24/04/2024 - Edição 540

Poder

Trapalhadas no MEC

Publicado em 31/01/2020 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Em meio a uma crise no Ministério da Educação após falhas no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), o secretário de Educação Superior, Arnaldo Lima Junior, pediu demissão na quinta-feira (30). Em carta enviada ao ministro Abraham Weintraub, Lima Junior alega “motivos pessoais” e diz que vai “abraçar um novo propósito profissional”.

A secretaria de Ensino Superior, responsável pelas universidades federais, esteve no epicentro das polêmicas do ministério em 2019, com o bloqueio de recursos pela pasta.

Os problemas no Enem são responsabilidade de outra secretaria no ministério, mas o Sisu (Sistema de Seleção Unificada), também afetado pelos problemas no Enem, estava sob a alçada de Lima Júnior. “Quando assumi a Secretaria, estava ciente da responsabilidade que resultaria desse ato, mas nunca deixei de ousar e nunca fiz nada sozinho”, escreveu o secretário na carta ao ministro.

Logo após a liberação dos resultados do Enem, no último dia 17, estudantes foram às redes sociais reclamar que a nota não era compatível com a correção feita com base no gabarito oficial. No dia seguinte, o Ministério da Educação reconheceu a falha. O erro atingiu 5.974 dos 3,9 milhões de estudantes que participaram do processo.

Sabotagem virou muleta multiuso da era Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro resolveu se pronunciar sobre o chabu do Enem 2019, "apenas" 11 dias após pipocarem as reclamações de candidatos dizendo que suas notas estavam bichadas. Afirmou que a situação está "complicada" e que o governo tem que apurar "se realmente foi uma falha nossa, se tem uma falha humana, sabotagem".

Independentemente do que a (necessária) investigação aponte, houve clara sabotagem. Mas ela foi interna, de seu próprio governo.

Um presidente da República coloca em uma das mais importantes funções do país duas figuras – primeiro, Ricardo Vélez, depois, Abraham Weintraub – claramente incapazes de garantir uma gestão profissional e racional da coisa pública e depois quer que tudo dê certo? Por mais que o bolsonarismo não seja afeito à ciência, deve entender que toda ação leva a uma reação.

Em outras palavras, se você deixar um confeiteiro fazendo o trabalho de um pedreiro, o cliente não pode reclamar se vier uma casa de marshmallow com portas e janelas de chocolate.

Estudantes que se sentiram prejudicados pelos erros no Enem 2019 registraram representações no Ministério Público Federal, exigindo revisão geral da correção da prova, auditoria transparente nos processos e comunicação individual dos resultados.

A seleção pelo Sisu – o Sistema de Seleção Unificado – chegou a ser suspensa pela Justiça Federal e universidades públicas declararam temer o atraso das aulas ou mesmo o não preenchimento de vagas. O MEC recebeu mais de 172 mil reclamações sobre a nota, mas disse que encontrou erros em menos de 6 mil. Estudantes discordam e a novela ainda vai longe.

Weintraub, que não enviou para os candidatos informações sobre a revisão de suas provas, teve a pachorra de atender, via Twitter, o pedido de um simpatizante do presidente que teve a nota da filha averiguada. Este sim recebeu a comunicação do resultado da checagem, dezenas de milhares de outros, não.

Bolsonaro não indicou profissionais da educação gabaritados para o cargo, pessoas que se dedicariam à educação e não à disputa ideológica. Preferiu se rodear de quem gasta mais tempo pensando em agradar seus delírios do que no bom funcionamento da República.

Isso se estivermos considerando que a sabotagem foi não intencional. Pode ser parte de um projeto de país.

Talvez o ato de colocar pessoas incapazes no Ministério da Educação seja o plano de Bolsonaro desde o princípio. Afinal, ele acredita que, para construir um Brasil com valores e princípios conservadores, é necessário destruir primeiro o que havia antes. O que inclui as instituições que garantem o funcionamento da vida cotidiana.

Como travar a fiscalização ambiental para atender a pecuaristas, madeireiros, garimpeiros e grileiros e, depois, se espantar quando o desmatamento e as queimadas aparecerem na mídia internacional e na mesa de investidores estrangeiros.

O problema é que a vida não se interrompe para ver a disputa ideológica passar. O Brasil conta com uma formação precária dos docentes e com alunos que saem do Ensino Médio analfabetos funcionais; assiste ao roubo, à ausência e à baixa qualidade da merenda escolar; paga baixos salários aos professores e não fornece estrutura suficiente em todas as escolas – metade não tem esgoto. Mas, para o presidente, o problema é que os livros têm muita coisa escrita, além de fictícias mamadeiras de piroca.

Como já disse aqui, quando o MEC informou, em abril do ano passado, que a gráfica que imprime o Enem, desde 2009, anunciara falência, quem acompanha a prova ficou apreensivo. Isso já seria um problema desgraçadamente grande se o ministério fosse gerido por um governo racional.

Mas sem planejamento, comando ou autocrítica e tendo sido loteado, na época, para pupilos de um polemista narcisista de extrema direita, a instituição estaria mais vulnerável a falhas. Deu no que deu.

Em meio à crise no Enem e com reclamações de problemas na plataforma do Sisu, Weintraub se dedicou a ofender os historiadores Leandro Karnal e Marco Antônio Villa, postar carta de apoio ao novo partido do presidente, espalhar fake news sobre o jornalista Reinaldo Azevedo, entre outras estripulias. Sim, a cadeira do ministério segue vaga.

Bolsonaro vai descobrir que ele mesmo sabotou o ministério ao tentar fazer dele uma máquina de guerra cultural com o objetivo de ressignificar o passado e controlar o presente. A questão é que a sociedade não está corrompida e degradada, precisando de refundação, como ele pensa. Já o seu governo, sim.

Inacreditável

Quem não consegue acreditar nas coisas em que Jair Bolsonaro acredita não imagina o que está perdendo com seu ceticismo. A metafísica é sempre mais divertida do que esse materialismo tedioso que inspira enredos factuais, nos quais o pau é sempre pau, a pedra é invariavelmente pedra e o Abraham Weintraub é inapelavelmente um ministro inadequado. Teorias conspiratórias são bem mais criativas. Quem resiste a elas acaba se privando dos prazeres que um bom romance pode proporcionar.

No país que se deixa guiar apenas pelos fatos, o Enem virou uma lambança porque Weintraub fez opção preferencial pela inépcia. No Brasil do romance de Bolsonaro, a coisa é mais emocionante. "Nós sabemos que tudo está na mesa", declarou o capitão nesta terça-feira, após retornar da Índia. Você já tem uma opinião formada. Bolsonaro ainda faz concessões à dúvida.

"Eu não quero me precipitar e dizer o que deve ter acontecido com Enem", afirmou o presidente. Para ele, há um leque de possibilidades. Pode ter sido "falha nossa", "falha humana" ou "sabotagem". É curioso notar a forma como o presidente distingue a "falha nossa" da "falha humana". É como se Bolsonaro acomodasse os membros do seu governo num patamar acima do nível em que se encontram os reles mortais que compõem a clientela do serviço público.

Nesse contexto, a hipótese de "sabotagem" compõe o quadro de alternativas para poupar os semideuses do governo do dissabor de ter que admitir que também estão sujeitos à condição humana. Numa entrevista que concedera na Índia, o capitão já havia declarado que "erros no Enem, sempre há." Afirmara também que Weintraub é um ministro "extremamente competente".

Não é à toa que Bolsonaro implica tanto com a imprensa. São muito chatos os jornalistas que insistem em adequar as aparências do Brasil romanceado à realidade do país sem romance. Uma imprensa que adaptasse a realidade às aparências converteria a ficção em versão oficial.

Nessa versão, Weintraub seria um ministro de mostruário submetido a emboscadas de esquerdistas inescrupulosos. Coisa bem mais divertida do que ter que concluir que o vocábulo "sabotagem" virou uma espécie de muleta multiuso da era Bolsonaro.

Infecção Ideológica

O general Augusto Heleno, ministro palaciano, amigo e conselheiro de Bolsonaro, acertou no olho da mosca ao diagnosticar numa entrevista a uma emissora de rádio o problema da pasta da Educação. Nas palavras do general, o ministério está "extremamente contaminado" por ideologias. Precisa ser "descontaminado dos dois lados", ele declarou. A única falha que pode ser apontada na avaliação do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência é a ausência de nomes. O general Heleno não deu nome aos bois.

Com um ano de existência, o governo Bolsonaro já teve dois ministros da Educação. Uma piada, Ricardo Velez Rodrigues, foi substituída por um astro amador de redes sociais, Abraham Weintraub. Os dois foram escolhidos não por suas virtudes técnicas, mas pela identidade ideológica com o polemista Olavo de Carvalho, ideólogo do bolsonarismo. Meteram-se numa guerra contra o marxismo cultural. A ineficiência de ambos vai ganhando a forma de um míssil disparado contra o próprio governo.

Quando um governo faz uma opção preferencial pelo desastre numa área vital como a Educação, fica evidente que o problema não está localizado na Esplanada dos Ministérios, mas no Palácio do Planalto. No momento, quem nomeia e demite ministros é Jair Bolsonaro. Se o ministério está "contaminado" pela ideologia, foi Bolsonaro quem transmitiu o vírus. Se a "descontaminação" demora a acontecer é sinal de que o presidente não está curado da moléstia ideológica.

O caso do Enem reforça a sensação de que a ideologia é o caminho mais longo entre um projeto e sua realização. Abraham Weintraub imaginava ter produzido "o melhor Enem de todos os tempos". Entregou, na verdade, um fiasco gerencial. O MEC falhou na correção das provas. Coube aos estudantes, não ao sistema de checagem oficial, apontar o erro. Ao dizer que a lambança pode ter sido provocada por "sabotagem", Bolsonaro, que foi eleito como solução contra erros de governos anteriores, vira parte do problema.

Trapalhadas

A passagem de Weintraub pelo MEC tem sido marcada por uma longa série de polêmicas, ataques a estudantes, professores, universidades públicas e à União Nacional dos Estudantes (UNE). Sobretudo, é considerada causadora de grave retrocesso na educação brasileira. “Para a educação, 2019 não foi nem um ano perdido, foi de retrocesso”, disse recentemente, por exemplo, o presidente da UNE, Iago Montalvão.

O bloqueio de 30% das verbas do orçamento para custeio das universidades federais foi o primeiro ato de destaque do ministro, que em abril de 2019 substituiu o ex-chefe da pasta Ricardo Vélez Rodríguez: no final do mesmo mês, o MEC anunciou o corte global de R$ 1,7 bilhão das instituições. Como resultado de sua medida orçamentária, Weintraub provocou uma onda de manifestações em mais de 200 cidades de todo o país, reunindo mais de um milhão de pessoas. O governo recuou e as verbas voltaram às universidades.

Outra ação do MEC sob Weintraub foi o corte das bolsas de mestrado e doutorado, que caíram pela metade no orçamento de 2020, de R$ 4,25 bilhões, em 2019, para R$ 2,20 bilhões em 2020. Muitos estudantes abandonaram projetos ou deixaram de ingressar em pesquisas.

Quando o governo recua, os efeitos das medidas são quase sempre graves e irreversíveis, como também observou o presidente da UNE em entrevista à RBA. “Eles recuam, mas o problema é que lançam ataques à educação, propostas que trazem retrocesso, e quando há o recuo já se perdeu todo um período em que poderiam ser criadas políticas públicas.”

Durante sua gestão, o ministro foi pródigo em declarações nada edificantes sobre o ensino público e suas instituições. Para ele, as universidades são antros de “balbúrdia”, abrigam plantações de maconha e produzem drogas sintéticas. A intenção do ministro é “desqualificar o ambiente das universidades”, na opinião do dirigente da UNE. Ele defende ações da polícia nas universidades.

Sobre os professores, Weintraub afirmou, em setembro, que é preciso “atacar a zebra mais gorda”, referindo-se ao salário dos docentes universitários das instituições federais.

Sandices e ofensas

O ministro da Educação tem sido eficaz em protagonizar cenas polêmicas e às vezes “bizarras”. Em post no seu site, a Associação dos Professores da Universidade Federal do Paraná (APUFPR) diz que “as declarações do ministro da educação são bizarras” e que ele “é o ministro de Educação, em toda a história da República, que mais vociferou sandices enquanto ocupante do cargo”.

A entidade enumera as “sandices”, entre elas, o famoso vídeo do guarda-chuva (no qual Weintraub afirmou que queria passar a “mensagem de que chove fake news no MEC); a confusão do escritor Franz Kafka com kafta (prato árabe); a ofensa à mãe de uma internauta; e “dezenas de erros de português em suas postagens e documentos oficiais”.

Para a APUFPR, o ministro “ultrapassou todos os limites da decência e respeito ao cargo” em entrevista a um “blog extremista reconhecido pela sua falta de precisão”, quando afirmou que há “plantações extensivas de maconha” nas universidades federais, “a ponto de precisar de borrifador de agrotóxico”.

No dia da proclamação da República, após enaltecer no Twitter figuras da monarquia brasileira, uma internauta se dirigiu a ele: “Se voltarmos à monarquia, certamente você será nomeado bobo da corte”. Weintraub respondeu: “Uma pena, prefiro cuidar dos estábulos, ficaria mais perto da égua sarnenta e desdentada da sua mãe”.

As ofensas são dirigidas indiscriminadamente a pessoas ou entidades. À UNE, ele fez uma ameaça: “a gente vai quebrar mais uma das máfias do Brasil”. Por isso, foi notificado pelo Supremo Tribunal Federal.

Verborragia à parte, em sua gestão, algumas iniciativas – além das questões financeiras – são frontalmente contra a universidade pública enquanto esteio da democracia. Embora assinada pelo presidente da República, esse é o caso da Medida Provisória 914, editada no final de 2019, que muda o rito para a eleição e nomeação dos reitores das universidades e institutos federais. Por ferir princípios constitucionais como a autonomia universitária (protegida pelo artigo 207 da Constituição), a MP foi duramente atacada no meio acadêmico, incluído o ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro.

O programa Future-se, lançado pelo MEC, foi combatido por toda a comunidade das acadêmica: alunos, reitores, professores e servidores. A proposta fracassou.

Fundeb

Outra questão séria diz respeito ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), fundamental para a educação do país. O Fundeb expira no final de 2020. Apesar de tramitar em comissão na Câmara uma proposta de emenda à Constituição, sob relatoria da deputada Professora Dorinha (DEM-TO) – elogiada até por parlamentares de centro-esquerda –, o governo diz que não concorda com a proposta, amplamente discutida no âmbito do colegiado. O governo não concorda e nada agrega à discussão.

Na semana passada, o site Congresso em Foco publicou matéria segundo a qual “um importante congressista ligado à bancada de Educação da Câmara dos Deputados” afirmou que há indiferença do governo quanto ao Fundeb.

“O único ministro que fala de Fundeb é o da Educação e sem nenhuma capacidade de articulação, tem um estilo que não chama para conversar, construir, agregar para pedir apoio”, diz a matéria. Segundo ela, o “importante congressista” relatou reuniões com ministros e com o presidente Jair Bolsonaro. “De acordo com ele, quando mencionava o tema da renovação do Fundeb, os membros do governo reagiam com indiferença”, informa a matéria.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *