20/04/2024 - Edição 540

True Colors

Como funciona o aplicativo que quer mapear zonas de risco para a população LGBT no Brasil

Publicado em 06/02/2020 12:00 - Andréa Martinelli – Huffppost

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Em fevereiro de 2017, o brutal assassinato da travesti cearense Dandara Kethlen, de 42 anos, chocou o Brasil e o mundo. Dandara levou chutes, pauladas e foi espancada até ser morta a tiros em plena luz do dia em uma rua de Fortaleza (CE). Ela virou símbolo de luta e, agora, seu nome batiza uma nova ferramenta que tem o objetivo de mapear zonas de risco para a população LGBT.

Produzido pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) em parceria com a Antra (Associação Nacional de Transsexuais e Travestis) e a ABGLT  (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), o app Dandarah quer proporcionar um ambiente virtual em que os usuários poderão não só apontar endereços perigosos, mas acionar rede de apoio.

“Como usar essas tecnologias para ajudar a combater a violência contra a população LGBT? Foi essa pergunta que a gente fez e tentou colocar em prática”, diz Angélica Baptista Silva, especialista em saúde digital e pesquisadora da Fiocruz, uma das profissionais responsáveis pelo app.

Ela afirma que a intenção da Fiocruz com a criação de uma ferramenta como o Dandarah é compreender as dinâmicas dos tipos de violência mais recorrentes contra esta população, como criar uma espécie de banco de dados e descobrir qual é perfil do agressor, por exemplo. De acordo com a pesquisadora, é preciso atacar um problema que se perpetua: a subnotificação dos casos.

Até o momento não existe nenhuma legislação que proteja, de fato, pessoas LGBTs ou produza dados oficiais. Não dizem que travesti é bagunça? Travesti não é bagunça. Elas têm os mesmos direitos.Angélica Baptista Silva, especialista em saúde digital e pesquisadora da Fiocruz

Em 2019, o STF (Supremo Tribunal Federal) criminalizou a LGBTfobia, porém, não há medidas que obriguem a tipificação correta de crimes de homofobia, transfobia, ou ataques a gays e lésbicas. Para a pesquisadora, a ausência do Estado traz dificuldades para mapear casos com uso de boletins de ocorrência.

“A gente também pretende mostrar que existe uma organização do movimento social que está provocando o Estado para que ele crie iniciativas de proteção à essa população”, diz.

Além de Silva, outros seis pesquisadores do projeto Resistência Arco-Íris, da Fiocruz participaram da elaboração da ferramenta, financiada por uma emenda parlamentar do ex-deputado Jean Wyllys, no valor de R$ 500 mil.

Desde que foi lançado, em dezembro de 2018, no Rio de Janeiro, o aplicativo foi baixado por mais de 5 mil usuários. Dandarah está disponível, na Play Store, para aparelhos Android e, em breve, estará na App Store, para iOS.

De acordo com a presidente da Antra, Keila Simpson, o aplicativo foi pensado muito antes do assassinato cruel de Dandarah.

O que a gente propõe é iniciar um movimento, gerar dados dessas violências que existem no Brasil, e demandar políticas públicas a partir disso. Esse é só o começo.Keila Simpson, presidente da Antra

O aplicativo passou por testes com cerca de 130 pessoas LGBTs em cidades como Aracaju (SE), Uberlândia (MG), Brasília (DF), Belém (PA), Niterói (RJ), Salvador (BA), Francisco Morato (SP) e Rio de Janeiro (RJ). Entidades parceiras, como a própria Antra e a ABGLT, prestaram consultoria e forneceram conteúdos que estão disponíveis na ferramenta.

A Fiocruz será responsável por produzir informação por meio das informações coletadas no aplicativo, por possuir sistema de segurança de dados e proteção dos usuários.

Como LGBTs podem utilizar o aplicativo de forma colaborativa

No Dandarah, a construção é coletiva. Quem vai apontar as áreas pelo Brasil  como seguras ou perigosas serão os próprios usuários do aplicativo. Para utilizá-lo, basta baixá-lo no aparelho celular e fazer um cadastro ― com opções de respeito à identidade de gênero, assim como a orientação sexual.

E não é só quem sofre a violência que deve sinalizar o perigo. Terceiros que presenciarem ― mesmo que não forem LGBT ― algum tipo de agressão contra travestis, trans, gays, lésbicas e bissexuais também podem fazer registro na plataforma apontando o local e o grau de violência sofrido pela vítima. Isso poderá ser feito ao apertar o botão “Informar violência” no aplicativo.

Há também a opção “Informar local seguro” e, por isso, pode haver equívocos dos próprios usuários. Pesquisadores informam que áreas que são violentas, mas por algum motivo forem apontadas como seguras serão checadas pelo sistema por meio de dados disponíveis e atualizadas pelos próprios usuários.

A ferramenta também dispõe de um “botão do pânico” que pode ser acionado quando o usuário estiver envolvido em alguma situação de agressão intensa e precisar de ajuda imediata. O dispositivo envia uma mensagem de socorro automática para até cinco pessoas de confiança cadastradas no sistema. 

Após receber a mensagem, os contatos de emergência recebem a localização da vítima ― que é possível atualizar em tempo real ―, os telefones da Polícia Militar, dos serviços de resgate e o endereço da delegacia mais próxima de onde o fato aconteceu.

O aplicativo tem funcionalidades elogiadas por usuários mas, em pouco mais de um mês disponível, já conta com avaliações negativas e questões pontuais. Há relatos na Play Store de pessoas que não conseguem fazer o cadastro no aplicativo e que há dificuldade em cadastrar nome social.

“A gente arriscou lançar a plataforma sem a funcionalidade completamente desenvolvida porque a gente tinha prazos de projeto e a gente precisava cumprir com eles”, justifica a pesquisadora da Fiocruz. Segundo ela, melhorias estão sendo estudadas e, em breve, serão disponibilizadas aos usuários.

A produção de dados sobre a violência contra LGBTs

Na falta de dados oficiais sobre esses crimes, monitoramentos de assassinatos e outras violências contra a população LGBT são feitos de forma quantitativa e com base em informações divulgadas na imprensa por entidades da sociedade civil, como o GGB (Grupo Gay da Bahia) e a Antra.

Dados recentes da Antra indicam que 124 pessoas trans, em sua maioria travestis e mulheres trans, foram mortas de forma violenta em 2019. No ano anterior, 163 casos foram contabilizados, o que aponta uma diminuição em 24% das mortes de um ano para o outro. Em 2019, o País ainda continua líder no ranking de nações mais violentas para essa população.

“O que é noticiado é o extremo, o que leva à morte, um dado físico muito forte. E nem todas as mortes chegam às delegacias e às redações de jornal. Além disso, existem várias outras violências que prejudicam a saude mental, física, profissional dessa população e de quem está em volta”, diz Angélica.  

Os dados oficiais disponíveis sobre LGBTfobia no Brasil

Pela primeira vez, em 2019, o Atlas da Violência do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) trouxe dados sobre violência contra a população LGBT. Segundo relatório, cresceu 10% o número de notificações de agressões contra gays e 35% contra bissexuais de 2015 para 2016, chegando a um total de 5.930 casos, de abuso sexual a tortura. O estudo não cita dados específicos sobre bissexuais, lésbicas ou pessoas trans.

Já o canal oficial do governo, o Disque 100, segundo o Ipea, recebeu 1.720 denúncias de violações de direitos de pessoas LGBT em 2017, sendo 193 homicídios. A limitação do alcance do Estado é admitida pelos próprios integrantes da administração federal, devido à subnotificação e falta de dados.

A escassez de dados sobre violência contra a população LGBT+ também ficou explícita no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019. Assim como o Ipea, o relatório também trouxe dados sobre esta população pela primeira vez.

Realizado a partir de pedidos feitos por meio da Lei de Acesso à Informação junto às polícias estaduais, o relatório aponta que menos da metade dos estados brasileiros apresentaram os dados referentes a homicídios, estupros e lesões corporais dolosas desta população. 

Todos os estados do Norte, com exceção de Tocantins, não responderam ao pedido de informação e a maioria dos estados respondeu apenas parte da solicitação.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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