19/04/2024 - Edição 540

Poder

MEC restringe participação de pesquisadores em eventos e bloqueia contratação de professores

Publicado em 31/01/2020 12:00 -

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Desde o ano passado, a gestão Jair Bolsonaro tem vivido uma relação tensa com as universidades públicas e com a ciência. Em abril, o anúncio do bloqueio de verbas pelo governo federal levou professores, pesquisadores e alunos a protestarem nas ruas contra o MEC. 

Nos meses seguintes, o ministro Abraham Weintraub atacou suposto viés ideológico de docentes e estudantes e disse que as universidades são "madrassas" de doutrinação, em alusão às escolas islâmicas. O ministro também afirmou que há plantações de maconha nos câmpus das instituições e que seria necessário ir atrás das "zebras gordas", em referências a professores universitários que teriam altos salários. 

Agora, mais duas ações do Ministério da Educação voltam a atacar a pesquisa e a docência.  Uma portaria publicada no último dia de 2019 restringe o número de participantes brasileiros em congressos nacionais e internacionais, mesmo que a despesa com a viagem não seja do governo. Cientistas dizem que a medida não tem precedente em nenhum lugar do mundo democrático e “impõe uma limitação ao desenvolvimento da ciência”. Procurada, a pasta não se manifestou. 

Carta enviada ao ministério por duas das mais importantes entidades científicas do País, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC), pede a revogação urgente da portaria, lembrando que as reuniões científicas são cruciais para a troca de conhecimento e o estabelecimento de parcerias.

“A portaria foi feita claramente por alguém que não entende como funcionam a pesquisa e os congressos internacionais”, afirmou o presidente da ABC e professor de Física da Universidade Federal do Rio (UFRJ), Luiz Davidovich.

O artigo 55 da portaria 2.227, de 31 de dezembro do ano passado, estabelece o envio de “no máximo dois representantes para eventos no país e um representante para eventos no exterior, por unidade, órgão singular ou entidade vinculada”.

Caso mais pessoas queiram participar, prevê a medida, é necessário solicitar ao MEC autorização especial. E mais: o pedido só pode ser feito “em caráter excepcional e quando houver necessidade devidamente justificada, por meio de exposição de motivos dos dirigentes das unidades”.

A carta assinada pelos presidentes da ABC, Luiz Davidovich, e da SBPC, Ildeu Moreira, pede ao ministro da Educação que reveja a decisão. Segundo Davidovich, a carta explica “pedagogicamente” a importância dos congressos nas carreiras científicas.

“Devido ao crescimento exponencial do conhecimento científico, é comum ter, em uma mesma unidade ou grupo de pesquisa, cientistas que, embora reunidos em torno de um tema, trabalham em projetos e subáreas distintas”, sustenta o documento. “Por isso mesmo, é frequente, em reuniões nacionais e internacionais, a participação de (vários) membros de uma mesma unidade ou grupo de pesquisa.”

Além disso, dizem os pesquisadores, várias áreas da ciência se valem de colaborações internacionais para o desenvolvimento de pesquisas e publicações de maior impacto. “A limitação de participação de, no máximo, dois servidores em feiras, fóruns, seminários, congressos, simpósios, grupos de trabalho e outros eventos no país, e de um representante para eventos no exterior, por unidade, órgão singular ou entidade vinculada, não se adequa à realidade do papel da universidade e das instituições de ensino, pesquisa, extensão, tecnológicas e de inovação no mundo globalizado”, aponta a carta.

O documento ainda destaca que congressos são importantes na formação dos jovens pesquisadores. “A restrição contribuirá para o empobrecimento da formação do jovem cientista brasileiro, fato que não ocorre em nenhum outro país que preze pela ciência e tecnologia. “Não dá para escolher um pesquisador; é um absurdo isso; falta compreensão por parte do ministério sobre como funciona a ciência”, disse Davidovich.  

Segundo a portaria, ainda que as despesas da viagem não sejam pagas pelo governo, a restrição será mantida. “Se não é uma medida de economia, que medida é essa?”, questiona Davidovich. O MEC não respondeu ainda à demanda dos cientistas. A reportagem também procurou a pasta, mas ainda não obteve retorno.

Bloqueio à contratação de professores afeta o funcionamento das universidades

Em meio ao caos das falhas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), que podem afetar o calendário acadêmico das universidades e institutos federais, o MEC deu mais um passo que ameaça a educação pública do país.

O órgão bloqueou a contratação de novos professores efetivos e substitutos e de técnicos administrativos – mesmo os que já estão com processo de seleção finalizado –, colocando em risco o ano letivo de 2020. A medida foi informada por ofício enviado pela Secretaria de Ensino Superior (Sesu) do MEC às instituições no dia 8 de janeiro. O MEC não deu nenhuma previsão de quando os profissionais poderão ser contratados ou se serão contratados.

A Universidade de Brasília (UnB) é uma das prejudicadas. A instituição prevê que, ao longo do ano, precisará repor, pelo menos, 207 vagas docentes e 355 de servidores técnico-administrativos. Em nota, a UNB declara que a medida "é preocupante e dificulta sobremaneira a gestão e a execução do planejamento institucional, além de contrariar o princípio da autonomia universitária, previsto na Constituição".

Além da espera de profissionais que já foram convocados pelos concursos, o grande problema é que com o início das aulas em vista as instituições federais ainda não sabem se terão professores para atender os alunos e disciplinas, uma vez que mesmo a contratação de professores substitutos está vedada. A UNB informa que já há discussões nos departamentos para reduzir a oferta de disciplinas. 

Um exemplo dos problemas que o bloqueio da contratação de novos profissionais pode acarretar ocorre na Faculdade de Educação da UnB, onde a docente Catarina de Almeida está de licença acadêmica de pós-doutorado, prevista em lei, mas não sabe se o departamento terá um poderá contratar um profissional substituto para lecionar as suas disciplinas.

Ela estima que a universidade terá de cortar de sete a oito turmas da Faculdade de Educação.

“Esses alunos vão ser jogados para o próximo semestre, porque a gente não tem como oferecer, não tenho como um professor cobrir a carga horária de dois, três. Isso vai gerando uma demanda reprimida, os alunos não vão ser atendidos, eles saem do fluxo. E se isso continua, a cada semestre, a gente vai tendo mais acumulo de estudantes sem cursar as disciplinas e vai gerando atrasos na formação, na conclusão e na entrada de novos estudantes. Isso gera um problema na instituição inteira, no fluxo na entrada e saída de diferentes cursos. Vai virando uma bola de neve”, aponta Almeida. 

Para a professora, o bloqueio é “muito grave” e faz parte do desmonte do governo na educação pública. “É uma irresponsabilidade, é um projeto de destruição. A sociedade precisa tomar atitude. As universidades precisam judicializar isso. O Congresso precisa tomar atitude.”

Impacto

O argumento do MEC para a proibição da contratação era o atraso na aprovação da Lei Orçamentária Anual de 2020, mas desde o dia 20 de janeiro a previsão de gastos foi sancionada e publicada no Diário Oficial.

“A gente já está receoso. Uma vez que ele já sancionou o orçamento, o governo tinha que ter liberado a contratação. Concursos, inclusive, que já tinham sido realizados, que as pessoas estão à espera de ser nomeadas para tomar posse. Já é a fase final dos concursos, são concursos que já foram realizados. É a suspensão de um processo em curso”, afirma a secretária-geral do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), Eblin Farage.   

O Sindicato explica que a Coordenadoria de Gestão de Recursos Humanos (CGRH) do MEC afirmou que qualquer contratação poderia ser anulada ou ainda considerada irregular frente a Lei de Responsabilidade Fiscal e que as limitações vem da Portaria 1.469, de 22 de agosto de 2019, que obriga as instituições federais a contratar profissionais somente após a liberação dos órgãos do executivo.

“O impacto já é imediato para o semestre. As universidades começam as aulas em fevereiro, outras em março e elas estão com seus quadros de professores descobertos. Isso prejudica o cotidiano da universidade. Sobrecarregando os professores, porque as turmas precisaram atendidas por alguém, não dá para mandar o aluno de volta para casa”, reitera Farage.

Sobrecarga

A representante do sindicato esclarece ainda que a maioria das vagas bloqueadas não são novas, "como o governo tenta desinformar", mas sim de professores que se aposentaram com medo da reforma da Previdência.

“Tem universidade que registrou em um mês mais solicitações de aposentadoria do que ela tinha registrado em todo o ano anterior, por exemplo. Por conta do receio dos professores de serem prejudicados com a reforma da Previdência”, explica Farage. “A maioria dos departamentos não trabalham com folga de professores ao contrário já trabalham com número mínimo ou insuficientes de professores. Então qualquer professor que não chegue tem impacto”.

Farage, que atua como docente da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), denuncia o problema aconteceu no seu próprio departamento. “Todos os concursos que nós tivemos nos últimos dois anos, nenhum é de vaga nova. São só vagas de pessoas que se aposentaram. Então não é que vai aumentar, na prática, vai reduzir o número de professores.” 

Segundo o Andes ainda não é possível ter um levantamento nacional da quantidade de professores e técnicos que estão com a contratação suspensa, nem quantas instituições exatamente foram afetadas. Mas se o problema perdurar o Sindicato deve entrar com ação na justiça. “Nos estamos dando um tempo. Mas, certamente o Sindicato vai tentar alguma ação jurídica para tentar garantir a convocação”, anuncia. 

A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) enviou um ofício à Sesu, no dia 22 de janeiro, reiterando a importância e necessidade das contratações. O órgão ainda não deu nenhum retorno à associação.

Delírio criacionista

Não bastassem os ataques a pesquisa, a docência pública e a ciência, o MEC, sob Weintraub, tem servido de campo fértil para teorias esdruxulas como o pensamento criacionista, baseado na Bíblia e que se opõe a evolucionismo do inglês Charles Darwin. A “teoria” está ganhando cada vez mais espaço no governo de Jair Bolsonaro.

Depois da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, promover a tese de que o homem é uma criação divina e que Deus criou a vida, um novo membro do alto escalão do MEC traz na bagagem intelectual a crítica ao pensamento científico e a defesa de ideias religiosas retrógradas. Trata-se do recém-nomeado presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Benedito Guimarães Aguiar Neto, ex-reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo. No ano passado, num evento na universidade, Aguiar Neto defendeu o criacionismo e disse querer “colocar um contraponto à teoria da evolução e disseminar a ideia de que a existência de um design inteligente pode estar presente a partir da educação básica, de uma maneira que podemos, com argumentos científicos, discutir o criacionismo”. O preocupante é que agora, à frente do Capes, ele pode impor suas teorias como política pública, já que o órgão do Ministério da Educação (MEC), além de oferecer bolsas de pesquisa para mestrado e doutorado, atua fortemente na formação inicial e continuada de professores para a educação básica.

O “design inteligente” ao qual se refere Aguiar Neto é uma teoria atrelada ao criacionismo, totalmente apoiada na fé na criação divina. Essa teoria argumenta que sistemas altamente complexos, como é o próprio homem, só podem ter sido desenvolvidos por um criador inteligente, um designer demiúrgico, que seria o próprio Deus. Teme-se que esse tipo de pensamento, totalmente refutado pela comunidade científica, passe a nortear a educação básica e que se estimule os pesquisadores bancados pela Capes a defender teses criacionistas. Há que aguardar também os novos livros didáticos que o MEC pretende produzir em breve. Na semana passada, Bolsonaro assinou um decreto que autoriza o MEC a produzir o próprio material que distribui para as escolas, sem que haja necessidade de processos de licitação e sem qualquer avaliação externa. O “design inteligente” deve invadir esses livros.

Reação internacional

Até a prestigiada revista americana Science se posicionou em um artigo na sua última edição contra a nomeação de um criacionista para comandar a pesquisa no País. Segundo a revista, a escolha de Aguiar Neto para comandar a agência deixou os cientistas preocupados com a possibilidade de interferência da religião na ciência e na política educacional. A Science lembrou também de Damares Alves, que, no ano passado, declarou que a igreja evangélica perdeu espaço na ciência quando deixou a teoria da evolução entrar nas escolas. Para tentar diminuir o mal-estar na comunidade científica, na quarta-feira 29, Aguiar Neto divulgou uma nota em que diz defender a “liberdade de cátedra”, princípio que tem como finalidade garantir o pluralismo de ideias e de concepções de ensino, especialmente no universitário. “Sem liberdade de cátedra, não há nem a criatividade intelectual, nem as soluções dos problemas nacionais”, afirmou. “O fomento à apropriação e ao desenvolvimento do conhecimento científico e tecnológico dos problemas nacionais serão prioridade na minha gestão”.

Possivelmente a defesa do criacionismo e do “design inteligente” estará incluída entre as possibilidades de liberdade de cátedra e de pluralismo de ideias defendidas por Aguiar Neto. Se for fiel às suas teses, o novo presidente do Capes deve priorizar pesquisas que comprovem que o “design inteligente” é ciência e gastará dinheiro público que poderia estar sendo aplicado em ciência de verdade. O orçamento da Capes para 2020 será de R$ 2,8 bilhões, o equivalente a 67% do total de recursos disponíveis no ano passado. Há mais de um século há um consenso entre os cientistas de que o evolucionismo de Darwin é a melhor explicação para os fenômenos da vida. O próprio Vaticano endossa o pensamento darwinista. Mas, pelo jeito, no Brasil ele está em baixa, o que só serve para aumentar o temor sobre o futuro da educação pública.


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