25/04/2024 - Edição 540

Poder

Partidos de esquerda buscam aproximação com evangélicos por meio de pauta social

Publicado em 24/01/2020 12:00 -

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Dois anos após a ascensão da direita ao Planalto e a pouco mais de 8 meses das eleições municipais, partidos progressistas têm buscado se aproximar de setores evangélicos. O eleitorado é um dos grupos que mais cresce no Brasil e foi considerado determinante para eleição de Jair Bolsonaro.

Segundo pesquisa Datafolha publicada neste mês, hoje os evangélicos representam 30% da população. O PT está formando núcleos estaduais e o PCdoB também conta com grupos protestantes. O PSol busca formalizar um setorial inter-religioso e o tema foi discutido na autorreforma do PSB em 2019.

A busca pelo diálogo tem se centrado em pautas sociais, ligadas à redução da desigualdade de renda, e evitado eventuais pontos de divergência, como a criminalização da LGBTfobia e a legalização do aborto. As siglas também constroem estratégias para reagir à disseminação de dados falsos por opositores políticos ligados a esses temas, como ocorreu com o chamado “kit gay” em 2018. 

“Temos uma crescente militância evangélica se engajando no Psol. Evangélicos progressistas, que defendem as liberdade individuais, os direitos civis, a tolerância e o respeito ao próximo”, afirmou o presidente da legenda, Juliano Medeiros, ao HuffPost Brasil. A criação de um setorial inter-religioso será discutida no congresso da sigla, a partir de março.

Há intenção também de lançar candidatos do segmento. “A diferença é que a gente não renuncia à laicidade e ao combate ao fundamentalismo religioso. Vão ver nossas figuras públicas religiosas defendendo o estado laico, que os terreiros [de religiões de origem africana] permaneçam intactos, denunciado essa relação cristofascista em que opera essa lógica de destruição, de violência em nome de Deus”, afirmou Tabata Tesser, filiada ao PSol e integrante do movimento Católicas pelo Direito de Decidir. Ela tem liderado as discussões sobre o tema na legenda. 

Entre os nomes nas urnas está William Siri (PSol-RJ), vereador suplente que tentará a reeleição no Rio de Janeiro. “Tem se intensificado esse debate. A vitória do Marcelo Crivella foi um marco do poder da religião evangélica. Ali os partidos começaram a dar uma importância [para esse tema]”, disse, em referência à eleição, em 2016, do bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus à prefeitura do Rio.

De acordo com o vereador evangélico, que trabalha em conjunto com o deputado federal Marcelo Freixo (PSol-RJ), pré-candidato à prefeitura do Rio, a sigla tem investido em vídeos com pastores nas redes sociais e tentado antecipar ataques ligados a pautas morais. “Estamos preparando conteúdos para falar de aborto, com dados estatísticos”, disse. “A gente sabe que as pautas morais vão surgir. Então é deixar o material preparado para lançar nas redes como resposta. O que não dá é para passar batido. Tem que responder”, afirma.

O próprio Freixo, que perdeu a disputa pelo Palácio das Laranjeiras em 2016, tem defendido a aproximação entre esquerda e evangélicos.

A vitória de Crivella nas urnas também motivou a criação do grupo Evangélicos pela Esquerda. “Percebemos a gravidade da situação e pensamos em tomar uma atitude quando vimos um candidato da direita conseguir quase 80% dos votos dos evangélicos sem propor nada de concreto que justificasse a diferença gritante”, disse o líder do coletivo, Washington Júnior.

Outros nomes religiosos no PSol são o da deputada estadual pelo Rio e pastora Mônica Francisco e da também pastora Alexya Salvador. Primeira reverenda trans da América Latina, Salvador tentou uma vaga como deputada estadual em São Paulo em 2018 e não deve concorrer neste ano.

No PCdoB, as movimentações são regionais. No Maranhão, o diretório estadual criou, em dezembro, um grupo de filiados evangélicos. “Não é um espaço para recrutar evangélicos, mas para organizar evangélicos que atuam no partido e que, em face desses debates muito fortes no último ano sobre participação política dos evangélicos, se sentiram motivados a também se organizar internamente”, disse o deputado federal Márcio Jerry (PCdoB-MA). 

A movimentação é uma resposta ao cenário político atual. “Tudo isso é em face desse debate de que todo evangélico é de direita ou conservador. Tem evangélicos em partidos progressistas. Nos anos 1980, foi organizado o Movimento dos Evangélicos Progressistas, que teve forte presença e liderança do pastor Robinson Cavalcanti”, diz o deputado. “Aliás o testamento cristão autêntico tem mais a ver com as ideias progressistas, de partilha, de coletivo, do que com as ideias conservadoras”, completou.

A atuação do governador Flávio Dino (PCdoB) favorece essa articulação. Além de contar com evangélicos no governo, nas eleições de 2018, uma das alianças eleitorais fechadas por ele contribuiu para a eleição da senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), filha de um pastor. De acordo com Jerry, também há um grupo semelhante na Bahia. 

Segundo a presidente da legenda, Luciana Santos, contudo, não se trata de uma diretriz nacional. “Nunca teve um foco voltado para uma política que vá abordar como construir o partido nos evangélicos. O que há são pastores de muitos anos militantes do partido, como tem gente do candomblé e da igreja católica”, afirmou ao HuffPost. Ela citou que o prefeito de Nossa Senhora do Socorro, segundo maior município de Sergipe, Padre Inácio, era filiado à sigla até 2019.

A vice-governadora de Pernambuco, ressalta, contudo, que há uma “disputa ideológica inadequada” e a “difusão de uma narrativa dentro do ambiente  evangélico do anticomunismo” e que o PCdoB tem lutado contra essa vertente.

No PSB também não há uma estrutura partidária específica para o tema, mas o crescimento do protestantismo no Brasil fez parte da elaboração da autorreforma da sigla, em 2019. “Tivemos um debate sobre isso porque há muitas pessoas evangélicas no partido, de diferentes denominações”, afirma o presidente da legenda, Carlos Siqueira. De acordo com ele, as discussões contaram com a participação de especialistas da Unicamp.

Para o socialista, a migração do voto evangélico do petismo para o bolsonarismo faz parte do cenário eleitoral brasileiro como um todo. “O que aconteceu com o eleitorado evangélico na eleição é o que aconteceu com a maioria do eleitorado não evangélico, católico, ou sem religião, que votou majoritariamente na direita. Não quer dizer que seja um canal congelado. Acho que é um fenômeno que vai se mover de acordo com a conjuntura de cada eleição”, disse. 

Questionado sobre nomes para a disputa em 2020, contudo, Siqueira afirmou que a questão religiosa não é um fator determinante. “Nunca pensamos em candidaturas como sendo uma questão de religião. É coisa de partido. Já tivemos candidatos protestantes para cargos importantíssimos, inclusive para Presidência da República, que foi o caso do Garotinho, em 2002”, afirmou.

No entendimento do socialista, há barreiras para o consenso em alguns temas. “Há algumas bandeiras de natureza religiosa que colidem com bandeiras libertárias que nós também defendemos, mas nossos filiados têm liberdade de se expressar religiosamente. Por exemplo, no tema do aborto, não vamos exigir que um deputado seja obrigado a defender a legalização”, disse.

Foco em 2022

No PDT, o foco é em 2022. “Desde a campanha de [Leonel] Brizola em 1989, organizamos um movimento evangélico de apoio à sua candidatura. Estamos agora reestruturando este movimento para apoiar o Ciro [Gomes] presidente”, afirmou ao HuffPost o presidente da sigla, Carlos Lupi.

Adversário político do pedetista, o PT tem criado núcleos evangélicos nos estados para consolidar candidatos para a disputa municipal. A sigla também prepara ações online, com depoimentos de pastores. Sob orientação do ex-presidente Lula, a articulação começou, em abril de 2019, com o Primeiro Encontro Nacional de Evangélicos e Evangélicas do PT.

Uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo (FPA), ligada ao partido, feita em 2017 na periferia de São Paulo, já mostrava um distanciamento entre o PT e a classe trabalhadora. Segundo o estudo, os mais pobres, sobretudo nas áreas urbanas, passaram a acreditar que o Estado é adversário de cidadão e que a corrupção é o principal problema do Brasil.

Pauta social une esquerda e evangélicos

É pela pauta social que o campo progressista busca se aproximar dos religiosos. “A maior parte das pautas da esquerda são compatíveis com os ensinamentos de Cristo: distribuição de renda, defesa de direitos humanos, fim da opressão das maiorias em relação às minorias etc. O último ato de Cristo na Terra não foi desejar a morte de um criminoso, como prega boa parte da direita, mas sim dizer ao ladrão, que estava crucificado ao seu lado, que estaria junto com ele e Deus naquele mesmo dia”, diz Washington Júnior, do Evangélicos pela Esquerda.

A promoção de políticas de redução da desigualdade, melhora de serviços públicos e promoção de empregos também deve ser incluída, especialmente no cenário de crise econômica. “O que marca partidos mais à esquerda é levar adiante determinadas lutas sociais em nome de uma população mais carente, mais marginalizada pelo Estado. Essa política de inclusão, de distribuição de renda. E isso atrai não o evangélico, mas determinados segmentos sociais. Os evangélicos não pensam diferente nessas questões”, afirma Edin Sued Abamanssur, líder do Grupo de Estudos do Protestantismo e Pentecostalismo (GEPP) da PUC em São Paulo.

Para o pesquisador, o crescimento dos evangélicos na política tem de ser analisado com cuidado. Ao se tomar o dado do Datafolha de que 30% da população professa essa fé, “em termos de representação do Congresso, seriam 150 deputados que deveriam ser eleitos e não tem isso”.

Apesar de a Frente Parlamentar Evangélica ter sido assinada por 195 deputados e senadores, nem todos são religiosos. Levantamento do Diap (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar) aponta que 84 deputados eleitos em 2018 pertenciam de fato a esse grupo. 

Abamanssur lembra também que nem todo evangélico é eleito necessariamente por esse motivo, uma vez que o eleitorado também é composto por outros grupos, como ruralistas ou empresários. 

Aborto, LGBTfobia e legalização de drogas

Entre religiosos e especialistas, a premissa fundamental é que não é possível tratar os evangélicos como um grupo uniforme. “Não existe o campo evangélico enquanto organização e unidade doutrinária. O campo evangélico é muito plural. Tem movimento negro, tem movimento feminista e igrejas mais progressistas. Admito que há uma tendência majoritária conservadora. Não é uma unanimidade. Dependendo da pauta, vai ter mais ou menos escuta”, afirmou ao HuffPost o pastor Henrique Vieira.

A própria organização da religião promove essa diversidade. Ao contrário do catolicismo, por exemplo, em que há uma estrutura hierárquica bem definida.

O pesquisador da PUC cita, por exemplo, que a Universal do Reino de Deus chegou a defender a descriminalização do aborto. Alguns religiosos também são contra a liberação de armas de fogo, uma das bandeiras do governo Bolsonaro.

Para William Siri, vereador do PSol, debates envolvendo direitos reprodutivos e descriminalização de drogas, por exemplo, são infrutíferos. “Eu tenho 27 anos. Sou nascido e criado no evangelho e escuto há 27 anos algumas coisas. Para desconstruir é difícil. Então quando vou falar na Igreja sobre isso, eu vou perder sempre. Se for por pautas morais, na maioria das vezes, vai perder”, afirma.

O pastor Henrique Vieira, por sua vez, entende que é possível chegar a consensos mesmo nessas temáticas. “Não se trata de defender o aborto de maneira indiscriminada, mas de entender que a legislação atual que o criminaliza não reduz o número de abortos e leva milhares de mulheres à morte”, observa.

“Se a gente vencer o ruído de comunicação e conversar sem preconceito, dá pra ter uma aproximação sim, da plataforma da esquerda e do pensamento majoritário evangélico. O que se quer é preservar a vida dessas mulheres. O que ser quer é que essa política seja na base da assistência social, psicológica. Não da punição, da criminalização”, diz.

Outro desafio é buscar um diálogo profundo, que entenda o cotidiano das comunidades religiosas, e não focado apenas no viés eleitoral. “As igrejas estão inseridas onde o Estado, seletivamente, deixa de investir. As igrejas evangélicas, por exemplo, têm um grupo de apoio e acolhimento para mães que visitam os filhos no sistema prisional”, diz Tabata Tesser, do PSol . “Só conversar com os evangélicos não dá conta. A gente está falando de uma estrutura do cotidiano da vida das igrejas de acolhimento, de uma nova prática de compreender a espiritualidade como fator de sobrevivência”, completa.

A socialista também faz uma crítica a alguns setores da esquerda. “A gente precisa renunciar a uma prática colonizadora de conversão, de querer conversar com os evangélicos porque compreende que são pessoas manipuladas, fantoches, com menos intelectualidade e capacidade de menor de compreender a política”, disse. “Não dá pra dizer que a gente quer um projeto revolucionário que envolva as massas enquanto a gente compartilha vídeo zombando do culto da igreja neopentecostal e acha engraçado.”

Na avaliação do pastor Henrique Vieira, nos últimos anos, o campo progressista tem se aberto para compreender a experiência religiosa, o que é fundamental nessa aproximação. “Tratar a religião, a priori, como um instrumento de alienação, é anti-povo. É sectarismo vanguardista que fala para si mesmo e não contribui para transformação do outro. Parte da esquerda tem esse preconceito. Se mantiver esse preconceito, não vai dialogar com a realidade e não vai ajudar a transformar a sociedade em prol da justiça e do bem comum”, diz.

Ex-vereador pelo PSol, o pastor se afastou da vida partidária para focar na atividade pastoral e artística. Na visão de Vieira, a direita soube captar “um sentimento conservador que é majoritário no campo evangélico”, mas essa estrutura deve ruir, uma vez que não promove a igualdade social.

“Diabólica é toda narrativa que distorce a realidade, que ilude o entendimento, que mente. Nesse sentido, de maneira consistente e não grotesca, teologicamente, a narrativa da direita é diabólica porque captura sentimentos conservadores para, na verdade, aprofundar o projeto que maltrata o próprio povo, e, portanto, ilude.”


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