27/04/2024 - Edição 540

Poder

Após impor teto para educação e saúde, Congresso analisa deixá-las sem piso

Publicado em 17/01/2020 12:00 -

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Depois de impor um teto para o crescimento de gastos públicos durante o governo Michel Temer, afetando a educação e a saúde, agora o Congresso Nacional pode atender a um desejo do ministro da Economia e acabar com o piso para essas duas áreas. Ou seja, o montante obrigatório que municípios, estados e União devem destinar a elas.

Após reunião com Paulo Guedes, o senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator da proposta emenda constitucional do Pacto Federativo, afirmou à imprensa que vai inserir essa mudança no texto da PEC. "A ideia de tutelar e estabelecer que tem que gastar um tanto com saúde e educação, na prática, aprovou-se ineficiente", disse Bittar, no registro de Fábio Pupo, da Folha de S.Paulo.

Na verdade, a existência do piso é que garantiu que o país conseguisse universalizar a educação básica e reduzisse o analfabetismo. Precisamos, agora, de mais recursos e melhor gestão para avançar. Somos um país populoso e extenso, que não consegue bancar salários decentes e formação continuada a professores, nem garantir escolas com merenda, internet, água e papel higiênico. Ao mesmo tempo, o piso é que garantiu a existência do Sistema Único de Saúde, que permite a todos os brasileiros terem acesso a atendimento para tratar uma gripe ou fazer um transplante de coração. Por insuficiência de recursos e de gestão, temos filas absurdas, déficit de leitos, falta de material para atendimento, número insuficiente de ambulâncias.

Hoje, Estados e municípios devem destinar, respectivamente, 12% e 15% à saúde. Ambos precisam guardar 25% para a educação. Já o governo federal tem que usar o mesmo valor do ano anterior corrigido pela inflação.

Falar de aumento de impostos aos mais ricos é um pecado inominável.

Propor a taxação de dividendos recebidos de empresas é crime. Defender a alteração na tabela do Imposto de Renda (criando novas alíquotas para cobrar mais de quem ganha mais) é uma aberração. Isso sem falar que discutir a regulamentação do imposto sobre grandes fortunas e o aumento na taxação de grandes heranças (seguindo o modelo norte-americano ou europeu) é passível de exílio. O andar de cima continua exigindo a dupla "SS": Subsídio e Sonegação.

Mas falar de redução da qualidade dos serviços prestados aos mais pobres sempre é mais fácil.

Quase metade das escolas do país (49%) não está conectada a uma rede de esgoto, cerca de 16% não contam com um banheiro no prédio, 26% não têm água encanada, 21% não possui coleta de lixo regular, de acordo com o Censo Escolar 2018, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Mais da metade das escolas (54,4%) não tem biblioteca ou sala de leitura. Cerca de 57% das escolas de ensino fundamental têm acesso à internet de banda larga. Em 44% das unidades de ensino de nível médio – 39% na rede pública e 57%, na privada – não há laboratório para ensino de ciências.

O objetivo do governo não é melhorar a educação que temos hoje. Em sua concepção de sucesso, ele precisa fazer o modelo de educação pública vir abaixo e, a partir das cinzas, construir algo sob uma visão utilitarista, subordinada e pró-mercado da educação. Um modelo em que o naco das instituições privadas de nível superior que praticamente não pesquisam e são voltadas a formar apenas mão de obra e não cidadãos seja a pedra fundamental.

Ao mesmo tempo, o governo trata muitas universidades e escolas como inimigas. Em seus discursos, elas aparecem como antros de perversão, nos quais a única produção científica é o desenvolvimento de métodos de cultivo de maconha hidropônica, com o propósito maior de abrigar subversivos que vão inventar maneiras de destruir a família brasileira – de "kit gays" a "mamadeiras de piroca". Bolsonaro aproveitou o momento de aperto fiscal para atacar instituições de ensino, aquelas com maior potencial de lhe causar problemas exatamente por serem espaço para a liberdade de reflexão, de crítica e de debate, mesmo diante das dificuldades.

Já o caso da saúde é mais simples. As ações do governo apontam para o desmantelamento do Sistema Único de Saúde e a entrega do setor para as empresas de planos privados, que o apoiam.

Há um processo de desconstrução daquele pouco de dignidade que conseguimos juntar desde a redemocratização.

Educação e saúde só são prioridades para alguns políticos só porque eles são obrigados a isso. Caso contrário, livros seriam trocados por fuzis e remédios para pressão virariam asfalto. Segurança e vias públicas são importantes, claro, e dão mais voto. Mas não se resolve o presente destruindo o futuro.

Análise: último prego no caixão do SUS

O senador Marcio Bittar pretende inserir no texto a extinção dos pisos da saúde e da educação. A confirmação foi feita à Folha após o político se encontrar com o ministro da Economia, Paulo Guedes – que desde o discurso de posse, nunca fez segredo dos seus planos de desvincular e desindexar o orçamento público, desobrigando os gestores de qualquer gasto carimbado. Mas o fato é que até Guedes já havia sido convencido por sua própria equipe que a proposta de desvinculação era radical demais e articulou a apresentação da PEC 188 sem essa proposta. 

“Se depender de mim, eu avanço e desvinculo tudo (…) A ideia de tutelar e estabelecer que tem que gastar um tanto com saúde e educação, na prática, aprovou-se (sic) ineficiente. Se fosse assim seria quase mágica. Não, você gastou mais com educação nos últimos anos e ela não melhorou. Pelo contrário, ela piorou muito”, disse Bittar ao repórter Fábio Pupo. 

Mas a reportagem dá ainda uma informação que pode passar desapercebida depois de uma declaração dessas, mas que pode ser, ao fim e ao cabo, a verdadeira proposta, o meio de caminho nessa dobradinha entre o senador e o governo: antes da reunião com Guedes, Bittar queria introduzir a segurança pública no pool de áreas nas quais os governantes poderiam movimentar os recursos hoje destinados ao SUS e à educação. Se especialistas ouvidos pelo Outra Saúde e por muitos outros veículos vêm alertando para a perversidade do texto como está – que coloca saúde e educação em disputa por recursos –, imagina se, no meio do caminho, surge ainda a segurança pública?

Há dúvidas se a radical e deletéria proposta da desvinculação passa no Congresso Nacional. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) deu algumas declarações no ano passado sinalizando que seria bem difícil. Para o SUS, seria o último prego no caixão. 

“Essa é uma luta civilizatória nuclear, afinal sem dinheiro não se realizam direitos. Os pisos são fronteira de contenção absolutamente necessária da barbárie expressa no curto prazo eleitoral e no fisiologismo fiscal. O que está em xeque é a própria erosão orçamentário-financeira da nossa identidade constitucional, que elegeu como prioridade inegociável o custeio dos direitos fundamentais e, em especial, de saúde e educação”, analisou Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas de SP, no Twitter


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