, uma das empresas especializadas em importar o canabidiol. Mas ainda não se sabe exatamente os efeitos que a medida terá no mercado.

Na prática, pouco muda
Muitos especialistas estão pouco otimistas de que o uso da maconha medicinal no Brasil acontecerá sem grandes dificuldades com as novas regras. “Temos vários graus de obscuridade quando o assunto é cannabis no Brasil. A Anvisa é um pouco mais clara que o restante [órgãos, secretarias, conselhos…], mas ainda estamos longe de uma regulamentação ideal”, diz o advogado Emílio Figueiredo, da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas. “A regulação nos tira do mesmo lugar, mas ainda é cedo para dizer se é um avanço.”                                                                                                                                                                         
A principal crítica é à proibição do cultivo. “Trazer a cadeia produtiva para o país diminuiria o custo para o paciente e criaria oportunidades”, diz Barbosa. “O produto segue caro, direcionado a uma elite”, é a opinião de Figueiredo. Mesmo assim, ainda que seja cedo para ter dados concretos, tanto a HempMeds quanto a própria Anvisa esperam que o valor diminua em cerca de 35% só pela redução dos custos com importação (que deixará de ser feita individualmente), embalagem, distribuição e aumento da oferta.

Outro entrave é a resistência da comunidade médica aos tratamentos com a cannabis. Em novembro de 2019, o Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou uma nota pedindo cautela na liberação de produtos derivados da cannabis. Em outro comunicado, esse divulgada pouco antes da aprovação da nova resolução, o CFM e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) se posicionaram contra a liberação do cultivo no país.

Atualmente, o CFM proíbe aos médicos a prescrição da cannabis in natura para uso medicinal. O canabidiol, por sua vez, tem autorização para uso sob prescrição médica somente no tratamento de epilepsia em crianças e adolescentes resistentes aos métodos convencionais. Hoje, são poucos os médicos que de fato receitam a cannabis — estimativas não oficiais dão conta de cerca de mil profissionais que a prescrevem. “Há uma grande tensão entre médicos e a Anvisa, mas uma vez que o produto passa a ser registrado, o CFM não pode mais dizer que é ilegal”, diz Figueiredo.

Finalmente, resta saber o quão disponíveis os produtos estarão nas farmácias, tamanhas as restrições de prescrição e preço. Para Figueiredo, é provável que o acesso não seja tão fácil quanto um analgésico, por exemplo. “Seria um grande contrassenso as farmácias não ofertarem esses produtos para os brasileiros”, analisa.


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