24/04/2024 - Edição 540

Brasil

Após decreto de Bolsonaro, nenhuma multa ambiental foi aplicada no Brasil

Publicado em 16/01/2020 12:00 -

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No dia 11 de abril de 2019, o presidente Jair Bolsonaro publicou o decreto nº 9.760, que passou a exigir a realização de uma “audiência de conciliação” em todos os processos administrativos por infrações das leis ambientais. Basicamente, o presidente facilitou a vida de quem é autuado por crime ambiental no Brasil. Isso porque o infrator pode parcelar o valor definido pela justiça, diminuir ou até mesmo converter em serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente.

O decreto só entrou em vigor no dia 8 de outubro de 2019. Essa medida, que foi uma promessa de campanha de Bolsonaro, paralisou a aplicação de multas ambientais no Brasil. É o que mostra o relatório da Human Rights Watch divulgado nesta terça-feira 14, no qual a entidade analisa a situação dos direitos humanos em mais de 100 países.

A instituição identificou que o Ministério do Meio Ambiente (MMA) não realizou nenhuma audiência de conciliação até o dia 7 de janeiro, segundo dados obtidos por meio de um pedido vai Lei de Acesso à Informação. Isso significa que todos os novos processos administrativos contra pessoas e empresas, que supostamente violaram as leis ambientais, estão, na prática, suspensos.

César Muñoz, pesquisador da entidade responsável pelo levantamento do relatório no Brasil, contou que o MMA justificou a não realização das audiências por uma falha técnica do sistema. “Eles não exemplificaram quais eram os problemas técnicos. Isso é muito grave. As multas, se não forem aplicadas, podem prescrever”, explica.

Aumento do desmatamento

Segundo o relatório, a área ambiental teve carta branca do governo para redes criminosas atuarem impulsionando o desmatamento. E as multas fazem parte desse enfraquecimento no combate aos crimes ambientais. O número de multas por desmatamento ilegal emitidas pelo Ibama, principal órgão ambiental federal do Brasil, caiu em 25% de janeiro até setembro de 2019. Nesse mesmo período, o desmatamento na Amazônia teve um aumento de 80% quando comparado com  2018.

O gráfico abaixo ilustra o desmatamento como consequência do enfraquecimento da fiscalização ambiental.

Segundo a diretora da Human Rights Watch no Brasil, Maria Laura Canineu, o ataque do presidente Bolsonaro às agências de fiscalização ambiental está colocando em risco a Amazônia e aqueles que a defendem. “Sem nenhuma prova, o governo tem culpado ONGs, voluntários brigadistas e povos indígenas pelos incêndios na Amazônia e, ao mesmo tempo, fracassado em agir contra as redes criminosas que estão derrubando árvores e queimando a floresta para dar lugar à criação de gado e agricultura, ameaçando e atacando aqueles que estão no caminho”, afirmou.

O relatório enfatiza também que o governo Bolsonaro enfraqueceu as agências ambientais, reduzindo orçamentos, removendo servidores experientes e restringindo a capacidade dos fiscais ambientais de atuarem no campo. Ressaltou, ainda, que Bolsonaro não cumprirá os compromissos do Brasil em relação às mudanças climáticas.

Outro ponto de preocupação da entidade é sobre os novos agrotóxicos aprovados pelo governo de Jair Bolsonaro. Desde que o capitão chegou ao Planalto, 382 novos agrotóxicos foram aprovados, muitos deles proibidos nos EUA e na Europa. Uma pesquisa da própria Human Rights Watch revelou que o governo não monitora adequadamente a exposição aos agrotóxicos e a presença de resíduos de defensores químicos na água e nos alimentos.

Procurado, o Ministério do Meio Ambiente não se pronunciou sobre o caso. O ministro responsável pela pasta, Ricardo Salles, tem encontro marcado com a Human Rights Watch na próxima segunda-feira 18 para discutir o relatório.

Desmatamento na Amazônia cresce 85% em 2019

O desmatamento na Amazônia cresceu 85,3% no ano passado em comparação com 2018, de acordo com dados divulgados no último dia 14 pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Segundo o Sistema de Detecção do Desmatamento na Amazônia Legal em Tempo Real (Deter), no ano passado, 9.165,6 quilômetros quadrados de floresta foram devastados. Em 2018, foram registrados alertas de desmate numa área de 4.219,3 quilômetros quadrados.

A tendência de alta no desmatamento em 2019 apontada pelo Deter, que faz levantamento rápido de alertas de evidências de alteração da cobertura florestal na Amazônia, foi confirmada pela medição oficial, o Prodes, divulgada em novembro.

Esse foi o maior desmatamento na região registrado nos últimos cinco anos. Os meses que tiveram as maiores taxas de devastação do bioma foram maio, julho, agosto, setembro e novembro. Pará, Mato Grosso, Amazonas e Rondônia foram os estados mais impactados.

O desmatamento é um dos principais fatores que impulsionou os incêndios na Amazônia, que causaram comoção em todo o mundo no ano passado. Houve um aumento de 30% nas queimadas no bioma, passando dos 68.345 focos registrados em 2018 para 89.178 em 2019.

Após a repercussão internacional do aumento do desmatamento verificada a partir de julho, o presidente Jair Bolsonaro acusou, sem provas, o Inpe de mentir sobre os dados e exonerou o então diretor do instituto, Ricardo Galvão, que havia rebatido as críticas do presidente.  Por sua oposição ao governo e defesa da ciência, o pesquisador acabou eleito pela revista especializada Nature um dos dez cientistas que se destacaram em 2019. 

O Brasil abriga 60% da Floresta Amazônica, que é um regulador chave para os sistemas vivos do planeta e também para o índice de chuvas no país. Suas árvores absorvem cerca de 2 bilhões de toneladas de dióxido de carbono por ano e liberam 20% do oxigênio do planeta.

Depois de ter sido considerado uma história de sucesso ambiental, o Brasil vem perdendo esse espaço, principalmente desde a eleição de Bolsonaro, que já declarou várias vezes a intenção de explorar a floresta e negou a existência das mudanças climáticas. Devido ao discurso do presidente e à agenda ambiental do governo, especialistas temem que o desmatamento atinja níveis alarmantes nos próximos anos.

Como a 'MP da grilagem' pode mudar o mapa de regiões da Amazônia 

Menos de um mês após a divulgação do maior índice de desmatamento na Amazônia dos últimos dez anos, o presidente Jair Bolsonaro assinou uma Medida Provisória que abre o caminho para que parte das áreas públicas desmatadas ilegalmente até dezembro de 2018 passe para as mãos dos desmatadores.

Assinada em 10 de dezembro de 2019, a Medida Provisória 910 permite que terras públicas desmatadas com até 2.500 hectares (o equivalente a 2.500 campos de futebol) se tornem propriedade de quem as ocupou irregularmente, desde que se cumpram alguns requisitos.

Críticos apelidaram a medida de "MP da grilagem" e dizem que premia desmatadores, além de estimular a destruição de novas áreas de floresta.

Já o governo, que chama a iniciativa de "MP da Regularização Fundiária", diz que ela busca desburocratizar a concessão de títulos a agricultores "que produzem e ocupam terras da União de forma mansa e pacífica".

A Medida Provisória tem como alvo terras públicas não destinadas, áreas que pertencem à União mas ainda não tiveram uma função definida, como, por exemplo, se tornarem parques nacionais ou reservas extrativistas.

A medida vale para todo o Brasil, mas terá maior impacto na Amazônia Legal, região que engloba os nove Estados onde há vegetações amazônicas e que concentra as terras públicas não designadas no país. Segundo o Ministério da Agricultura, na Amazônia, essas áreas somam cerca de 57 milhões de hectares, ou pouco mais do que o território da França.

A medida já entrou em vigor, mas precisa ser aprovada pelo Congresso em até 120 dias para não perder validade. A bancada ruralista apoia a iniciativa e está mobilizada em prol da aprovação.

Regularizações sucessivas

De toda a área desmatada na Amazônia entre agosto de 2018 e julho de 2019, 35% são terras públicas não destinadas, segundo uma análise do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).

A prática de desmatar áreas públicas e fraudar documentos para simular a posse dos terrenos é conhecida como grilagem. O objetivo principal dos grileiros é vender as terras, lucrando com a valorização ocorrida após o desmatamento, uma vez que a área se torne apta para atividades agropecuárias. A pecuária é a atividade preferencial.

A grilagem é apontada como uma das maiores causas do desmatamento na Amazônia. A prática alimenta o mercado ilegal de terras na região, gerando uma corrida incessante por novas áreas de floresta.

Essas áreas são visadas por desmatadores na expectativa de que venham a ser regularizadas futuramente — o que de fato tem acontecido.

Em 2017, o então presidente Michel Temer assinou a Medida Provisória 759, que à época também foi apelidada de "MP da grilagem" por críticos. A iniciativa flexibilizava os critérios para a concessão de áreas públicas na Amazônia ocupadas até 2014. Tanto a MP 910, de Bolsonaro, quanto a MP 759, de Temer, são vistas como atualizações e desdobramentos de uma iniciativa de 2009 do governo Luiz Inácio Lula da Silva, a Medida Provisória 458, que deu origem ao Programa Terra Legal.

Na época, Lula também disse ter como objetivo regularizar posses de pequenos agricultores na Amazônia. No entanto, o livro Dono é quem desmata: conexões entre grilagem e desmatamento no sudoeste paraense, dos pesquisadores Mauricio Torres, Juan Doblas e Daniela Alarcon, apontou outros efeitos da iniciativa. Segundo os autores, embora 90% do público-alvo do programa de fato ocupasse pequenas porções de terra, essas áreas correspondiam a apenas 19% do território coberto pela iniciativa, enquanto 63% das áreas ficariam nas mãos de 5,7% dos requerentes.

Dispensa de vistoria

Entre as condições definidas pela MP 910, de Bolsonaro, para que terras públicas sejam apropriadas por indivíduos estão:

– o reivindicante não pode ter outros imóveis rurais;

– a área deve estar inscrita no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e ser georreferenciada (identificada por coordenadas de satélite);

– não pode haver multas ou embargos ambientais sobre a área, que tampouco pode ser objeto de disputas registradas na Ouvidoria Agrária Nacional;

– o reivindicante deve estar realizando atividades agropecuárias no território;

– o reivindicante não pode manter trabalhadores em condições análogas às de escravos.

A MP define que, para áreas que cumpram os requisitos e tenham até 15 módulos fiscais, o título será concedido sem a necessidade de vistoria.

Módulos fiscais são uma unidade de medida que varia por município. Nos municípios da Amazônia, os módulos fiscais costumam ter entre 70 e 110 hectares.

Em partes da Amazônia, portanto, a MP permitirá a concessão de títulos de áreas com até 1.650 hectares (1.650 campos de futebol) sem vistoria. Antes da MP, a dispensa de vistoria valia para áreas com até quatro módulos fiscais (no máximo 440 hectares).

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem que a dispensa da vistoria pode permitir que grandes áreas desmatadas ilegalmente sejam apossadas por indivíduos.

Isso porque a MP só proíbe a regularização de áreas que tenham sido objeto de multas ou embargos ambientais, e nem todas as violações ambientais são conhecidas e autuadas pelo poder público.

Dizem ainda que, sem vistoria, o governo não terá como checar se a área está realmente livre de trabalho escravo e se o reclamante de fato vive e trabalha no local.

Já o governo afirma que fará "análise dos documentos, cruzamento de dados e checagem com ferramentas" para confirmar se as informações são verídicas. A comprovação da ocupação da área, por exemplo, poderá ser feita com imagens de satélite. Caso a análise aponte discrepâncias, haverá vistoria.

Comunidades tradicionais

Para Juliana Batista, advogada do Instituto Socioambiental, há ainda o risco de que indivíduos se apossem de áreas reivindicadas por comunidades tradicionais nos casos em que as demandas dos grupos não estejam registradas na Ouvidoria Agrária Nacional.

"A partir do momento em que o governo começa a regularizar terras sem considerar outras demandas, isso vai gerar um conflito enorme", ela afirma à BBC News Brasil.

Já o governo afirma que áreas "tradicionalmente ocupadas" por indígenas, quilombolas ou outras comunidades tradicionais não serão passíveis de concessão — embora não diga o que ocorrerá nos casos de áreas reclamadas pelos grupos mas ainda não demarcadas nem em processo de demarcação.

Centenas de comunidades tradicionais brasileiras ainda aguardam o início do processo de regularização de suas terras. É o caso dos quilombolas: cerca de 2,6 mil comunidades já foram reconhecidas como quilombolas, mas apenas 1,7 mil tiveram seus processos de titulação de terra iniciados ou concluídos.

Prêmio para grileiros

Para Paulo Moutinho, doutor em Ecologia e pesquisador do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), a medida de Bolsonaro premia quem desmatou com o intuito de lucrar com a venda das terras.

"Certamente há muitos pequenos produtores na Amazônia passíveis de regularização, mas há um contingente substancial de gente que grilou a terra e vai obter benefício do governo", ele diz à BBC News Brasil.

Moutinho cita o tamanho limite das áreas passíveis de regularização, 2.500 hectares, o que configura uma grande propriedade rural em qualquer ponto do Brasil na classificação do Incra.

Ele diz que, para derrubar e limpar um hectare de floresta, são necessários R$ 1,2 mil. Portanto, donos de áreas com 2.500 hectares na Amazônia que queiram desmatar 20% do território — limite definido pelo Código Florestal — terão de desembolsar R$ 600 mil, quantia da qual pequenos proprietários não costumam dispor.

Moutinho diz que grande parte das áreas desmatadas na Amazônia hoje se destina à "especulação": os responsáveis contratam pessoas para desmatá-las sem ter a pretensão de ocupá-las, mas sim de vendê-las para outros. "É uma lucratividade astronômica", afirma.

Já o Ministério da Agricultura afirma que a MP se destina "àqueles que produzem e ocupam a terra de forma mansa e pacífica há muitos anos e podem comprovar sua permanência e trabalho no local".

O governo estima que há cerca de 160 mil estabelecimentos rurais a serem regularizados na Amazônia Legal. "Desde a criação do Incra, há 50 anos, foram implantados 9.469 assentamentos para 974.073 famílias. Desde então, apenas 5% dos assentamentos foram consolidados e só 6% das famílias receberam seus títulos da terra", diz o ministério.

"Ao identificar quem está na terra, a MP permitirá maior controle, monitoramento e fiscalização das áreas. Os que não atenderem às regras previstas sofrerão as sanções legais", segue o órgão.

O ministério cita um dispositivo da MP que define um prazo entre três e dez anos para a venda de áreas regularizadas. "Foram criados, assim, obstáculos às tentativas de grilagem", afirma a pasta.

O ministério também rejeita o argumento de que a MP estimulará o desmatamento de novas áreas por alimentar expectativas de regularizações futuras.

"A MP traz maior rigidez quanto à regularidade ambiental, colocando o interessado como um parceiro na preservação do meio ambiente. Ele terá que se comprometer a aderir ao Cadastro Ambiental Rural (CAR) e cumprir o que estabelece o Código Florestal Brasileiro. Ou seja, em determinadas regiões, como na Amazônia Legal, terá que preservar 80% de sua propriedade", diz o órgão.

Perda de patrimônio

Outra crítica à MP diz respeito à perda de patrimônio público com as concessões dos títulos.

Para se apossar de áreas públicas desmatadas até 5 de maio de 2014, os reclamantes devem pagar entre 10% a 50% da tabela de preços do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

Já quem desmatou entre maio de 2014 e dezembro de 2018 deve pagar 100% do valor de tabela do Incra — que, ainda assim, é menos da metade do valor de mercado, diz a advogada Brenda Brito, da ONG Imazon.

Em junho de 2019, Brito publicou um artigo na revista científica Environmental Research Letters no qual mediu possíveis efeitos da lei 13.465, de 2017, que também versou sobre a ocupação de terras públicas e se baseou na MP 759, de Michel Temer.

Brito calculou quanto dinheiro o governo deixaria de arrecadar se os descontos fossem aplicados à venda de todas as áreas públicas não destinadas que poderão ser privatizadas — áreas que, segundo a Câmara Técnica de Destinação e Regularização de Terras Públicas Federais na Amazônia Legal, somam 19,6 milhões de hectares, o equivalente ao Estado do Paraná.

Segundo o estudo, a perda em receitas potenciais seria de até R$ 120,3 bilhões — 43 vezes o orçamento aprovado para o Ministério do Meio Ambiente em 2019.

Brito diz que, como a MP de Bolsonaro manteve os percentuais de desconto, o cálculo segue válido.


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