19/03/2024 - Edição 540

Poder

Roberto Alvim copia discurso do nazista Joseph Goebbels, causa onda de indignação e cai

Publicado em 17/01/2020 12:00 -

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O secretário especial de Cultura, Roberto Alvim, foi exonerado do cargo. Ele provocou uma onda de indignação após copiar frases de um discurso nazista em um pronunciamento oficial da pasta. Sua exoneração, no entanto, não apaga a vergonha e a irresponsabilidade de um Governo que sustenta, promove e apoia ações de extrema direita e que ainda têm, entre seus principais membros e “teóricos”, gente que relativiza o fascismo e promove desinformação sobre o tema.

Alvim, copiou uma citação do ministro de propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels. O vídeo foi divulgado para anunciar o Prêmio Nacional das Artes, projeto no valor total de mais de R$ 20 milhões.   

O que disse Goebbels:

Segundo o livro "Goebbels: a Biography", de Peter Longerich, o líder nazista afirmou: "A arte alemã da próxima década será heroica, será ferreamente romântica, será objetiva e livre de sentimentalismo, será nacional com grande páthos e igualmente imperativa e vinculante, ou então não será nada" 

O que disse Roberto Alvim:

Nó vídeo divulgado pela Secretaria Especial da Cultura, ele afirma: "A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes de nosso povo, ou então não será nada", discursou Alvim no vídeo postado nas redes sociais.

Além do trecho copiado do discurso de Goebbels, outra referência ao regime de Adolf Hitler é a trilha sonora do pronunciamento: a ópera "Lohengrin", de Richard Wagner. O compositor alemão era celebrado pelo líder nazista e teve grande influência em sua formação ideológica.

Após a indignação de parte da sociedade civil, ele usou suas redes sociais para falar sobre o assunto e classificou as semelhanças de seu discurso com o de Goebbels como uma "coincidência retórica" mas defendeu que "a frase em si é perfeita".

"O que a esquerda está fazendo é uma falácia de associação remota: com uma coincidência retórica em UMA frase sobre nacionalismo em arte, estão tentando desacreditar todo o PRÊMIO NACIONAL DAS ARTES, que vai redefinir a Cultura brasileira… É típico dessa corja. Foi apenas uma frase do meu discurso na qual havia uma coincidência retórica. Eu não citei ninguém. E o trecho fala de uma arte heróica e profundamente vinculada às aspirações do povo brasileiro", escreveu Alvim.

'Virtudes da fé alçadas ao território da arte'

Em tom ufanista, Alvim anuncia no vídeo o "renascimento da arte e da cultura no Brasil". Depois de enaltecer a fé do povo brasileiro e a sua ligação com Deus, o secretário falou sobre "poderosas formas estéticas" que serão favorecidas. “As virtudes da fé, da lealdade, do autossacrifício e da luta contra o mal serão alçadas ao território da arte.”

“Ele (Jair Bolsonaro) pediu que eu faça uma cultura que não destrua, mas que salve a nossa juventude. A cultura é a base da pátria. Quando a cultura adoece, o povo adoece junto. É por isso que queremos uma cultura dinâmica e, ao mesmo tempo, enraizada na nobreza de nossos mitos fundantes. A pátria, a família, a coragem do povo e sua profunda ligação com Deus amparam nossas ações na criação de políticas públicas. As virtudes da fé, da lealdade, do autossacrifício e da luta contra o mal serão alçadas ao território sagrado das obras de Arte”, disse Alvim.

Ele ressaltou ainda que o ano de 2020 será "uma virada histórica", ou seja, "o ano do renascimento da arte e da cultura no Brasil".

“Ao país ao qual servimos, só interessa uma arte que cria a sua própria qualidade a partir da nacionalidade plena. Portanto, almejamos uma nova arte nacional, capaz de encarnar simbolicamente os anseios desta imensa maioria da população brasileira, com artistas dotados de sensibilidade e formação intelectual, capazes de olhar fundo e perceber os movimentos que brotam do coração do Brasil, transformando-os em poderosas formas estéticas”, acrescentou o secretário.

A pretensão não para por aí:

“São essas formas estéticas, geradas por uma arte nacional que agora começará a se desenhar, que terão o poder de nos conferir, a todos, energia e impulso para avançarmos na direção da construção de uma nova e pujante civilização brasileira”, trombeteia.

O secretário Especial da Cultura, Roberto Alvim, participou ainda da live do presidente Jair Bolsonaro para anunciar o Prêmio Nacional das Artes, no valor total de mais de R$ 20 milhões. Mais cedo, Dante Mantovani, escolhido de Alvim para presidir a Fundação Nacional das Artes (Funarte), divulgou o orçamento de R$ 38 milhões para investimentos em editais, publicações e reformas de equipamentos ao longo do ano.

Depois de adiantar que pretende lançar, em fevereiro, um edital para o “cinema sadio, ligado aos nossos valores, com filmes sobre figuras históricas brasileiras e alinhando conservadorismo e arte”, Alvim anunciou alguns detalhes do prêmio cujas inscrições serão abertas ainda este mês. Com ele, o governo vai selecionar cinco óperas (R$ 1,1 milhão para cada), 25 espetáculos teatrais de R$ 250 mil, 50 exposições individuais de R$ 100 mil nas categoria “pintura” e “escultura”, além da publicação de 25 contos de R$ 25 mil, 15 histórias em quadrinhos de R$ 50 mil e músicas de 25 compositores (R$ 100 mil para cada).

Em todas as áreas, os contemplados devem ser das cinco regiões do país. A ideia, diz Alvim, é oferecer os livros e as HQs de graça para a população, por exemplo.

'Não é censura, é curadoria'

Na live (da qual participou também o ministro da Educação, Abraham Weintraub), Alvim e Bolsonaro voltaram a falar de “uma arte para a maioria” e a abordar a questão dos filtros temáticos para obras que recebem fomento do governo. O secretário defendeu que “curadoria não é censura”.

Ao começar a conversa com o secretário na live (da qual participou também o ministro da Educação, Abraham Weintraub), Bolsonaro disse que Alvim é a "cultura de verdade no Brasil" e voltou a dizer que anteriormente existia "a ideia de fazer a cultura para um minoria."

“Nós nunca censuramos nada. Eu me revoltei com muitos filmes, mandei suspender qualquer concessão (de verbas), isso não é censura”, disse o presidente, que teve o apoio de seu subordinado.

“Não é censura, é curadoria”, disse Alvim.

Discurso precisa ser combatido

No seu delirante discurso sobre o que considera o "renascimento da arte" no Brasil, Alvim não se limitou a plagiar espantosamente Goebbels, o gênio do mal da propaganda hitlerista. Além do trecho que começou a viralizar, Alvim, num tom triunfalista medonho, traz à tona vários outros elementos que, há 90 anos, constituíram, no que toca à cultura, o nascimento do fascismo europeu e de sua forma germânica, o nazismo.   

A ideia, ventilada por ele, de que o povo precisa ser salvo de uma "cultura doente" (primeiro sintoma, ele diz, de uma doença social) ecoa claramente a noção nazista da "arte degenerada", a ser expurgada. Parecido com o afã purificador que, em Berlim, incluiu até uma exposição de pinturas de grandes mestres modernos destinada a fomentar, no grande público, o horror a tudo que respirasse liberdade, crítica, transgressão, pluralidade.

A noção dos "mitos fundantes" nacionais, mencionados por Alvim (como se não tivessem sido jamais visitados por nossas artes, no país de Oswald, de Mário e da Tropicália), em muito lembra os ideais evocados pelo Führer, de uma Alemanha calcada em raízes pátrias profundas, carreadas por uma linhagem que remontaria à Antiguidade Clássica.

Na versão brasileira, contudo, Alvim acrescenta ingredientes do teofascismo, tendência política emergente tanto no fundamentalismo islâmico quanto na onda neopentecostal. Ele o faz ao vincular seu projeto de "arte da nova década" não só à família, mas à fé cristã da imensa maioria do povo brasileiro: Alvim crê numa pretensa revolução dos já proverbiais homens de bem contra o mal, esse alvo móvel representado por tudo o que foge à bitola equestre dos luminares das trevas que conduzem o Brasil à Nova Idade Média.

Um escritor, nas redes, ao referir-se ao secretário, comenta que a cultura brasileira jamais será a preconizada por "este palhaço". O problema é que a ascensão dos fascismos é sempre precedida pela impressão de que se trata de um bando de pândegos. É justamente dessa incredulidade que o monstro se vale para fixar suas garras na jugular do cidadão incauto.

Por isso o discurso de Alvim, que em outra conjuntura mereceria o lixo dos fundos da História, é uma peça que deve ser ouvida, transcrita e estudada, como sintoma de um evento maior que precisa ser debatido com urgência e intensidade proporcional à agressão que representa. Toda atenção é pouca.

Creiam: no fundo musical do discurso não são as Bachianas Brasileiras, mas a abertura de Lohengrin, ópera de Richard Wagner.

Nazistas

Toma-se todo o cuidado para evitar comparar comportamentos do governo Jair Bolsonaro com práticas adotadas pelo regime nazista de Adolf Hitler. Jornalistas e historiadores, por mais que cocem as mãos diante de fatos e processos similares, sabem que há um abismo intransponível de distância entre ambos.

Existe até um nome para o uso dessa comparação: "Reductio ad Hitlerum", ou seja, a redução de uma argumentação a Hitler e os nazistas. Como há poucas coisas tão ruins na história da humanidade como esse, comparar alguém a ele é tentar desqualificar pura e simplesmente quando faltam argumentos. Por isso, é visto como uma falácia.

A expressão do filósofo político Leo Strauss tem uso tão frequente em debates que o advogado norte-americano Mike Godwin criou uma "lei" sarcástica para isso: "à medida que uma discussão on-line se alonga, a probabilidade de surgir uma comparação envolvendo Adolf Hitler ou os nazistas tende a 100%".

Mas, Alvim legitimou comparações que se evitava fazer com o governo federal quanto aos seus surtos autoritários e fascistas. Pior: também copiou a estética de Goebbels, a aparência, as palavras escolhidas, o tom de voz, a trilha sonora. O plágio foi primeiro notado pelo site Jornalistas Livres.

"A arte alemã da próxima década será heroica, será ferreamente romântica, será objetiva e livre de sentimentalismo, será nacional com grande páthos e igualmente imperativa e vinculante, ou então não será nada", disse o ministro de Hitler em discurso para diretores de teatro, segundo o livro "Goebbels: a Biography", de Peter Longerich.

"A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes de nosso povo, ou então não será nada", afirmou Roberto Alvim.

Após visitar o Memorial do Holocausto, em Israel, em abril, Jair Bolsonaro afirmou que o nazismo foi um movimento de esquerda. Alinhava-se ao seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e ao guru de ambos, Olavo de Carvalho, mas batia de frente com a posição expressa por pesquisas do próprio Memorial, pelo governo da Alemanha (que viu o nazismo nascer) e pela esmagadora maioria dos historiadores em todo o mundo, que tratam do assunto praticamente como consenso.

Aliás, em 2018, a Embaixada da Alemanha em Brasília foi chamada de comunista nas redes sociais por ela ter postado um vídeo explicando que o nazismo é um movimento de extrema-direita. Se não bastasse isso, nossos conterrâneos foram além, tentando explicar aos alemães que eles não entendiam muito bem do tema.

Roberto Alvim pode até se justificar, dizendo que isso não passou de uma "performance" artística para causar incômodo, a fim de reduzir o estrago. Isso se tiver coragem de assumir o que fez.

Ele prestou, contudo, dois favores. Primeiro, devolveu o nazismo ao seu lugar de direito, ou seja, junto a governos de extrema-direita.

E ajudou o governo a sair do armário. Já que um alto funcionário de Bolsonaro abraça a ética e a estética nazista, a população do Brasil e do mundo pode chamar o governo por aquilo que alguns de seus membros almejam que ele seja.


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