19/04/2024 - Edição 540

Brasil

Modelo matemático prevê escalada da violência em 2020; entenda

Publicado em 06/02/2020 12:00 -

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“Mais amor, por favor” é o que pedem letras de músicas, banners espalhados por grandes cidades e até saquinhos de pão em supermercados. Embora pareça piegas, o pedido nunca fez tanto sentido no contexto atual: estamos vivendo uma escalada da violência. E a tendência é só piorar. A constatação parece óbvia em um país com uma das maiores taxas de homicídio do mundo (31,6 pessoas a cada 100 mil), mais de 180 casos de estupro por dia e que desperdiça 5,9% de seu Produto Interno Bruto (PIB) por causa do problema, de acordo com o Atlas da Violência 2019.

Mas o fenômeno não está restrito ao Brasil, muito menos à violência física, em geral a mais lembrada e alarmada quando o assunto é esse. Mais que isso: foi previsto em 2010 por um modelo matemático desenvolvido por Peter Turchin, professor da Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos.

A teoria de Turchin usa variáveis econômicas, políticas e culturais para calcular a instabilidade sociopolítica de uma sociedade (no caso do estudo, a norte-americana). Ela se baseia na chamada structural-demography theory (teoria da demografia estrutural, SDT, na sigla em inglês), segundo a qual revoluções e rebeliões são causadas por pressões ou condições estruturais que crescem aos poucos, como eventos repentinos de liberação ou o estopim para erupções sociais.

Embora não consiga prever os gatilhos, o modelo do professor analisa o crescimento das pressões sociais que favorecem a instabilidade — empobrecimento da população, competição entre elites e enfraquecimento do estado são algumas delas.

Foi o que aconteceu em 1870, durante a Guerra Civil Americana; em 1920, em outra onda de violência nos Estados Unidos; e em 1970, com a Guerra do Vietnã e o Movimento dos Direitos Civis. São ciclos de 50 anos, porque depois de cada período de violência, a paz costuma reinar por uma geração, cerca de 30 anos, que faz o possível para não passar novamente pelas mesmas experiências traumáticas.

Mas isso não dura muito. “A geração assustada pelo conflitos eventualmente morre ou se aposenta, e surge uma nova geração de pessoas que não experimentou os horrores de uma guerra civil e não está imunizada contra ela. Se as mesmas forças sociais internas que causaram o primeiro surto de hostilidade ainda estão operantes, a sociedade acaba em uma segunda guerra civil”, escreveu Turchin. O resultado é que períodos conflituosos tendem a se repetir a cada duas gerações.

Feliz ano novo?

O próximo ciclo seria justamente em 2020 — e as bases para ele já foram lançadas. “Nossa análise retrospectiva das previsões para 2010-2020 mostra que a instabilidade sócio-política nos Estados Unidos, de fato, aumentou fortemente durante essa década. A incidência por ano tanto de eventos não violentos (manifestações antigoverno) e violentos (rebeliões) aumentaram em magnitude depois de 2010”, escreveu Turchin em um artigo publicado no dia 14 de janeiro de 2020. Uma comparação mais ampla que incluiu outros países ocidentais (além dos Estados Unidos) mostrou que a instabilidade aumentou no início da última década.

“Aparentemente, nada previu o surto de violência que vimos a partir de 2010. Como resultado, um grande número de intelectuais declararam o fim da violência, ao menos nas democracias ocidentais maduras”, escreveu o pesquisador. “Essa última década mostrou que tal análise estava errada.”

Um substantivo com muitos adjetivos

Para entender melhor o modelo proposto por Turchin e a escalada da violência, é importante compreender os diferentes tipos em que ela pode se manifestar. “O sentido da palavra não esgota o sentido do termo, que vem do emprego da força”, diz a professora Maria do Socorro Ferreira Osterne, do Núcleo de Estudos sobre Conflitualidade e Violência da Universidade Estadual do Ceará.

Isso significa que essa força pode ser física, psicológica ou moral, para obrigar alguém a fazer o que não quer, explica Osterne. É por isso que a violência recebe diversos adjetivos: ela pode ser social, estatal, política, policial, econômica, física, sexual, psicológica…

Cada sociedade e cultura têm a sua própria manifestação da violência, muito marcada por contextos históricos. A Austrália, por exemplo, tem uma das taxas mundiais mais altas de violência doméstica: por lá, uma a cada seis mulheres já sofreu agressão de um parceiro. Os Estados Unidos só ficam atrás do Brasil quando o quesito são mortes por armas de fogo, e são o país com mais atentados de tiroteios de massa do mundo: a taxa de incidentes por lá é seis vezes maior que em outros lugares, com 31% das ocorrências.

Nos últimos 30 anos, porém, vimos a ascensão de um novo tipo de violência, a difusa, que permeia vários cantos da sociedade. A explicação é do professor José Vicente Tavares dos Santos, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “São as violências entre pessoas que não são consideradas crimes, mas são danosas para as vítimas”, diz Santos. A professora Osterne complementa: “é uma violência simbólica, que está presente em todos os lugares, mas dificilmente é acusada.”

Para ficar mais fácil de entender: é o sujeito que perde as estribeiras no trânsito por alguma bobagem, como a vaga de estacionamento ocupada por outra pessoa; ou o vizinho que deixa uma mensagem agressiva ao casal que anda pelado dentro da própria casa, como um caso que aconteceu em 2018 no Reino Unido. Um presidente que xinga publicamente homossexuais, negros e indígenas. É o que muitos especialistas e a própria sociedade civil vêm chamando de “discurso de ódio”, “intolerância” ou pura e simplesmente, raiva.

O peso do sistema

“Vejo uma forte relação [deste cenário] com o modelo neoliberal radical, a valorização do capital e a troca do ser pelo ter”, opina a professora Osterne. “Está havendo uma inversão total de valores, o capitalismo está em sua versão mais cruel e selvagem, em que tudo é válido para preservar a economia e o mercado. O homem está totalmente subordinado a um sistema que ele mesmo criou.”

A docente não é a única a alertar para os riscos do sistema em que vivemos. Já existe atualmente uma onda de questionamentos ao capitalismo. Entre os críticos está o jornal britânico Financial Times, uma das publicações liberais mais conhecidas do mundo, que defende mudanças no modelo pois, segundo escreveram em um editorial, ele não mais atende aos anseios das pessoas. A combinação de acumulação de renda, desemprego e empobrecimento da população colocam em xeque o próprio sistema — e criam um ambiente de instabilidade social sem precedentes para um estopim de violência, conforme avaliou o pesquisador Turchin em seu modelo de 2010.

Ele mesmo é um crítico do modelo (para o professor da UFRGS, por exemplo, não existem bases para pensar em ciclos, especialmente de forma generalizada), mas defende que prestar atenção a esses fatores pode ser uma maneira eficaz de prevenir a violência.

“Se queremos uma ferramenta confiável de previsão de quando o próximo surto de violência vai ocorrer, o que não queremos é simplesmente contar quantos anos passaram desde o último”, escreveu na análise recente. “Em vez disso, precisamos quantificar as pressões estruturais da instabilidade. […] Ao fornecer um entendimento das causas estruturais profundas de instabilidade sociopolítica e colapsos da sociedade, a SDT também nos dá ferramentas para adotar reformas e intervenções políticas que podem reverter esses fatores que levam à instabilidade.”

Como quebrar o ciclo

Os especialistas brasileiros apontam para a necessidade de políticas públicas que melhorem as condições de desigualdade social, escolaridade e cultura — seja ela o fim de uma cultura de aceitação do emprego da força, seja literalmente o incentivo às manifestações artísticas. A prevenção da violência, entretanto, não se dá com a aplicação de mais violência. “Até agora, a solução encontrada, do encarceramento, não tem dado resultado, nossas prisões hoje parecem escolas da violência”, diz o professor Santos.

Fora da esfera pública, a família tem um papel importante neste sentido. “Se a criança presencia atos de violência entre pais, amigos, às vezes até no ambiente institucional com professores autoritários que estimulam a cultura da violência, esse comportamento se reproduz na vida adulta”, diz Santos.

Não faltam estudos que apontam essa conclusão. Um trabalho feito no Canadá, por exemplo, revisou mais de 20 anos de pesquisas sobre o assunto e identificou que crianças de 3 anos que recebem palmadas mais de duas vezes por mês apresentam um alto grau de agressividade quando chegam aos 5 anos de idade.

A boa notícia para quem teme o futuro (provavelmente violento) que nos aguarda é: mudar o comportamento individual também pode ter efeitos positivos na prevenção da violência. O fator empatia, explica o sociólogo Marcelo Batista Nery, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), é fundamental para evitar comportamentos violentos, por gerar confiança entre as pessoas e maior preocupação com resolver problemas alheios.

O maior defensor dessa teoria é o canadense Steven Pinker, professor de psicologia na Universidade Harvard, autor de Os Anjos Bons da Nossa Natureza, um tratado de mais de mil páginas que mostra que a violência no mundo todo diminuiu nos últimos anos. Embora criticado por diversos especialistas por sua visão extremamente otimista sobre o futuro, Pinker demonstra, com estatística e pesquisas sociológicas, que a benevolência tem, sim, uma influência considerável na evolução da sociedade.

E, ao que parece, estamos cada vez mais longe de comprovar isso na prática. “Uma categoria que está muito esquecida na sociedade brasileira não é só a paz entre as nações, mas entre as pessoas”, diz o professor da UFRGS. Pois é, a sabedoria popular está certa: precisamos, sim, de “mais amor, por favor”.


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