23/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Karnal: “Moro e Dallagnol são dotados de um certo tenentismo”

Publicado em 27/01/2020 12:00 -

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Quase três anos após apagar das redes sociais uma foto na qual aparecia jantando com o ex-juiz Sérgio Moro, o que lhe rendeu críticas e muitas ameaças, o historiador Leandro Karnal afirma que personalidades como Moro e o procurador da República Deltan Dallagnol trazem elementos de um “certo tenentismo” à política brasileira. Trata-se de uma referência ao movimento oposicionista de oficiais do Exército na década de 1920.

“Esse tenentismo é reformador do País. Seja na década de 1920, com tenentes conservadores ou de esquerda, seja depois quando esses tenentes se tornam generais em 1964. Esses tenentes continuam querendo transformar o Brasil, para o bem e para o mal”, compara.

Karnal também diz que a crença em um “papel messiânico” do Estado une o presidente Jair Bolsonaro ao ex-presidente petista Luiz Inácio Lula da Silva. “(É a crença de que) O Estado vai salvar a família, o Estado vai tirar os pobres da miséria, o Estado vai dar emprego, o Estado vai impedir o comunismo, o Estado vai implantar o socialismo: o Estado tem papel messiânico.”

 

Como avalia o primeiro ano do governo Bolsonaro? Durante as eleições de 2018, em entrevista ao ‘Estado’, o senhor identificou um sentimento de “vingança” na sociedade brasileira. Esse sentimento permanece?

Quando Bolsonaro assumiu, houve esse sentimento. Eu sou ligado à universidade e muitos diziam: “Acabou, é o fim, não vai existir mais vida civilizada depois disso”. Acho que a grande surpresa para todos é que o Bolsonaro é um homem que na prática vem cumprindo o que prometia (risos. Nós achávamos que era um pouco discurso de campanha, que era para o eleitorado, que como todo político ia fazer um discurso e depois uma prática mais conciliadora, como o fizeram Lula e Fernando Henrique. O Bolsonaro de fato cumpriu (as promessas). Ele fez uma conversão pessoal porque ele não era um liberal há 30 anos, ele não era adepto de um Estado mínimo, não era um leitor da Adam Smith, com certeza. Ele era um militar com perfil talvez até do desafeto dele, o (Ernesto) Geisel: desenvolvimentista nacionalista estatizante. Agora, o governo é feito por muitas tendências políticas e existe uma coisa completamente diferente, por exemplo, entre o ministério do Guedes e talvez outros elementos do governo Bolsonaro. Mas o mundo não acabou, as coisas seguem.

Bolsonaro na Presidência colocou ou coloca em risco a democracia? Em artigo recente, o cientista político Carlos Pereira afirma que “é possível que as reações da sociedade às transgressões de Bolsonaro às normas de civilidade democrática possam fortalecer ainda mais a democracia”. O sr. concorda com essa ideia?

O Brasil enfrentou um doloroso processo de impeachment do Collor e um doloroso processo de impeachment da Dilma e chega ao governo Bolsonaro, que tem feito declarações que não são as clássicas que se espera de um governo no sentido da defesa do Estado Democrático de Direito. Uma coisa é o discurso, outra coisa é a prática. A democracia, arranhada nos discursos e em algumas práticas, sobrevive. Nós temos instituições. O presidente do Supremo está lá exercendo seu poder por indicação de um partido de oposição a Bolsonaro. A liberdade do Executivo no Brasil é um pouco menor do que as pessoas imaginam, apesar de ter uma quantidade gigantesca de cargos a indicar. A democracia está sempre em risco pela própria existência do Estado, o grande risco democrático é a existência do Estado. Acho que tanto a esquerda tradicional quanto o governo Bolsonaro, mais conservador e de direita, acreditam no papel messiânico do Estado. O Estado vai salvar a família, o Estado vai tirar os pobres da miséria, o Estado vai dar emprego, o Estado vai impedir o comunismo, o Estado vai implantar o socialismo: o Estado tem papel messiânico, vai redimir a sociedade e vai apontar o caminho. Na verdade, o que une Bolsonaro e Lula, entre tantas coisas diferentes, é a crença no Estado.

O presidente não poupa ataques à imprensa e, mais recentemente, tem adotado um discurso vitimizante, dizendo que recebe “pancada” de todos os lados. É uma espécie de “coitadismo” do chefe da Nação?

Eu acho que Bolsonaro erra ao atacar a imprensa. Acho que culpar o termômetro pela febre é sempre uma estratégia ruim. Você deve lembrar que o Estadão era atacado pelo governo Lula por ser conservador, ou por ser antipetista, agora é atacado pelo governo Bolsonaro por ser de esquerda ou antibolsonarista. O principal sintoma que a democracia vai bem é uma imprensa atacada, no sentido de que se a imprensa começar a ser louvada, se os governos começarem a dizer que a imprensa está agindo corretamente e de forma patriótica, aí a democracia terminou. A liberdade de imprensa é algo extraordinariamente basilar, fundamental, estruturante do Estado Democrático de Direito. Eu sinto o governo Bolsonaro e seu primeiro escalão pouco acostumados ao fato de que o exercício de cargo na democracia pressupõe ataques. Se ele sentasse para ler as opiniões dos jornais londrinos sobre o primeiro ministro, um conservador, ele diria que o Estadão, a Folha e a Globo têm filiais em Londres, porque eu achei o tom da imprensa britânica menos respeitoso do que a grande imprensa brasileira. E em nenhum momento o primeiro ministro inglês (Boris Johnson) foi à TV dizer que há um plano orquestrado para acabar com o seu governo. Enquanto houver críticas do governo Bolsonaro à imprensa, eu fecho meu jornal pela manhã feliz, esse Brasil ainda está funcionando.

A soltura do ex-presidente Lula criou uma expectativa de que a polarização seria reacendida no País de que os dois pólos estariam colocados novamente na “arena política”. É este mesmo o cenário que vivemos?

A polarização existe e nunca se apagou. Ela está ligada a uma série de fatores e as redes sociais apenas deram voz a ódios históricos e muito fortes e tradicionais. Esse é um país tradicionalmente violento, acontece que as redes sociais deram muita voz (a esse sentimento). Mas a rua é menos polarizada na prática do que a internet. Vou lhe dar um exemplo pessoal: eu tenho meus haters. Toda a vez que sou entrevistado por um grande órgão, muitas pessoas começam a atacar. Na rua isso não ocorre, é só foto, autógrafo, abraço. Uma única vez, num restaurante no Rio de Janeiro, um cara voltou da porta e disse: “E o Moro hein?” e saiu (risos). Isso é a coisa mais agressiva que eu ouvi na rua esses anos todos.

Pois é, o senhor já foi alvo de críticas nas redes sociais devido a uma foto em um jantar com o então juiz Sérgio Moro. Como avalia a gestão dele nesse primeiro ano à frente do Ministério da Justiça e Segurança Pública? Foi uma decisão correta entrar para a política?

Do ponto de vista técnico, em um mundo equilibrado, como eu disse a ele, o ideal seria não ter se tornado ministro nem de Bolsonaro, nem de qualquer governo. Eu acho que a ação que ele exercia, dentro dos parâmetros dele, tinha um objetivo e tornar-se ministro cria pelo menos aquele problema da mulher de César (“não basta ser honesto, tem que parecer honesto”). Graças às revelações de conversas (pelo site The Intercept Brasil), nós vimos que (os processos) não funcionam dentro da perfeita isenção Acho que nenhum processo funciona dentro da perfeita isenção, mas esse certamente teve registros de que havia um desequilíbrio nas partes E isso não é ilegítimo, a democracia é sempre um jogo de peso e contrapeso políticos e o The Intercept pode ter sua opção política. Em si, esse processo revelou problemas em que especialistas insuspeitos, que não é o meu caso, consideram problemáticos.

O senhor então considera que as críticas à atuação de Moro como juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba têm fundamento?

Eu não entendo de Justiça, mas acho que, lendo todos os especialistas, esses processos poderiam ter ocorrido sem encontros regulares e troca de comunicações entre duas das três partes envolvidas Isso não significa que eu imagino que o ex-presidente Lula seja inocente, mas que para decidir a inocência ou a culpa as condições deveriam ser outras. E esse é o drama da democracia, ela é lenta, é enrolada, tem argumentos, recursos, a democracia demora para lançar seu parecer final. Nas ditaduras de esquerda e de direita elimina-se o inimigo. Em todo caso, isso para mim é uma lição política: a esquerda sempre teve horror ao Moro, já uma parte da população o tinha por herói, notavelmente a classe média brasileira. Todas essas coisas vêm a público e ele ainda é o ministro mais popular do governo O que significa que nós, formadores de opinião, jornalistas, professores não sabemos quem é o eleitor médio brasileiro.

Essa entrada na política torna o ministro Moro um potencial candidato à Presidência?

Ele tem dito que não. Na tradição brasileira isso significa possivelmente que sim. Acho que existem elementos da Justiça brasileira, de figuras como Moro ou como Deltan Dallagnol, que eu também conheço, que são dotados de um certo tenentismo .Esse tenentismo é reformador do País. Seja na década de 1920, com tenentes conservadores ou de esquerda, seja depois quando esses tenentes se tornam generais, em 1964. Esses tenentes continuam querendo transformar o Brasil, para o bem e para o mal. No caso de um grupo como o de Dallagnol, ainda tem o elemento religioso, protestante, que é dotado mais ainda de uma ideia de missão e redenção. Isso pode dar origem a grandes reformas e também a problemas muito grandes, porque as utopias implementadas têm um custo humano gigantesco.

Houve algumas reações, o fim da prisão em segunda instância, a lei de abuso de autoridade, o juiz de garantias… Essa ideia do garantismo jurídico foi reforçada neste ano que passou?

Uma coisa é o debate jurídico de altíssimo nível se nós devemos ou não dar tamanha quantidade de segurança de direitos individuais previstos no artigo 5º da Constituição e se a tentativa de proteger o cidadão de uma injustiça não cria uma injustiça que possibilita ao criminoso agir com mais liberdade. Esse é um debate muito bom. Mas quando o Congresso propõe isso não é isso que está sendo debatido. É colocar uma pedra no caminho para obter melhores recursos, conseguir um ministério, mais verba ou liberar uma emenda. É um jogo político.

O senhor acha que o governo Bolsonaro é comprometido com o combate à corrupção?

Na minha concepção, a postura ideal é aquela assumida pelo ex-presidente Itamar Franco, que tendo um ministro acusado (Henrique Hargreaves, então chefe da Casa Civil) afastou-o imediatamente e mandou investigar. Isso é uma postura para mim de comprometimento. Quando, por exemplo, a Secretaria de Comunicação da Presidência está envolvida, talvez, numa distribuição de verbas e de publicidade com certas características estranhas, a imediata denúncia deveria afastar e investigar. O fato de começar a dizer que o problema é a denúncia, o problema é o mensageiro e não a mensagem, isso é um problema.

O senhor diz que hoje se considera um “isentão”. Há um caminho para o centro no Brasil? Ele é realmente uma alternativa ou é algo que se tornou um “fetiche”?

A opção de centro no Brasil é completamente fisiológica. A palavra “centro” ficou ruim no Brasil. Assim como em 1985 direita era a favor da tortura, o que não é verdade. Falta ao Brasil um perfil conservador, de um partido que seja conservador no sentido clássico da palavra. Conservador significa não se preocupar com os costumes, porque isso é de foro íntimo. Falta ao Brasil uma esquerda comprometida com o Estado Democrático de Direito, que não elogie ditaduras lá fora ou medidas autoritárias. E falta alguém que seja de centro e que não seja fisiológico.

A aprovação da reforma da Previdência é considerada o ponto alto do governo em 2019, embora o maior crédito seja atribuído ao Legislativo?

Acho que existe uma necessidade enorme de ajuste da Previdência. Ela não poderia ser deficitária no Brasil, nós temos uma pirâmide demográfica distinta da Europa. O que ocorre aqui e o que ocorre na França é um choque entre dois modelos de Estado. Um que é mais ausente, que quer que as pessoas poupem para sua previdência e outro que é da tradição brasileira, reforçada de Getúlio para cá, que quer que o Estado garanta essas questões. A Reforma da Previdência e outras reformas são pioradas porque algumas frases pinçadas de declarações de Bolsonaro, como “é muito difícil ser patrão no Brasil” ou “temos que facilitar a vida do patrão” não refletem a realidade. É complicada a burocracia e a quantidade de impostos? Sim. Mas é infinitamente mais complicado ser trabalhador no Brasil. Basta saber se você optaria por ser patrão ou funcionário. Fora da retórica, ninguém optaria ser funcionário. Eu acho que hoje o Congresso, dominantemente, representa os interesses de uma parte da população que quer facilitar a vida do patrão. E é um momento em que as crises como a da Previdência trazem à tona um discurso que deveria ser técnico, mas é de opção política. Porque avança a Reforma da Previdência, mas não avança um milímetro a taxação de grandes fortunas, por exemplo.

Paulo Hartung, ex-governador do Espírito Santo, costuma dizer que vivemos um momento sem precedentes de “autorização social para reformas”. O governo Bolsonaro está sabendo aproveitar essa situação?

Reforma da Previdência via de regra é algo impopular e a gente não viu população na rua. Há pouquíssima organização. Pobres defendendo isso é a mesma lógica do mascote da Sadia ser um peru. É um pouquinho de Síndrome de Estocolmo.

Que leitura o senhor faz do recente atentado envolvendo o Porta dos Fundos? Até que ponto – caso ele exista – uma esquete humorística pode fazer piadas com símbolos religiosos? A Justiça chegou a censurar o filme e depois o presidente do Supremo revogou a decisão. Caso haja esse limite, como ele deve ser posto?

Eu recomendaria ao juiz que censurou que tivesse como leitura um texto que eu gosto muito, que se chama Constituição brasileira. É um texto muito bom, eu dou muita aula sobre ele. Não há censura no Brasil, e a inexistência da censura significa que as pessoas têm direito a dizer inclusive bobagens. A liberdade de expressão é absoluta e a lei estabelece limites. Você não pode fazer apologia ao crime, você não pode defender tráfico de drogas ou pedofilia. O que ofende a religião? Para mim, é muito ofensivo à religião que um líder religioso abuse sexualmente de uma pessoa. Acho que isso ofende mais à ideia da religião do que um especial do Netflix. Ofende mais a Jesus uma pessoa morando na rua. Destrói mais a família o desemprego do que alguém falar de teoria de gênero. O demônio é uma estratégia de propaganda fabulosa.

O documentário de Petra Costa, Democracia em Vertigem, indicado ao Oscar da categoria traz uma visão pessoal da diretora dos acontecimentos políticos que culminaram no impeachment de Dilma Rousseff, o que gerou reações de setores que foram favoráveis ao movimento. É um novo capítulo da chamada “guerra de narrativas”?

Nós temos sempre uma guerra de narrativas. Eu sou brasileiro antes de ter qualquer orientação política, então é óbvio que eu gostaria de ver um filme brasileiro enfim ganhando um Oscar. Não acho que esse documentário seja a melhor coisa produzida no Brasil. Acho que Central do Brasil, Pixote, O Pagador de Promessas, teriam merecido um Oscar de filme estrangeiro há muito tempo

O ‘Estado’ noticiou que o governo prepara um “descarte” de quase 3 milhões de livros didáticos. O presidente recentemente afirmou que os livros didáticos “tem muita coisa escrita” e que são “lixo”. Há uma cruzada do atual governo contra os livros didáticos?

Se fosse um debate sobre a qualidade dos livros didáticos eu acharia muito bom. Eu acho que se um professor dissesse que há excesso de texto e algumas informações não estão dirigidas para um público leitor, jovem ou adolescente, isso é um bom debate. A primeira pergunta que eu faria: o presidente Bolsonaro leu os livros didáticos todos, examinou, fez um estudo de caso e então deu essa declaração? Duvido um pouco. O ministro fez uma análise dos livros didáticos?


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