16/04/2024 - Edição 540

Brasil

Por que promover a abstinência sexual como política pública pode ser um tiro no pé

Publicado em 16/01/2020 12:00 -

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Diferentes pesquisas científicas sobre sexo desprotegido e gravidez precoce trazem repetidamente a mesma conclusão: não há evidências de que programas baseados na abstinência sexual sejam eficazes como defende a ministra Damares Alves. São artigos, publicados internacionalmente de 2007 a 2019, incluindo revisões sistemáticas, metanálises, estudos epidemiológicos e até uma revisão de revisões sistemáticas.

A maior parte dos dados vêm de países desenvolvidos, mas uma metanálise feita em países em desenvolvimento tampouco conseguiu apontar efetividade nos programas centrados em abstinência.

Os dados são tão eloquentes que, em 2017, a Sociedade Americana pela Saúde e Medicina do Adolescente emitiu um documento no qual considera que programas baseados na abstinência sexual são eticamente deficientes e deveriam simplesmente deixar de existir.

Diante das críticas ao seu programa que propõe ensinar abstinência sexual a adolescentes, Damares foi ao Twitter expressar que a proposta não seria para “impor condutas morais ou religiosas”, e que teria base em “sérios estudos e pesquisas científicas”, citando um estudo chileno de 2005. Damares recorreu ao que no mundo acadêmico é chamado de cherry-picking.

Cherry-picking (“apanhar cerejas”, em tradução ao português) significa o ato de selecionar na literatura científica um determinado resultado que reforce a visão de mundo que se está tentando defender. O estudo chileno citado por Damares é uma fruta única, lustrosa e isolada que está dentro de um cesto cheio de cerejas podres.

Como forma de se contornar resultados isolados, há outros estudos que, após uma série de critérios de seleção e qualidade, permitem analisar um tipo de intervenção em dezenas, às vezes, centenas de artigos científicos de uma só vez. Esses tipos de estudos são as revisões sistemáticas e metanálises mencionadas acima. Damares ignora isso.

Mas isso não é surpreendente. Basear-se em evidência científica e ser um membro do governo Bolsonaro já é uma contradição em termos. Afinal, trata-se da administração federal que nega fatos científicos como a mudança climática, despreza o financiamento para a pesquisa nacional e exonera um cientista do quilate de Ricardo Galvão, ex-presidente do Inpe demitido por Bolsonaro, por ele se opor à narrativa oficial da inexistência de desmatamento na Amazônia.

Modelos centrados na abstinência não informam adequadamente sobre os métodos contraceptivos, não respeitam a diversidade de visões sobre sexualidade na população, oferecem risco ao não instruir sobre como evitar a transmissão de infecções sexualmente transmissíveis, as ISTs, e não consideram que a capacidade de rejeitar o ato sexual pode ser desigual a depender do gênero e da cor da pessoa.

A concepção de que a abstinência é o único método 100% eficiente esbarra na realidade de que, para um método funcionar, ele precisa ser aplicado de forma factível, e a realidade revela que as pessoas se casam cada vez mais tarde e o sexo antes do casamento é cada vez mais aceito pela sociedade, goste-se disso ou não.

Os especialistas e a literatura indicam que a solução estaria na adoção pelas escolas de programas de educação sexual abrangente: inclusivos, cientificamente corretos e culturalmente sensíveis. Isso significa acolher, sem necessariamente reforçar, a diversidade sexual que já existe na sociedade e afeta os nossos jovens de forma inequívoca: mais de um quarto deles já teve relação sexual no nono ano, segundo pesquisa do IBGE de 2015.

Apesar da oposição dos bolsonaristas a esse tipo de intervenção, que são associados, sem base verossímil, à existência de “kits gays”, esses programas abrangentes estão internacionalmente associados a menores taxas de gravidez precoce e maior proteção em relação às ISTs, quando são avaliados, inclusive nos países em desenvolvimento, como o nosso.

Vale dizer que a saúde pública brasileira tem estudado o fenômeno de forma extensa, com grande acúmulo de pesquisas qualitativas e quantitativas, e seria necessário, para um programa federal eficiente, que os especialistas da área fossem convocados.

Não podemos esquecer da principal variável modificável associada com a gravidez infantil: a escolaridade. Quanto maiores as taxas de instrução da população e, especialmente, das adolescentes, menor a chance de ocorrer uma gravidez nesta fase da vida. Ou seja, a velha máxima de que se quisermos mudar esse país, o primeiro caminho é pela escola continua a valer também neste caso.

Por fim, é importante dizer que a opção pela abstinência é pessoal e deve ser respeitada – da mesma forma que a opção contrária. O que não pode ser admitido neste país é que tomemos decisões políticas baseadas em valores fundamentalistas e nos abstermos de evidências científicas sólidas.

Tiro no pé

A proposta de Damares tem notadamente como inspiração o movimento religioso “Eu Escolhi Esperar”, que teve início nos Estados Unidos.  

No início de dezembro de 2019, a pasta comandada por Damares participou de um seminário na Câmara dos Deputados para o qual foram convidados apenas defensores da chamada “preservação sexual”, ideia de que jovens devem deixar de transar para se proteger de uma gestação indesejada e de doenças sexualmente transmissíveis. O método é adotado por grupos religiosos, que defendem o sexo após o matrimônio. 

O evento foi uma preparação para a Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência, que ocorre no início de fevereiro de 2020. Ela foi instituída em 2019 por uma lei federal com o objetivo disseminar informações que contribuam para diminuir a incidência da gravidez precoce.

Entre os convidados do evento, estavam o pastor Nelson Júnior, que coordena a organização cristã “Eu Escolhi Esperar” no Brasil, e Mary Anne Mosack, presidente da associação norte-americana Ascend, que tem representantes em cargos na administração de Donald Trump. A associação trabalha para promover políticas de promoção à abstinência sexual, e dar fim às políticas públicas de prevenção vigentes.

Jacqueline Moraes Teixeira, antropóloga, pesquisadora e professora da faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo) que se debruçou nos últimos anos a estudar o crescimento de religiões cristãs e sua relação com pautas ligadas aos costumes, afirma que a discussão da abstinência sexual como política pública não é algo novo, mas ainda assim preocupa.

“O que a gente precisa questionar é como dar estatuto de política pública a esse projeto ― que parece ser algo como o ‘Eu Escolhi Esperar’ ― pode colocar em risco outras políticas que pensam uma educação sexual relacionada à ‘prevenção’ e não necessariamente a essa ideia de ‘preservação’, ligada à não prática da sexualidade”, disse Teixeira em entrevista ao HuffPost.

A especialista afirma que o Brasil tem um histórico de pensar a sexualidade dentro da noção de preservação e abstinência pela tradição católica no país – e, mais recentemente, pelo crescimento dos movimentos evangélicos.

″É importante pensar qual será a gramática de política pública que eles vão ter que usar para implementar esse projeto, que atenda o coletivo. Porque quando você tem que traduzir o princípio religioso como política pública, quais serão esses arranjos? A quem vai servir e a quem isso vai representar?”, questiona a especialista.

A necessidade de informar sobre a saúde reprodutiva

No Brasil, a taxa de adolescentes grávidas é de 62 para cada grupo de mil jovens do sexo feminino na faixa etária entre 15 e 19 anos. O índice ultrapassa a taxa mundial, que corresponde a 44 adolescentes grávidas para cada grupo de mil, de acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas).

Dados do Ministério da Saúde apontam que, em 2017, ano dos últimos dados consolidados, houve 480.925 nascimentos de bebês com mães entre 10 e 19 anos, o equivalente a 16% dos nascidos vivos. Apesar de alto, o número de casos de gravidez na adolescência tem tido queda nos últimos anos. Entre 2000 e 2017, a redução foi de 36%.

Em nota enviada ao HuffPost Brasil, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) destaca a importância de crianças de adolescentes receberem “informações e cuidados adequados à saúde reprodutiva”.

“Sobre este assunto, a SBP entende que um dos itens essenciais na abordagem da adolescência, preconizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e respaldado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é o direito do indivíduo de conhecer seu próprio corpo e receber informações e cuidados adequados à saúde reprodutiva”, diz. 

A SBP ainda afirma que “essas ações contribuem para prevenir uma gravidez não planejada, adotar práticas de planejamento familiar e prevenir o aparecimento de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs)”.

Ministério da Saúde de fora da discussão

A existência de divergências sobre qual modelo adotar no Brasil é um dos fatores para que não haja previsão de quando o ministério irá finalizar o programa. A mudança deve ser feita por meio de norma emitida pelo próprio Executivo, sem depender do Legislativo.

A discussão ainda é incipiente no ministério e está centralizada na Secretaria da Família, chefiada por Angela Gandra. De acordo com assessores envolvidos nas discussões ouvidos pelo HuffPost Brasil, o Ministério da Saúde não tem participado da elaboração da proposta.

Em entrevista à Folha de S. Paulo, Gandra defendeu a abstinência como política pública. “O que queremos é conscientizar. O que está acontecendo hoje, pais? Os seus filhos estão iniciando relações com 12 anos, e podem engravidar, ir a baile funk, ou ter relações com vários ao mesmo tempo. Vamos falar e ter informações sobre isso para que vocês saibam. Adolescentes: o que é uma relação sexual? Que marca isso vai deixar?”, disse.

A frase de Gandra é parte da retórica adotada por integrantes do governo a ativistas conservadores que mistura o combate à erotização de crianças e adolescentes e a violações a esse grupo com políticas de educação sexual. 

Em março de 2019, após pedido do presidente, o Ministério da Saúde publicou um ofício afirmando que a caderneta de saúde do adolescente – com informações sobre puberdade, sexo seguro e prevenção da gravidez precoce – teria sua distribuição descontinuada, “até que se concluam avaliações” sobre o material. O recolhimento do material, cujos exemplares eram distribuídos em unidades básicas de saúde, foi considerado prejudicial à promoção da educação sexual.

Abstinência, sexualidade e Escola Sem Partido

Apesar de a abstinência sexual ser defendida por setores religiosos, essa pauta não é consenso nas bancadas evangélica e católica na Câmara dos Deputados. Há também quem entenda que o programa pode colidir com a defesa da Escola sem Partido, caso o governo inclua a promoção da abstinência na rede de ensino. Isso porque, de acordo com o movimento, a escola não deve abordar temas de foro íntimo, como a sexualidade.

Neste ano, o debate da Escola sem Partido será retomado no Congresso. Uma proposta sobre o tema foi arquivada em 2018. Um outro texto, apresentado pela deputada Bia Kicis (PSL-DF) e por correligionários será debatido em uma comissão especial, cuja criação foi autorizada pelo presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em 2019. 

O novo projeto de lei prevê que “o Poder Público não se imiscuirá no processo de amadurecimento sexual dos alunos nem permitirá qualquer forma de dogmatismo ou proselitismo na abordagem das questões de gênero”. Se for aprovada pelo colegiado, a proposta segue para o plenário da Câmara.

Em defesa da abstinência sexual

Desde 2004, quatro projetos sugerindo que o Ministério da Educação ou da Saúde promovam a abstinência sexual foram apresentados na Câmara dos Deputados. Todos sugerem para as pastas a realização de programas de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e de gravidez precoce que incorporem a abstinência sexual. Todas as propostas foram arquivadas. 

De acordo com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, o novo programa não vai se contrapor ao estímulo ao uso de preservativos e outros métodos contraceptivos para pessoas acima de 14 anos. Em nota divulgada no último dia 10, o ministério afirma que “que está em formulação a implementação de política pública com abordagem sobre os benefícios da iniciação sexual tardia por adolescentes como estratégia de prevenção primária à gravidez na adolescência”.

“A proposta é oferecer informações integrais aos adolescentes para que possam avaliar com responsabilidade as consequências de suas escolhas para o seu projeto de vida. Dessa forma, essa política está sendo considerada como estratégia para redução da gravidez na adolescência por ser o único método 100% eficaz”, diz o comunicado.

De acordo com o ministério, o novo programa ainda está em construção, com base em estudos, e, por esse motivo, não há uma previsão de quanto deve ser gasto e de quais ações serão realizadas. Ainda segundo a nota, “estudos científicos apontam resultados exitosos dessa alternativa de iniciação sexual em idade tardia, considerando as vantagens psicológicas, emocionais, físicas, sociais e econômicas envolvidas, sem que isso implique críticas aos demais métodos de prevenção existentes.”

Entre os defensores da política de abstinência, o modelo adotado no Chile é um dos estudados. De acordo com um artigo científico usado como referência pelo grupo, publicado em 2019, na Revista Chilena de Obstetrícia e Ginecologia, no país, as escolas podem escolher entre sete programas propostos pelo governo. 

Um dos critérios de escolha do Ministério da Educação chileno era que o programa tivesse um discurso a favor do adiamento do início da atividade sexual. Entre as propostas, as três com maior adesão têm como origem universidades católicas e apresentam uma orientação mais conservadora. Segundo o artigo, contudo, os resultados não são animadores. “Os programas com foco na abstinência como método para evitar a gravidez e doenças sexualmente transmissíveis têm pouco êxito, como é o caso das políticas de Abstinence-Only Education nos Estados Unidos”, diz o texto.

O levantamento mostra que, entre 2010 e 2017, houve uma diminuição da gravidez na adolescência e um aumento no uso de anticoncepcionais. Por outro lado, as infecções sexualmente transmissíveis e as denúncias de violência sexual em adolescentes aumentaram. O artigo também afirma que nenhum dos programas foi implementado de forma integral. No Twitter, a ministra Damares Alves citou um estudo chileno, de 2005, para defender a proposta.

Patrícia Braga, que é pedagoga, sexóloga e trabalha com prevenção e educação sexual em áreas periféricas no Distrito Federal, acredita que o método mais eficaz para prevenir doenças sexualmente transmissíveis e gravidez precoce é a informação.

“Quando a gente fala de educação sexual, é importante que as pessoas saibam que nenhum sexólogo vai ensinar a fazer sexo e nem as posições do kama sutra. A gente vai falar sobre respeito, afetividade, saúde sexual. É isso que é uma educação sexual bacana. É informação para a saber lidar com ela e também para a prevenção”, afirma. “Mas vejo que, no atual governo, a educação sexual está guardada na gaveta e eu não sei quando ela será tirada de lá.”

Estudos científicos também realizados sobre o tema nos Estados Unidos, apontam que programas realizados pelo Estado que visavam promover a abstinência sexual como método para reduzir as taxas de gravidez na adolescência falharam no país. 

Estudo publicado pela organização American Public Health Association, em fevereiro de 2019, mostra que, entre 1998 e 2016, o valor investido em programas de abstinência sexual até o casamento como única forma de contracepção não diminuíram as taxas de gravidez na adolescência no período. Nos estados conservadores, ao contrário, esse enfoque levou a um aumento dos casos de gravidez na adolescência.

Outro estudo, realizado pela Journal of Adolescent Health, em 2017, aponta que este tipo de abordagem pode até ser uma escolha saudável, mas enquanto método para prevenção da gravidez precoce é problemática do ponto de vista ético e científico.

Segundo os pesquisadores, políticas que trazem a ideia de que o casamento monogâmico e heterossexual é o único contexto apropriado para ter relações sexuais, evitando a gravidez indesejada e DSTs, minaram projetos que visavam promover a educação sexual.

Diálogo com adolescentes é mais efetivo do que abstinência sexual, defendem especialistas

A pedagoga Claudia Penalvo, que trabalha com educação sexual desde os anos 1990 pelo Grupo de Apoio e Prevenção à Aids (GAPA) e pelo Somos, destaca que a proposta da abstinência sexual não é algo novo, já existe há muitos anos, sendo discutida especialmente no âmbito das religiões cristãs. “Eu concordo que é preciso trabalhar outras opções, e talvez abstinência seja uma delas, mas não é a única. E, para falar sobre isso, preciso também entender que vou precisar falar sobre sexo, sobre sexualidade, sobre questões de gênero”, diz. “Nós, como educadores, não podemos estimular nem uma coisa nem outra, nem o exercício livre da sexualidade, não estamos ali para estimular ninguém a fazer sexo, mas também não estamos ali para proibir isso, porque é algo de foro íntimo”, complementa.

Ela concorda que, como diz a ministra, não há nenhum método de prevenção 100% eficaz, seja de gravidez ou DSTs. “O problema da abstinência sexual é que tu tem que não transar e isso é algo que não existe no Brasil”, diz.

Penalvo afirma que, em seu trabalho, já conheceu grupos de jovens que adotavam a abstinência sexual, inclusive utilizando carteirinhas, mas expressa preocupação que, sob a liderança de Damares, o governo Bolsonaro acabe colocando “todas as suas fichas” nesse programa. “A questão principal é que, quando a gente fala em politicas públicas, se uma ministra investir toda a sua potência em uma única saída, nós temos um problema. Seja da maneira que for, nós temos um problema”, afirma. “Nós temos um leque de culturas e subculturas dentro da cultura brasileira. Tu imagina um modelo só do Oiapoque ao Chuí? Não funciona. Nós precisamos oferecer para a população um leque de opções para que as pessoas possam escolher”.

Penalvo diz ainda que o trabalho das religiões de “controle sexual” não tem surtido efeitos positivos, porque “as pessoas buscam alternativas para burlar”. Para ela, o mais importante em termos de educação sexual é os jovens estarem informados para fazerem, eles próprios, uma opção, o que poderia, daí sim, incluir a abstinência. Ela destaca, no entanto, que isso tende a não funcionar se for uma imposição.

“Para tu fazer uma escolha, ainda mais adolescente, tu precisa saber todas as opções que existem, todas as possibilidades. Para a gente chegar nesse nível, é preciso falar sobre essas coisas. É preciso dizer como que é uma relação sexual, o que está implicado. Vai falar sobre sexualidade, em todos os sentidos, inclusive sobre o ato sexual, porque é importante que o jovem saiba sobre isso, para obter as informações, e sobre as questões de gênero, pressões que podem haver sobre meninas, por exemplo. Será que uma pessoa com toda uma questão religiosa forte está preparada para falar abertamente sobre essas questões? Não sei se isso existe. Nunca vi”, afirma.

Ela também destaca que, em sua experiência, o melhor caminho é conversar abertamente com os jovens, porque, caso eles sejam pressionados a adotar certos métodos preventivos ou certa posturas, acabam dizendo o que os adultos “querem ouvir”, o que não significa que adotarão esses métodos na prática. Por outro lado, ela diz que, se a conversa for franca, os jovens acabam se sentindo confortáveis para expor suas dúvidas e buscar informações, o que, aí sim, permite que façam escolhas melhores.

“O método que funciona melhor é a conversa. Ainda é. O que acontece? Os jovens já sabem, e é automático isso, não é uma coisa racional, o que professores, pais e religiosos querem ouvir. Então, eles dizem algumas coisas de forma automática. Já vivi isso. Eles vêm com uma conversa ‘politicamente correta’. Tipo: ‘nós não temos camisinha, então não vamos transar’. Na primeira conversa que tu tem com eles, eles dizem automaticamente: ‘Não tem, eu não transo’. Só que isso não é uma verdade. Quando tu começa a conversar com eles, eles entendem que tu não está ali para julgar ninguém, que está ali para ouvir, eles acabam dizendo. E tem muitas jovens que, realmente, não vão transar com 13 anos, tanto meninos, quanto meninas, vão transar mais tarde, mas não dizem isso de primeira porque isso pode pegar mal. Na onda, acabam dizendo ‘transei’, mas às vezes nem é verdade. Então, a melhor solução ainda é conversar. Trabalhando com os jovens, e eu trabalho mais especificamente com os jovens LGBTs, eles ainda têm muitas dúvidas sobre beijo, sobre masturbação, sobre várias questões que ainda são tabu. Porque a sexualidade é uma questão da prática, não é uma questão que tu lê e vai dizer ‘agora eu já sei tudo sobre sexualidade porque eu li três livros, vi três vídeos’. Não, é uma prática do dia a dia”.

A professora Jane Felipe de Souza, que coordena Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) avalia que as declarações da ministra ou a adoção da defesa da abstinência como política do Estado se tornam problemáticas ao misturar políticas públicas com concepções religiosas, quando deveriam se basear em dados e pesquisas.

Para defender a abstinência como política pública, Damares referenciou um texto que menciona um estudo feito no Chile na década de 1990 que testou o programa de educação sexual TeenStar, focado em abstinência e aplicado em uma escola só para meninas. Esse programa separou 1,2 mil meninas em dois grupos, um que recebeu o curso e outro não, tendo o primeiro registrado taxa de gravidez cinco vezes menor ao longo de cinco anos.

“Só que tem estudos mais recentes que a abstinência sexual é uma falácia, é uma coisa que, na verdade, não resolve a questão da gravidez na adolescência. O que é preciso é que as pessoas se informem. E aí nós temos que discutir centralmente as questões de gênero. São temas muito importantes para serem discutidos porque, muitas vezes, uma gravidez que a gente entende por precoce é resultado de uma sociedade machista, de violência ou de relações abusivas. É isso que tem que ser combatido. É importante que as meninas entendam que o poder das mulheres não está necessariamente na gravidez, mas na possibilidade de escolher sempre. Então, por exemplo, para as meninas seria muito importante discutir o quanto que os estudos e a independência financeira são fundamentais para esse empoderamento das mulheres, para que elas não se tornem reféns de uma situação que vai aprisioná-las ou prejudicá-las futuramente”, afirma.

Ela destaca ainda que, nos EUA, a promoção da abstinência também tem sido adotada como política pública e, inclusive, recebido volumosos aportes financeiros, mas não tem dado o resultado esperado, visto que o país apresenta elevadas taxas de gravidez na adolescência e contaminação de DSTs na comparação com outros países desenvolvidos.

De acordo com dados da Unicef referentes a 2018, a taxa de gravidez na adolescência (jovens de 15 a 19 anos) dos Estados Unidos é de 19 por mil, não muito distante do Reino Unido (14 nascimentos por mil habitantes), mas muito longe países como Canadá (8 por mil), França (5 por mil), Japão (4 por mil), Dinamarca (3 por mil) e Coreia do Sul (1 por mil). Segundo os mesmos dados, a taxa do Brasil foi de 59 por mil em 2018, abaixo da Argentina (65 por mil), mas bem acima do Uruguai (36 por mil), na comparação com alguns de nossos vizinhos.

“Não deu resultado tanto investimento de dinheiro nessa proposta de abstinência sexual. Ainda mais nos tempos de hoje, onde a mídia e várias áreas promovem essa ideia de uma felicidade a partir do prazer sexual. Então, os jovens têm mensagens muito contraditórias. No sentido de que a sociedade diz para esses jovens, especialmente as meninas, ‘sejam sensuais, sejam sedutoras’, ‘tenham corpo de tal forma’, ‘tenham determinado tipo de comportamento para serem amadas, desejadas’. Por outro lado, você tem também todo o cerceamento da sexualidade e do reconhecimento da própria sexualidade quando você impõe, por exemplo, a abstinência sexual como política pública. Realmente, é uma situação bem difícil e não está calcada em dados efetivamente científicos”, afirma.

Por outro lado, Jane concorda que a informação é a melhor maneira de prevenir, tanto DSTs quanto gravidez não planejadas. “A informação é o melhor caminho para você prevenir as doenças, as violências e uma série de outros problemas. A gente tem visto que, muitas vezes, as pessoas ignoram o problema. Só que, quando você ignora, você acoberta. Então, informar é fundamental para prevenir situações que podem prejudicar a vida dos jovens e das crianças”, diz.


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