20/04/2024 - Edição 540

Entrevista

“Estamos passando por um desmonte usando a cultura”, diz pró-reitor de Cultura da Unicamp

Publicado em 21/01/2020 12:00 -

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No vídeo que levou à sua demissão da Secretaria Especial da Cultura por referências nazistas, Roberto Alvim diz que o governo Bolsonaro quer uma cultura “enraizada na nobreza de nossos mitos fundantes: a pátria, a família, a coragem do povo e sua profunda ligação com Deus” e que não esteja “alheia às imensas transformações intelectuais e políticas que estamos vivendo”.

“As virtudes da fé, do autossacrifício, da lealdade e da luta contra o mal serão alçadas ao território sagrado das obras de arte”, diz Alvim, no vídeo que depois foi retirado do ar – mais pela repercussão que causou entre a comunidade judaica do que pelo seu conteúdo em si, que Bolsonaro nem achou ruim.

Na avaliação do pró-reitor de Extensão e Cultura da Unicamp, Fernando Hashimoto, o conteúdo do vídeo mostra como o governo tem usado a cultura como máquina de manipulação. “Estamos passando por um desmonte usando a cultura”, disse, em entrevista ao HuffPost Brasil.

Para ele, é nessa área que está a postura mais linha dura e alinhada à política conservadora do governo do presidente Jair Bolsonaro. “O método para ludibriar o povo sempre foi a cultura, então novamente se vê isso”, diz. 

No último ano, o setor ganhou os holofotes com interferências diretas do presidente. Bolsonaro afirmou que o governo não patrocinaria filmes como o da Bruna Surfistinha, vetou edital da Ancine (Agência Nacional do Cinema) com temática LGBT, tentou acabar com a agência e disse que haveria um “filtro” para a área.

No mesmo período, órgãos do Executivo ligados ao setor também sofreram uma série de trocas em seus comandos. O mais emblemático, no entanto, ocorre esta semana com o “noivado” da atriz Regina Duarte com o governo. Ela começa um “teste” na chefia da Secretaria Nacional da Cultura após demissão do dramaturgo Alvim.

Para Hashimoto, o histórico das trocas recentes indica pouca esperança de mudança.

“As pessoas que foram trocadas no governo entraram com o mesmo tipo de contexto. Parece que há uma estrutura bem organizada para trabalhar de maneira conjunta. É uma pena, mas se nota também o poder que a cultura tem na transformação. Os regimes totalitários usaram a mesma técnica para transformação do povo, pelo convencimento.”

 

Qual avaliação o senhor faz da política cultural no governo Bolsonaro?

Não sei nem se é uma política cultural como a que a gente é acostumado. É quase que uma política acultural. A gente está passando por um desmonte usando a cultura, pelo que ficou claro no discurso do ex-secretário, usando-a como uma máquina de manipulação do povo, como a gente já viu em vários episódios da história.

É difícil pensar hoje em uma política cultural como a gente tinha, comentava, criticava ou elogiava. O que temos é, de fato, a utilização da repressão, do aumento da desigualdade e falta de respeito. Noções básicas de cultura que estão lá nos conceitos, desde os tratados de direitos humanos, direitos culturais e toda a política que a gente tem trabalhado por anos caem por terra nesse governo.

Além de não ter uma política clara de desenvolvimento histórico, vemos um desmonte da importância do que a cultura representa como nação e para o povo. É difícil avaliar se há realmente uma política cultural, usando aspectos culturais para manipulação e para desvirtuar o princípio de uma Secretaria da Cultura.

Há expectativa de mudança com a atriz Regina Duarte no comando do órgão?

Sou uma pessoa que sempre tem esperança no ser humano, então vamos ver se tem alguma força. Ainda não tem nenhuma declaração oficial dela, vamos esperar. Ao que tudo indica é uma secretaria que estava muito vinculada a uma linha de pensamento muito específica, estava toda aparelhada com o pessoal com visão mais ideológica, mais à extrema-direita, talvez a mais dura do governo, vamos ver se ela vai ter liberdade de mudança ou não.

De fato, historicamente, não podemos ter muita esperança porque as pessoas que foram trocadas no governo entraram com o mesmo tipo de contexto. Parece que há uma estrutura bem organizada para trabalhar de maneira conjunta. É uma pena, mas se nota também o poder que a cultura tem na transformação. Os regimes totalitários usaram a mesma técnica para transformação do povo, pelo convencimento. O método para ludibriar o povo sempre foi a cultura, então novamente se vê isso. Esse procedimento está aí de novo.

Mas há sempre esperança de que haja diálogo, não vou perder essa esperança.

Uma mudança na política cultural pode ter impacto no setor, que representa cerca de 4% do PIB?

Se a gente fala de indústria cultural e pensa em termos maiores, em São Paulo, por exemplo, o impacto é muito maior que 4%. Pode chegar a 6%, 7%. No nosso País, a cultura sempre foi um fator econômico muito importante. Ataque à cultura reflete diretamente na economia do nosso País. Com a produção e equipamentos que nós temos, grupos vinculados à cultura, o que isso movimenta é impressionante. Qualquer político ou economista vai olhar isso como uma oportunidade de incentivo. A cultura traz retorno imediato.

Temos projetos na Unicamp, por exemplo, que são multidisciplinares. Um projeto principal, por exemplo, é atenção médica para aquela população mais fragilizada e o primeiro passo geralmente começa com atividades culturais, envolvimento para a população, pertencimento, e depois entra a equipe de saúde, psicológica, e por aí vai.

A cultura tem poder muito rápido de transformação social. É um aspecto que você vê claramente que não está sendo levado em conta.

Outro aspecto é o potencial econômico que temos nessas atividades. Descartar isso é um tiro no pé imenso. Não é algo que a gente pode dizer “ eu acho”, basta olhar os números. O impacto econômico da produção cultural é muito maior, por exemplo, do que o da indústria farmacêutica. Tem farmácia em toda esquina, movimenta muito dinheiro; e a cultura está ali, batendo um pouco mais acima.

Essa indústria sobrevive independentemente da política de governo?

Por mais que se tente acabar com a cultura, isso não vai acontecer.

O governo Michel Temer em 2016 tentou acabar com o Ministério da Cultura e não conseguiu. Agora, o governo está envolto nessa crise…

A cultura esteve muito atrelada a esse movimento histórico de mudanças que nós tivemos. Nosso povo tem muita ligação com manifestações culturais e artísticas. Isso é muito forte e não vai acabar, por mais que se tenha um grupo grande com esse interesse. Não acho que esse grupo seja grande assim, mas está articulado. Por mais que queiram bater e denegrir, isso não vai acabar.

Se você tem políticas culturais de incentivo, você vai ter um bem-estar muito maior, com aumento enorme da capacidade econômica da população, que gera resultados positivos para o País como um todo. Não se apropriar e não ter políticas culturais de incentivos — vão desde a coisa mais básica que as pessoas não entendem direito, como a Lei Rouanet, até programas culturais de longo prazo pelas secretarias dos municípios — é perder uma oportunidade única de gerar bem-estar social em todos os níveis.

O governo que não fizer isso perde uma oportunidade muito grande de crescimento e reconhecimento da população. É algo que, imagino, não seja desconhecido do governo, mas tem toda essa parte ideológica de combate e uso de uma ferramenta para manipular e tentar atacar as minorias, a diversidade e por aí vai. Tem uma série de aspectos no discurso dos porta-vozes do governo que mostram como são claras essas intenções. É um momento de resistência. Essa palavra já está muito gasta, mas é de fato. O artista sempre foi um personagem de resistência e isso vai continuar.


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