19/04/2024 - Edição 540

Mundo

O peso das atividades domésticas para as mulheres

Publicado em 23/01/2020 12:00 -

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Petra tinha 50 anos quando largou o emprego num escritório em Berlim para procurar algo que gostasse. Ela, porém, não teve a chance de voltar a trabalhar. Primeiro, teve que cuidar do pai que ficou doente. Logo depois, sua mãe precisou de assistência constante. Esse agora é seu trabalho em tempo integral, pelo qual ela não está sendo remunerada.

"Eu durmo agora ainda menos do que costumava dormir quando tive um bebê", conta Petra. Uma alternativa seria colocar os pais num asilo de idosos. Petra, porém, diz que os ama muito para deixá-los numa casa de repouso.

"Poucos percebem que cuidar de alguém é um trabalho árduo", afirma Christina Schallehn, enfermeira que organiza um curso gratuito na Clínica Helios, em Berlim. "Para enfermeiras profissionais, esse trabalho termina após uma jornada de oito horas. Mas para os familiares, trata-se de uma atividade ininterrupta."

Cursos como esse são populares na Alemanha, onde 70% dos idosos, que necessitam de auxílio, recebem atendimento em casa. Uma tarefa realizada principalmente por mulheres. Petra e outras mulheres dedicam uma hora e meia a mais de seu tempo cozinhando, limpando e cuidando de crianças ou de parentes idosos do que os homens. Essa "lacuna de assistência de gênero" na Alemanha chega a 52%.

Devido a esse trabalho não remunerado, as mulheres não apenas ganham menos todos os dias ou ganham menos ao longo de suas vidas, mas também recebem uma aposentadoria menor. A Alemanha possui a maior disparidade previdenciária entre os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), com 53%.

As mulheres mais afetadas por essa situação, no entanto, não vivem na Alemanha, mas em países mais pobres do Sul global. Nessas regiões, elas dispõem de menos infraestrutura, menos oportunidades de conseguir ajuda doméstica e menos equipamento técnico para reduzir a quantidade de trabalho.

Mulheres em comunidades de baixa renda na Uganda, Zimbábue, Índia, Filipinas e Quênia gastam, em média, um ano a mais de sua vida em atividades assistenciais domésticas do que mulheres de famílias em melhor situação.

12 milhões de horas de trabalho não remunerado

Todos os dias, mulheres e meninas em todo o mundo gastam 12 milhões de horas cuidando de crianças e idosos e com o trabalho doméstico. Se essas atividades fossem remuneradas de acordo com o salário mínimo dos respectivos países, a soma seria superior a 11 trilhões de dólares por ano, segundo o relatório anual da organização de ajuda humanitária Oxfam, apresentado no Fórum Econômico Mundial em Davos.

Segundo a especialista da Oxfam, Ellen Ehmke, esses números mostram o quão subestimado é o trabalho assistencial. "Não sugerimos que esses 11 trilhões de dólares sejam pagos às prestadoras de cuidados, mas elas precisam receber segurança material por seu trabalho. É isso que nós, como sociedade, temos que reconhecer e financiar."

"O bom trabalho assistencial é uma base para outras atividades econômicas. Todo o sistema econômico não funcionaria sem ele e esse sistema fundamental não é economicamente valorizado", afirma Jörn Kalinski, um dos autores do relatório.

Trabalho assistencial e desigualdade global

A desigualdade econômica aumentou vertiginosamente nos últimos anos. A metade pobre da população mundial possui menos de 1% da riqueza mundial. Ao mesmo tempo, 45% dessa riqueza está concentrada nas mãos de menos de 1% da população, ou seja, de apenas 2.153 bilionários. Mas qual é a conexão entre essa desigualdade drástica e o trabalho não remunerado realizado por mulheres?

O sistema econômico mundial é sexista, dizem os autores do relatório. As horas gastas por mulheres e meninas em trabalhos assistenciais ao redor do planeta limitam seu acesso à educação e ao mercado de trabalho. Elas ganham menos ou nenhum dinheiro e têm menos chances de se tornarem economicamente independentes e acumularem riqueza.

Uma menina de oito anos gasta 30% a mais de tempo ajudando em casa do que seu irmão gêmeo. Esse percentual aumenta para 50% quando ela completa dez anos. Essa desigualdade aumenta a possibilidade de ela ficar em casa e não conseguir um emprego.

Globalmente, 42% das mulheres em idade ativa estão fora do mercado de trabalho devido às suas responsabilidades com cuidados de parentes e sem receber por isso. Entre os homens nesta situação, são apenas 6%. Em todo o mundo, as mulheres trabalham mais e seu trabalho geralmente não é remunerado, não é reconhecido e é invisível, argumenta a Oxfam.

Num mundo ideal, como descrito pelos pesquisadores da Oxfam, as pessoas teriam a opção de cozinhar, limpar e cuidar de seus parentes, e não enfrentariam nenhuma desvantagem no mercado de trabalho por fazer essa escolha.

Para a berlinense Petra, isso pode em breve ser uma opção. Mas para muitas mulheres em outros países, isso está longe de se tornar realidade.

No Brasil

O cenário, para Katia Maia – diretora da Oxfam Brasil – é muitas vezes favorável aos governos e empresas, que não precisam mexer em vespeiros – como a taxação da parcela mais rica – quando o assunto é valorização de outras cargas de trabalho feminino. “As medidas para solucionar as crises econômicas e fiscais no Brasil apertam sempre as políticas sociais, reduzindo salários e cortando direitos dos trabalhadores. O enxugamento nunca vem de onde precisa, que é dos super-ricos”, diz.

Só no Brasil, cerca de 77 milhões de pessoas dependerão de cuidado em 2050, diz o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Ignorar o trabalho não pago das mulheres, porém, pode ser uma prática agravada com o envelhecimento da população e com as mudanças climáticas, que afetarão a lógica de vida de milhões de pessoas.

“Enquanto a elite rica e poderosa tem recursos que podem poupá-la dos piores efeitos dessas crises, não se pode dizer o mesmo dos que vivem em situação de pobreza e não têm o mesmo poder […] O colapso climático já está impondo um ônus mais pesado às mulheres. Estima-se que cerca de 2,4 bilhões de pessoas viverão em áreas sem água suficiente até 2025, o que significa que mulheres e meninas serão forçadas a caminhar distâncias cada vez maiores para encontrá-la”, destaca o estudo.

Para Katia Maia, pensar o Brasil nesse contexto deve considerar o recorte racial, que coloca as mulheres negras na base da pirâmide do trabalho doméstico não pago. Com o conservadorismo moral forte no governo Bolsonaro, Maia teme uma imobilidade social para quem, há inúmeras gerações, cuida de homens e mulheres que prosperam economicamente.

“Se a gente está com governos com uma mensagem ultraconservadora, temos mais dificuldade pra fazer a mudança cultural necessária. As pessoas passaram séculos vendo a “mulher do lar”. Esse cuidado invisível do trabalho doméstico e do cuidado, que é não remunerado ou mal pago, tem um valor econômico que não é repassado”, analisa Maia. “Esse tema é invisível. A crise da prestação de cuidados é eminente”, diz. 

Confira o relatório completo.


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