26/04/2024 - Edição 540

Especial

Democracia resiste a Bolsonaro?

Publicado em 03/01/2020 12:00 -

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Quando a vitória de Jair Bolsonaro à presidência da República despontava no horizonte, em outubro de 2018, durante uma campanha em que ele não teve pudores de atacar direitos fundamentais, 31% da população dizia haver muita chance de ocorrer uma nova ditadura, segundo o Datafolha. O número contrastava com os 15%, de fevereiro de 2014.

O seu primeiro ano de governo tentou, das formas mais criativas e sem nenhuma cerimônia, retroceder em garantias a proteções sociais. Em alguns casos, foi bem sucedido, principalmente naqueles que dependiam diretamente da ação ou inação do Poder Executivo. Por exemplo, com o desmonte das estruturas de fiscalização, monitoramento e controle, o aumento na devastação ambiental já foi sentido internacionalmente. Enquanto isso, a liberação desenfreada de agrotóxicos será sentida no corpo desta e das futuras gerações.

O Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal funcionaram, de acordo com seus interesses, como freios e contrapesos a propostas bizarras do governo. Como no bloqueio aos decretos que garantiriam um libera-geral para armas e munições, no projeto de lei que transformava rodovias em campos de batalha e na tentativa de implementar o "cada um por si e Deus por todos" da capitalização na Reforma da Previdência.

Enquanto isso, o discurso de apoio à letalidade e à impunidade empoderou a banda podre de policiais e militares, que se sentiu mais livre para atirar primeiro e checar depois. Da mesma forma, encheu de coragem grileiros, madeireiros, garimpeiros e latifundiários que operam fora da lei a passar por cima de qualquer um no caminho do "progresso".

Coquetéis-molotov foram atirados. Jornalistas, artistas e intelectuais, atacados. Mas isso nem se compara ao que aconteceu com camponeses e populações tradicionais, como, por exemplo, os Guajajara, assassinados em série. Ou com a população negra periférica – que se tornou carne ainda mais barata no mercado – a exemplo das execuções absurdas do músico Evaldo dos Santos e do catador de recicláveis Luciano Macedo, em Guadalupe, e da estudante Ágatha Félix, no Complexo do Alemão, todos no Rio de Janeiro.

O grosso da população incendiada no período eleitoral voltou ao "normal" após a apuração dos votos da mesma forma que houve uma descompressão após o impeachment. A percepção de que as instituições e a sociedade não seriam suficientemente fortes para impedir uma ditadura foi se desfazendo ao longo do ano. O Datafolha apontou, em pesquisa divulgada na última quarta-feira (1º), que caiu para 21% a parcela da população que acredita haver muitas chances de uma nova ditadura. Menos que em 2018, mais que em 2014.

Mesmo com o deputado federal Eduardo Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes enchendo a boca para falar do AI-5, o ato castrador de direitos, liberdades e vidas da última ditadura, com o objetivo de desestimular manifestações de rua contra o governo e contra as reformas, 49% dos brasileiros não acreditam na chance de uma nova ditadura, enquanto que, em outubro de 2018, a opinião era compartilhada por 42%. Detalhe: a esmagadora maioria dos brasileiros não sabe o que foi o AI-5, segundo a pesquisa.

O general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, começou a falar como Olavo de Carvalho, normalizando o AI-5, negando números do desmatamento, discursando em carros de som de manifestações, mas as Forças Armadas não se mostraram interessadas em referendar todos os pendores autoritários do presidente. E eles foram muitos.

Desprezo pela democracia

"Por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos… e se isso acontecer. Só vejo todo dia a roda girando em torno do próprio eixo e os que sempre nos dominaram continuam nos dominando de jeitos diferentes!" A declaração do vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente da República, postada em seu Twitter, em setembro, foi prontamente rechaçada por políticos de vários matizes ideológicos e pela Ordem dos Advogados do Brasil. Não causaria tanto arrepio se o governo de seu pai não manifestasse desprezo por instituições democráticas.

Naquele momento, o filósofo Paulo Arantes, um dos mais importantes pensadores brasileiros, conversou com esta coluna sobre o componente revolucionário no bolsonarismo e como o presidente estava comendo instituições – Ministério Público, Receita Federal, Coaf, Polícia Federal – em nome de seu projeto de poder.

"Pode chegar o momento, daqui a três anos, em que Bolsonaro vai dizer 'não admito nenhuma alternativa que não seja minha reeleição'. Como já disse 'não admito qualquer coisa que não seja minha vitória', na eleição do ano passado", analisa Arantes.

Ele fez uma comparação com o bolivarianismo do nosso vizinho ao Norte. "No sentido mais exagerado, o espelho simétrico de um bolsonarismo consolidado e triunfante, com uma reeleição em 2022 e uma outra eleição, possivelmente com o filho, em 2026, é a Venezuela", afirma.

Para ele, a direita liberal não sabe o que fazer. Pois, se há desgosto diante de temas de costumes e comportamentos, para os quais ela torce o nariz, por outro lado, Bolsonaro está realizando o programa econômico dela junto com o Congresso. "E ele sabe que o cacife dele é o único capaz de conter uma volta daqueles que eles consideram a esquerda, a oposição – que, também na visão deles, voltará com sangue nos olhos. Então, ele vai ser assim todo o dia, um ultraje por semana."

Questionado por mim se o presidente odiava a democracia, ele afirmou: "Odiar a democracia pressupõe que ele tem um conhecimento a respeito da natureza intrínseca daquilo que está enfrentando. Ele não está nem aí, isso não existe para ele. Para ele, isso é alguma idiossincrasia vocabular de jornalista, mais nada". Não só de jornalista.

Se por um lado, vem crescendo a quantidade de pessoas que afirma que a ditadura deixou mais realizações negativas do que positivas (46%, em 2014, 51%, em 2018, e 59%, agora), a pesquisa Datafolha mostrou que caiu o apoio à democracia sobre qualquer outra forma de governo – de 69%, em outubro de 2018, para 62% após um ano de Bolsonaro. O número de pessoas indiferentes se o país vive sob uma democracia ou uma ditadura subiu de 13% para 22%.

Descontando aqueles que não têm ideia do que seja uma democracia, sobram os autoritários e os que não veem benefícios no atual regime devido à sua condição social e econômica. Esse último grupo deseja mudança, não importa para onde. Esse sentimento ajudou a alimentar a campanha eleitoral de Bolsonaro. O, hoje, presidente tenta continuar capitalizando isso a seu favor, mesmo estando no poder. Para tanto, quer provar que está em uma guerra contra o mal, representado por tudo o que veio antes dele, inclusive a Constituição. Ele não apenas chama conquistas históricas de direitos de "entraves ao crescimento", mas reclama dos freios e contrapesos da democracia. Quer liberdade total.

Escolas como trincheira da democracia

A ditadura é tema que não faz parte de nosso cotidiano em comparação com outros países que viveram realidades semelhantes e que almejam ser democracias. Passadas mais de três décadas de seu término, começamos a esquecer e a relativizar. O presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, disse que se sente mais confortável de chamar o golpe de 1964 de "movimento". Bolsonaro já afirmou que concorda com a tortura – tortura, que é a prova de que um Estado não obedece regras e, portanto, qualquer cidadão pode ser vítima de arbitrariedade, quanto ao seu corpo, suas crenças, suas propriedades.

Lidamos com o passado como se ele tivesse automaticamente feito as pazes com o presente. Não, não fez. E, agora, estamos mergulhados em uma aventura autoritária achando que três décadas de construção de instituições vão nos manter seguros. Por enquanto, ajudaram a manter uma democracia capenga, que protege mais homens brancos do que o restante. Mas "as instituições [não] estão funcionando normalmente". Há fraturas e elas podem ser demolidas.

Os resultados do Datafolha mostram o quão importante é a defesa da democracia nas escolas de todo o país. O governo e seus aliados travam uma batalha na educação, com o objetivo de impor sua visão de mundo limitada e avessa à pluralidade. Na internet, onde esse conflito já existia, eles vem conquistando corações e mentes de jovens que acham quer ser vanguarda é ser reacionário.

A história do período entre 1964 e 1985 deve ser contada nas escolas até entrarem nos ossos e vísceras de nossas crianças e adolescentes a fim de que nunca esqueçam que a liberdade do qual desfrutam não foi de mão beijada. Mas custou o sangue, a carne e a saudade de muita gente.

Só dessa forma, poderemos garantir que a minoria de 12% que acha preferível a volta da ditadura continue a ser vista pelo restante da sociedade como mal informada ou fora de si – e tratada com todo o carinho possível e paciência. Pois, talvez um dia, compreenda o que significa a liberdade que está diante de seus olhos, mas que não consegue enxergar.

Vai ser pior

O fascismo não é um regime. Ele é um movimento político e filosófico que pode virar um regime. O fascismo emprega táticas e constrói alianças para chegar ao poder e como um Zelig pode se tornar muitas coisas quando o alcança. O que aconteceu na Alemanha de Hitler foi diferente do que se deu na Itália de Mussolini.

Ou seja, ignorar que estamos vivendo em vários países com movimentos fascistas, que têm feito aliança com projetos econômicos ultraliberais, e que isso pode avançar para regimes absolutamente fascistas é má fé de quem está fazendo a análise ou pura ignorância acerca do tema.

A declaração de Paulo Guedes, novembro passado, em Washington ameaçando o país com um novo AI-5 se porventura o povo sair às ruas contra suas medidas econômicas é o suprassumo deste fenômeno.

O fascismo atual é um caminho para a implantação do projeto neoliberal mais cruel. Não há como impor esta nova ordem econômica sem força, sem matar cidadãos, sem usar leis duras como a GLO, especialmente em sociedades injustas como as da América Latina.

O capitalismo voraz topou entregar alguns anéis para ter mais dedos. Topou rifar a democracia liberal e trocá-la por projetos fascistas como os de Bolsonaro no Brasil, por exemplo. E está fazendo que outros governantes, antes neoliberais, sigam pelo mesmo caminho.

Piñera no Chile viu que ou fazia isso ou teria que sair pela porta dos fundos do Palácio de la Moneda. O mesmo se deu com Lênin Moreno no Equador. E com Ivan Duque na Colômbia. E é o mesmo projeto dos golpistas da Bolívia e da Venezuela. Que passa por uma associação cega com o trumpismo e Israel.

O fascismo de hoje não mata judeus e ciganos. Mata pobres e imigrantes. E continua matando quem luta e resiste contra eles, como nos anos 30.

A frase de Guedes mostra como será duro 2020. Vai ser um ano ainda pior do que 2019. De guerra nas ruas. Porque o fascismo de novo tipo não vai recuar na imposição do novo regime de sociedade.

Ainda estamos no começo desta resistência e o projeto do bolsonarismo que parecia uma coisa de um bando de doidos cada vez se mostra mais articulado e organizado com este fascismo de novo tipo global.

A saída de Lula ajuda a organizar a resistência, mas pode ser uma armadilha se o movimento social não entender com quem vai disputar o destino do país nos próximos lances.

Eles não estão brincando com as siglas GLO e AI-5. Como não brincavam quando falavam de impeachment de Dilma e prisão de Lula. Como não estão brincando as Forças Armadas do Chile, Equador, Bolívia, Haiti etc e tal.

O que vem por aí é mais feio do que parece. Mas isso não deve ser motivo nem para recuos e muito menos para medos. Ou pior ainda, para cair na tese de que o problema é a tal polarização. Nunca se derrotou o fascismo na história com debates ditos racionais ou convencimento de gabinetes. Foi na luta e com ampliação de alianças. Sem covardia.

Em 2020, a imprensa continuará na mira

A imprensa está na mira. E não é só do governo federal, não (como se isso fosse pouco). O governo só se sente à vontade para atacar continuamente diversos órgãos de imprensa porque ele surfa uma onda muito maior: a própria sociedade, embora consuma mais informação gerada pela imprensa profissional do que jamais na história, perdeu a confiança mais elementar nela.

Pequenas decisões editoriais, normais no dia a dia de uma redação e sem maiores significados, são interpretadas como a prova de que a mídia está vendida e num complô contra o lado que o leitor defende. Nas últimas semanas, com a profusão de matérias sobre os funcionários e investimentos de Flávio Bolsonaro, alguns veículos de imprensa (entre eles, a própria Exame) passaram a chamá-lo apenas de “Flávio” em suas manchetes.

Faz todo o sentido: economiza alguns caracteres e, dado o contexto em que todo mundo está falando do assunto, é evidente para qualquer leitor que o Flávio ligado a Queiroz, “rachadinha” ou chocolates só pode ser o Flávio Bolsonaro. Se alguém porventura não souber, basta ler a matéria e será prontamente esclarecido.

Não foi assim que muitos leitores – ou pelo menos aqueles leitores que comentam nas redes sociais – receberam as manchetes. Para um grande grupo de indignados, a omissão do sobrenome “Bolsonaro” era a prova de que os jornais estão querendo blindar o presidente Jair Bolsonaro do dano político que decorre das investigações de seu filho.

A acusação não faz o menor sentido. Alguns desses veículos são constantemente atacados pelo presidente. Investigam, redigem e publicam matérias sobre ele e seus filhos sem nenhuma restrição. Em algumas, a foto escolhida de Flávio era junto com seu pai. Tampouco a decisão teve qualquer impacto nos mecanismos de busca, como alguns alegaram.

Nem todos os argumentos do mundo puderam convencer centenas de leitores de que, nessa simples decisão de omitir um sobrenome que nada muda no entendimento da matéria, os jornais não estivessem tentando ajudar o presidente que os têm por inimigos jurados.

Se a confiança alheia acabou, não há defesa possível das próprias ações. Todo ato servirá para condená-lo, e toda tentativa de defesa será encarada como desonesta de partida. Esse é o cenário que a imprensa profissional enfrenta hoje. Ela sem dúvida tem muitas falhas, mas não é por elas que ela é odiada. Invariavelmente, os críticos mais violentos da imprensa, à direita ou à esquerda, a substituem por sites partidários, formadores de opinião com lado e informações com zero confiabilidade recebidas via Whatsapp.

Não está claro o que pode ser feito para reverter isso. Penso que, nos tempos atuais, a proximidade pessoal com o emissor da mensagem é um ativo cada vez mais importante. As pessoas acreditam naquilo que vem de uma pessoa de que elas gostam e que acreditam estar do seu lado.

Por isso formadores de opinião e youtubers têm cada vez mais influência. Os profissionais da imprensa – cujo ofício é hoje mais necessário do que nunca – precisam construir pontes com o leitor e espectador comum, mostrando e assim desmistificando o fazer jornalístico. Se o leitor sentir que o jornalista que produz as notícias é alguém como ele – e que uma redação tem todo tipo de pessoa e perfil ideológico -, e entender os rudimentos de sua profissão, pode voltar a confiar nele, assim como confia na mensagem de Whatsapp enviada por um parente.

2020 está aí. A imprensa seguirá enfrentando desafios que vão muito além do discurso presidencial da vez.


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